A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual

AuthorCaitlin Mulholand
ProfessionDoutora em Direito Civil (UERJ). Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio
Pages633-659
A responsabilidade civil da pessoa com deficiência
psíquica e/ou intelectual
Caitlin Mulholland*
1. Introdução. Da responsabilidade civil ao direito de danos
Celso, pessoa acometida de “transtorno delirante persistente”1, levava
uma vida normal e pacata numa pequena cidade no interior de São Paulo.
Administrava as atividades de seu sítio, produzia safras de limão e garantia
o sustento de sua família. Celso jamais apresentou qualquer comportamen-
to agressivo e era considerado como “socialmente adaptado”, razão pela
qual seus familiares jamais propuseram a sua interdição. Eventualmente,
Celso demonstrava ânimo alterado, sem que este fato transformasse sua
relação social e familiar. Sua esposa, Maria Aparecida, o aconselhava e
acompanhava a consultas psiquiátricas. Em 2016, Celso, num raro momen-
to de alteração, destrói por completo um carro de propriedade de Rodrigo,
ateando-lhe fogo.2
*Doutora em Direito Civil (UERJ). Professora do Departamento de Direito da
PUC-Rio.
1De acordo com o site http://www.cid10.com.br/, “a Classificação Estatística In-
ternacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, frequentemente de-
signada pela sigla CID (em inglês: International Statistical Classification of Diseases
and Related Health Problems — ICD) fornece códigos relativos à classificação de
doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas,
circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças”. Consultado em:
29.03.2016. Na classificação CID10, o transtorno delirante persistente é encontrado
sob o código F22. Este tipo de transtorno é caracterizado pela ocorrência de uma ideia
delirante única ou de um conjunto de ideias delirantes aparentadas, em geral persist-
entes e que por vezes permanecem durante o resto da vida. O conteúdo da ideia ou das
ideias delirantes é muito variável. Neste sentido, ver: http://www.psiqweb.med.br/
site/DefaultLimpo.aspx?area=ES/VerClassificacoes&idZClassificacoes=399. Con-
sultado em 13.04.2016.
2Texto inspirado e adaptado da decisão proferida pelo TJSP, 10a. Câmara de Direi-
to Privado, AC. 2013.0000250307, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 30.04.2013.
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Nesta narrativa, quem deve arcar com o ônus do dano: a vítima ou o
ofensor, pessoa com deficiência psíquica? A resposta adequada ao questio-
namento deve ser dada levando-se em consideração as regras e valores ine-
rentes a determinada sociedade, historicamente localizada. Deve-se consi-
derar, também, que esta indagação terá soluções variadas decorrentes mui-
to mais de “escolhas político-filosóficas do que a evidências lógico-racio-
nais, decorrentes da natureza das coisas”.3 Cinco respostas seriam viáveis de
acordo com o período histórico-legislativo analisado: (i) a vítima ficaria ir-
ressarcida por ter sofrido dano causado por pessoa inimputável; (ii) sendo
Celso interditado, o seu curador seria responsabilizado por culpa presumida
ou, ainda, objetivamente, pelo dano causado; (iii) sendo Celso interditado
e seu curador não possuindo meios suficientes para arcar com a indenização
ou não havendo da parte do curador a obrigação de indenizar, aquele res-
ponderia equitativamente; (iv) se Celso não fosse interditado, responderia
direta e integralmente pelo dano, ou, ainda, equitativamente, a depender da
possibilidade ou não de exprimir sua vontade.
Por esta narrativa se depreende que a responsabilidade civil surge como
um primeiro impulso de punir o ofensor — realizando uma função retribu-
tiva, em que se analisa a imputabilidade — para transformar-se, a posteriori,
num meio de reparar a vítima — efetivando um ideal de justiça distributiva,
como, por exemplo, por meio da atribuição da obrigação de indenizar a um
incapaz. Segundo Luiz Díez-Picazo, a responsabilidade civil estava destina-
da a moralizar as condutas individuais mais que assegurar às vítimas a repa-
ração dos prejuízos.4 A sua função original era esta, mas a retomada de va-
lores e princípios personalistas pelo ordenamento jurídico, por meio do Di-
reito Civil contemporâneo, constitucionalizado, fez com que fosse possível
a virada principiológica da responsabilidade civil.
Esta mudança de perspectiva traz uma série de consequências quanto à
aplicação e interpretação das funções da responsabilidade civil. A principal
delas, compartilhada conosco pioneiramente por Orlando Gomes5, se dá
pelo giro conceitual em relação à justificativa da existência de um direito da
responsabilidade civil. A obrigação de indenizar sempre foi associada à exis-
tência de um ato ilícito. Este era seu fundamento primário e sua razão de
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3 Bodin Moraes, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitu-
cional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,p. 21.
4 Díez-Picazo, Luiz. Derecho de daños. Madrid: Civitas, 1999, p. 85.
5Gomes, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: Di
Fr anc esc o, J . R. P. ( Org .). Estudos em homenagem ao professor Sílvio Rodrigues. São
Paulo: Saraiva, 1980, p. 296.

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