Responsabilidade civil de empresas jornalísticas por comentários de terceiros na internet: análise da distinção entre provedores de conteúdo feita pelo stj no julgamento do resp 1.352.053

AutorFelipe Schvartzman
Páginas337-355
RESPONSABILIDADE CIVIL
DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR
COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET:
ANÁLISE DA DISTINÇÃO ENTRE PROVEDORES
DE CONTEÚDO FEITA PELO STJ NO
JULGAMENTO DO RESP 1.352.053
Felipe Schvartzman
Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Advogado.
1. INTRODUÇÃO
O jornalismo passou por profundas transformações nos últimos tempos: a mídia
impressa teve que se adaptar aos formatos digitais e, atualmente, há veículos que
foram criados na própria internet para circulação exclusiva na rede, sem que jamais
tenham sido divulgados em meio físico. A mudança vai além do suporte em que a
informação é veiculada e altera também a atividade jornalística em si, sendo comum,
por exemplo, a existência de veículos que conjugam notícias e entretenimento em
um único portal. A mídia tradicional percebeu a necessidade de buscar novos mo-
delos de negócio para gerar receita com conteúdo online, em complemento dos – ou
mesmo em substituição aos – veículos impressos, televisivos ou radiofônicos. Nos
dias de hoje, os provedores de serviços na Internet são cada vez mais responsáveis
pela veiculação de notícias e conteúdo jornalístico, especialmente em redes sociais.
O contexto já é conhecido: com a virada do milênio e o advento da Web 2.0, o
público do jornalismo, assim como o de outros serviços oferecidos online, passou
a ser interativo. No anglicismo, fala-se da passagem do consumer ao prosumer – um
neologismo para traduzir o usuário que não apenas consome conteúdo passivamente,
mas também colabora com a sua produção. Nesse cenário, a revista norte-americana
Time surpreendeu ao eleger “você” como “Pessoa do Ano”1 em 2006, como forma de
homenagear difusamente todos aqueles que contribuem para a criação de conteúdo
na Internet.
Hoje, a comunicação na internet é interativa e é cada vez mais comum os portais
oferecerem seções dedicadas à manifestação e às críticas dos leitores. O jornalismo,
enf‌im, pode ser desaf‌iado por sua audiência online. Estudos mostram que quase
1. Desde 1927, os editores da revista Time elegem a pessoa, a ideia ou grupo que mais inf‌luenciou o jorna-
lismo em determinado ano, seja para o bem ou para o mal. Disponível em
person-of-the-year-2006-2016/?iid=sr-link4>. Acesso em: 15.08.2019.
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metade dos norte-americanos usam o feed de notícias do Facebook como principal
fonte de notícias2, o que só revela a relação, cada vez mais imbricada e complexa,
entre empresas de tecnologia e de mídia.
Se, por um lado, tornou-se lugar comum a reprodução da fala de Umberto Eco,
para quem “as redes sociais deram voz aos imbecis”3, portais como The Financial Ti-
mes e Times of London, de outra parte, já reconhecem que os usuários que comentam
nas plataformas são os mais engajados e os que mais acessam os portais de notícias4.
The Washington Post e The Guardian contam com verdadeiras comunidades de
leitores que interagem com os jornalistas e até fornecem dicas que auxiliam no tra-
balho investigativo5. Soma-se a essa interatividade dos usuários a instantaneidade
tão própria da rede. Como a informação passou a ser imediata, não é mais necessário
aguardar o telejornal da noite para manter-se informado. O f‌luxo informacional,
antes vertical, agora é horizontal, tornando-se uma via de mão dupla. Com efeito, a
instantaneidade da informação e a interação dos usuários – não apenas dos jornais
com o seu leitor, mas também entre os próprios seguidores de determinado veículo,
uns com os outros – passaram a ser marcas do jornalismo digital.
Se a forma como as pessoas se informam e consomem notícias mudou, a relação
dos usuários com os agentes de notícias também não é mais a mesma e, como con-
sequência, é de se esperar que as relações jurídicas travadas nesse ambiente também
sofram alterações. Este artigo se propõe a tratar de uma dessas novas situações para
responder três indagações: (i) qual classif‌icação de provedor de serviço é aplicável às
empresas jornalísticas que atuam na Internet; (ii) qual o regime de responsabilidade
civil cabível às empresas jornalísticas diante de comentários ofensivos publicados por
leitores em suas plataformas online; e, por f‌im, (iii) podem as empresas jornalísticas
ser responsabilizadas por esses comentários ofensivos?
Para tanto, a análise recairá sobre o julgamento do Recurso Especial 1.352.053 à
luz do Marco Civil da Internet (“Lei nº 12.965/2014” ou “MCI”), com vistas a avaliar
o (des)acerto do Superior Tribunal de Justiça em distinguir, para f‌ins de responsa-
bilização, empresas de informática de empresas jornalísticas, quando ambas atuam
como provedoras de conteúdo na rede, disponibilizando postagens de terceiros em
seus portais.
2. Disponível em: g/2017/09/07/news-use-across-social-media-platforms-2017/>.
Acesso em 15.08.2019.
3. Disponível em:
ja-as-17-frases-mais_a_21683863/>. Acesso em 15.08.2019.
4. “Earlier this year, The Financial Times found that its commenters are seven times more engaged than the rest of
its readers. The Times of London revealed recently that the 4 percent of its readers who comment are by far its
most valuable”. Disponível em: ead-the-commentsthey-can-
-be-the-best-part/>. Acesso em: 15.08.2019.
5. “There are many examples of sites that recognize the value of these communities. The Washington Post’s Capital
Weather Gang has a thriving and supportive community that provides tips and information to its journalists.
The Guardian’s live blogs thrive on their interaction with the comments, and its Crossword community is second
to none”. Disponível em: ead-the-commentsthey-can-be-the-
-best-part/>. Acesso em: 15.08.2019.
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RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
2. IDENTIFICAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA
Em 2009, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamen-
tal (ADPF) 130, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei nº 5.250/67 (Lei de
Imprensa), em sua integralidade, não fora recepcionada pela Constituição de 1988,
por violar as liberdades comunicativas garantidas constitucionalmente – liberdades
de imprensa, de manifestação do pensamento, de informação e de expressão artística,
científ‌ica, intelectual6.
Como o potencial conf‌lito entre as liberdades de comunicação e os direitos de
personalidade não deixou de existir com a simples ausência da Lei de Imprensa no
ordenamento jurídico, despontaram, desde então, novas possibilidades de interpreta-
ção da legislação para a apuração da responsabilidade civil das empresas jornalísticas.
Ainda na vigência da Lei de Imprensa, o STJ consolidou o entendimento,
inclusive em sua jurisprudência sumulada, de que “são civilmente responsáveis
pelo ressarcimento de dano decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor
do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação” (Enunciado nº 221 da
Súmula do STJ). Ao longo do tempo, a aplicação dessa orientação deixou de ser li-
mitada à imprensa escrita, estendendo-se a outros veículos midiáticos, como rádio e
televisão7, além de provedores de informação na Internet, a ponto de responsabilizar
titulares de blogs8.
Em regra, a doutrina e a jurisprudência se dividiam entre três possíveis teorias
da responsabilidade civil aplicáveis às empresas jornalísticas9: (i) responsabilidade
6. STF, Tribunal Pleno, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgado em 30/04/2009, DJe 05.11.2009.
7. STJ, Terceira Turma, REsp 1.138.138/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25.09.2012, DJe 05.10.2012):
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. EXPLORAÇÃO
INDEVIDA DA IMAGEM. LEGITIMIDADE PASSIVA. INDENIZAÇÃO. REVISÃO PELO STJ. LIMITES.
1. Nos termos do enunciado nº 221 da Súmula/STJ, são civilmente responsáveis pela reparação de dano
derivado de publicação pela imprensa, tanto o autor da matéria quanto o proprietário do respectivo veículo
de divulgação. 2. O enunciado nº 221 da Súmula/STJ não se aplica exclusivamente à imprensa escrita,
abrangendo também outros veículos de imprensa, como rádio e televisão. 3. A revisão, pelo STJ, do valor
arbitrado a título de danos morais somente é possível se o montante se mostrar irrisório ou exorbitante,
fora dos padrões da razoabilidade. Precedentes. 4. Recurso especial a que se nega provimento” (destaque
acrescentado).
8. STJ, Terceira Turma, REsp 1381610/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 03.09.2013, DJe 12.09.2013:
“DIREITO CIVIL. INTERNET. BLOGS. NATUREZA DA ATIVIDADE. INSERÇÃO DE MATÉRIA OFEN-
SIVA. RESPONSABILIDADE DE QUEM MANTÉM E EDITA O BLOG. EXISTÊNCIA. ENUNCIADO Nº
221 DA SÚMULA/STJ. APLICABILIDADE. 1. A atividade desenvolvida em um blog pode assumir duas
naturezas distintas: (i) provedoria de informação, no que tange às matérias e artigos disponibilizados no
blog por aquele que o mantém e o edita; e (ii) provedoria de conteúdo, em relação aos posts dos seguidores
do blog. 2. Nos termos do enunciado nº 221 da Súmula/STJ, são civilmente responsáveis pela reparação de
dano derivado de publicação pela imprensa, tanto o autor da matéria quanto o proprietário do respectivo
veículo de divulgação. 3. O enunciado nº 221 da Súmula/STJ incide sobre todas as formas de imprensa,
alcançado, assim, também os serviços de provedoria de informação, cabendo àquele que mantém blog
exercer o seu controle editorial, de modo a evitar a inserção no site de matérias ou artigos potencialmente
danosos. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido” (destaque acrescentado).
9. Para uma análise abrangente sobre o tema, cf. ANDRIOTTI, Caroline Dias. A responsabilidade civil das
empresas jornalísticas. In. SCHREIBER, Anderson (coord.). Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 335: “A
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subjetiva, fundada na previsão genérica do art. 186 do Código Civil, exigindo-se a
comprovação de culpa do veículo jornalístico; (ii) responsabilidade objetiva baseada
na cláusula geral da atividade de risco, prevista no parágrafo único do art. 927 do
Código Civil; e (iii) responsabilidade objetiva com fundamento na responsabilidade
indireta do empregador ou comitente, consoante o art. 932, III c/c art. 933 do Código
Civil.
Em maio de 2009, a Terceira Turma do STJ julgou o primeiro caso sobre a
responsabilidade de veículo de comunicação após a retirada da Lei de Imprensa do
ordenamento jurídico (REsp 984803). O acórdão, relatado pela ministra Nancy
Andrighi, revelou-se importante precedente pela aplicação do regime de responsa-
bilidade civil subjetiva aos veículos de comunicação, exigindo-se, para a imputação
de responsabilidade civil, a comprovação de que eles saibam – ou possam saber – da
inveracidade dos fatos divulgados10.
Já para a responsabilização de agentes que atuam na Internet, de forma específ‌ica,
um ponto relevante é a identif‌icação da atividade prestada pelo provedor do serviço
em questão na rede mundial de dispositivos conectados. Em 2012, no julgamento
do REsp 1.192.208 – que se tornou notório por aplicar o regime do Código de Defesa
do Consumidor aos serviços online que, mesmo quando oferecidos gratuitamente
para o consumidor, geram ganhos indiretos a seus prestadores –, a ministra Nancy
Andrighi reconheceu os provedores de serviço na Internet como um gênero, do qual
derivam cinco espécies:
natureza da responsabilidade civil das pessoas jurídicas que exploram os meios de comunicação é objeto de
controvérsia longe ainda de uma estabilização. Dividem-se a doutrina e os tribunais entre a conf‌iguração de
uma responsabilidade subjetiva e que, portanto, depende da comprovação da culpa da empresa jornalística e,
de outro lado, na defesa de uma responsabilidade objetiva, em cuja sede é necessária a comprovação apenas
do dano e do nexo de causalidade. Neste último caso, os autores divergem ainda quanto ao fundamento da
responsabilidade objetiva — alguns acreditam que a responsabilidade se baseia na teoria do risco, prevista
no ordenamento jurídico brasileiro na cláusula geral do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil,
outros na responsabilidade por fato de terceiro, prevista nos artigos 932, III, c/c 933 do Código Civil”.
10. O caso envolvia uma alegação de abuso do direito de informar, pelo fato de um programa dominical ter
procurado denunciar a existência de organização criminosa com base no depoimento de fonte jornalís-
tica, cuja identidade foi mantida em sigilo, e que revelou ter chegado a participar da empreitada ilícita,
f‌inanciando-a, mas que, a partir de certo momento, passou a ser ameaçado – momento a partir de quando
a fonte teria decidido delatar a organização criminosa. Em síntese, o veículo notif‌icou a suposta prática de
crime a partir de dois elementos – a prova testemunhal da fonte que fora à autoridade policial formalizar
notícia-crime e a opinião de um Procurador da República apresentada na reportagem. No julgamento do
caso, o STJ entendeu que a circunstância de uma investigação ou ação penal não se conf‌irmar procedente,
por si só, não resulta no dever de indenizar do veículo que noticiou a suspeita. Assim, o Tribunal reconheceu
que “[a] suspeita que recaía sobre o recorrido, por mais dolorosa que lhe seja, de fato, existia e era, à época,
f‌idedigna. Se hoje já não pesam sobre o recorrido essas suspeitas, isso não faz com que o passado se altere.
Pensar de modo contrário seria impor indenização a todo veículo de imprensa que divulgue investigação
ou ação penal que, ao f‌inal, se mostre improcedente” (STJ, Terceira Turma, REsp 984.803/ES, Rel. Min.
Nancy Andrighi, julgado em 26.05.2009, DJe 19.08.2009). A relatora do caso ressaltou que, embora seja
importante a diligência investigativa no processo de produção de notícias, não se pode exigir o rigor aplicável
aos processos judiciais. Além disso, como a imprensa não detém poderes equiparáveis aos estatais para a
cognição exauriente dos fatos investigados, não é possível lhe exigir a veiculação de fatos apenas após a
certeza de sua veracidade, sob pena de engessar a mídia e condená-la à morte.
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“(i) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar
grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade da Internet, oferecendo
sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários nais acesso à rede; (ii) provedores de
acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores backbone e revendem aos usuários nais,
possibilitando a estes conexão com a Internet; (iii) provedores de hospedagem, que armazenam
dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; (iv) provedores de informação, que produzem
as informações divulgadas na Internet; e (v) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede
as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação”11.
(destaque acrescentado)
Posteriormente, em 2014, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) passou
a prever, ao menos no seu texto expresso, somente duas modalidades de provedor12-13:
os de conexão, que são aqueles que oferecem conectividade no mercado de consumo,
e os de aplicação, compreendidos como qualquer funcionalidade acessada por meio
de um terminal conectado à Internet.
O MCI também dedicou posição de destaque à liberdade de expressão, que conta
com cinco aparições textuais na lei: a liberdade de expressão, em suma, é fundamento
e princípio para a disciplina do uso da internet no Brasil (arts. 2º e 3º); condição para
o pleno exercício do direito de acesso à internet (art. 8º); e, por f‌im, orienta o regime
de responsabilidade civil tratado na Lei (art. 19, caput e §2º)14.
Naturalmente, o relevo dedicado à liberdade de expressão não impede a res-
ponsabilização dos atores que atuam na internet ou a remoção de conteúdo ilícito
da rede. Contudo, conforme prevê o próprio art. 3º, VI do MCI, deve-se perseguir a
“responsabilização dos agentes de acordo com a sua atividade”.
Daí a relevância de se compreender como os provedores atuam quando prestam
determinado serviço na Internet, pois essa identif‌icação impacta o regime de respon-
11. STJ, Terceira Turma, REsp 1192208/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12.06.2012, DJe 02.08.2012.
12. TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Responsabilidade civil e liberdade de expressão no Marco Civil da
Internet: a responsabilidade civil dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Revista de Direito Privado. vol. 63. ano 16. p. 59-83. São Paulo: Ed. RT, jul-set 2015. “O Marco Civil da
Internet menciona, ao longo de seu texto, apenas duas espécies de provedores: o provedor de conexão à
internet e o provedor de aplicações de internet. Ainda que o legislador tenha incluído um glossário no art.
5º, neste rol não foi colocada uma def‌inição para os provedores, tampouco uma classif‌icação, mas apenas
a def‌inição das atividades desempenhadas por eles”
13. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; SOUZA, Carlos Affonso; NUNES, Beatriz Laus Marinho. Responsabilidade
Civil de Provedores. In: SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo; BOTTINO, Celina (coord.) Marco
Civil da Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 96: “A Lei
12.965/2014 trata em especial de dois tipos de provedores: aqueles dedicados a prover acesso à Internet e
aqueles que disponibilizam as mais diversas aplicações na rede. Entretanto, a Lei não traz uma def‌inição
para esses provedores, mas apenas a def‌inição das atividades desempenhadas por eles. Dispõe o artigo 5º,
incisos V e VII, que para os efeitos do MCI considera-se: ‘conexão à internet: a habilitação de um terminal
para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um
endereço IP’ e ‘aplicações da internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de
um terminal conectado à internet’”.
14. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. “As cinco faces da proteção à liberdade de expressão no marco civil da
internet”. In: DE LUCCA, Newton, et al. (org.). Direito & Internet III: Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014.
São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 377-408.
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sabilização no ambiente online. Na sequência, passa-se a qualif‌icar juridicamente
a atuação online das empresas jornalísticas, de modo a auxiliar na identif‌icação do
regime de responsabilidade civil que lhes é aplicável.
3. QUALIFICAÇÃO DAS EMPRESAS JORNALÍSTICAS NA INTERNET E
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DE CONTEÚDO, DE
INFORMAÇÃO E DE APLICAÇÃO
Na linha da jurisprudência do STJ, provedores de informação são aqueles que
produzem as informações divulgadas na internet, ou seja, são os autores do material
publicado na rede, enquanto os provedores de conteúdo são aqueles que disponibilizam
na internet as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação.
Acertadamente, o STJ já reconheceu a possibilidade, inclusive frequente, de que
“provedores ofereçam mais de uma modalidade de serviço de Internet; daí a con-
fusão entre essas diversas modalidades. Entretanto, a diferença conceitual subsiste
e é indispensável à correta imputação da responsabilidade inerente a cada serviço
prestado”15. Essa é exatamente a hipótese de que aqui se cuida.
Quando os jornais assinam uma matéria na internet, por meio de editorial ou de
seus colaboradores individualmente, atuam como provedores de informação, já que são
os próprios autores dos escritos postados. Como a mídia hoje é interativa, também é
comum que os portais eletrônicos dos jornais, com o intuito de estabelecer conexão
com os seus leitores, dediquem um espaço online à publicação dos comentários de
seus seguidores, de modo a promover engajamento com a comunidade de usuários que
acessam determinado jornal. Nesse caso, por disponibilizarem as informações criadas
por terceiros, sem controle prévio de seu teor, atuam como provedores de conteúdo.
É por essa razão que, para as indagações perquiridas neste artigo, interessa
especialmente a responsabilidade civil do provedor de conteúdo, uma vez que é nessa
qualidade que atuam as empresas jornalísticas quando, sem controle prévio, permi-
tem que terceiros publiquem em suas páginas16.
15. STJ, Terceira Turma, REsp 1192208/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12.06.2012, DJe 02.08.2012.
16. Não se desconhece que, atualmente, há páginas que realizam um controle prévio do conteúdo postado
por seus leitores. No entanto, a análise aqui proposta se restringirá à disciplina aplicável àquelas que não
realizam qualquer moderação prévia, considerando que o STJ, ao decidir pelo regime de responsabilidade
subjetiva dos provedores de aplicação, reconhece os provedores na internet como importante fonte de
expressão, que não estão obrigados a gerenciar previamente o conteúdo das informações postadas por
usuários em suas páginas. Cf. STJ, Terceira Turma, REsp 1641133/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado
em 20.06.2017, DJe 01.08.2017: “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. GOOGLE. YOU-
TUBE. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONTEÚDO REPUTADO OFENSIVO. DANO
MORAL. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO PROVEDOR. NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. DESCUM-
PRIMENTO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA COM OFENSOR. REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA
PELO DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. (...) 3. Esta Corte f‌ixou entendimento de que ‘(i) não
respondem os provedores objetivamente pela inserção no site, por terceiros, de informações ilegais; (ii) não
podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo das informações postadas no site por
seus usuários; (iii) devem, assim que tiverem conhecimento inequívoco da existência de dados ilegais no
site, removê-los imediatamente, sob pena de responderem pelos danos respectivos; (iv) devem manter um
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A cronologia da jurisprudência sobre o tema revela diferentes fases com en-
tendimentos distintos17: em um primeiro momento, no começo do milênio, alguns
julgados extinguiam, sem julgamento de mérito, ações indenizatórias ajuizadas em
face dos provedores por entender que não possuíam legitimidade passiva, na medida
em que os réus seriam meros intermediários entre o agente do dano e a vítima.
Em seguida, o pêndulo da responsabilização inverteu-se para a outra extremi-
dade, reconhecendo-se a responsabilidade objetiva dos provedores, quer por risco
da atividade (Código Civil, art. 927, parágrafo único), quer por prestação de serviço
defeituoso, na forma do Código de Defesa do Consumidor. Por último, entre a ilegi-
timidade passiva e a responsabilidade objetiva, desponta a responsabilidade subjetiva,
que também encontrou variações, discutindo-se se seria def‌lagrada por mera noti-
f‌icação extrajudicial ou apenas pelo descumprimento de ordem judicial específ‌ica.
Aos poucos, o STJ passou a entender que não haveria como se impor ao provedor
a avaliação subjetiva da inveracidade das informações veiculadas em suas plataformas
por terceiros. No julgamento do REsp 1406448/RJ, o Tribunal reconheceu que, “[n]
o que tange à verif‌icação de ofício do conteúdo das informações postadas por cada
usuário, não se trata de atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não
se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e
f‌iltra o material nele inserido.”18
Dessa forma, o STJ conf‌irmou o entendimento de que a responsabilidade objetiva
de um agente só se justif‌ica nos casos em que há risco maior do que o normal. Na
mesma linha, o Enunciado 38 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro
de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, prevê que apenas será apli-
cável o regime de responsabilidade civil objetiva “quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do
que aos demais membros da coletividade”.
Até 2014, o STJ adotava o entendimento de que seria cabível a responsabili-
zação do provedor de aplicação por conteúdo gerado por terceiros apenas a partir
sistema minimamente ef‌icaz de identif‌icação de seus usuários, cuja efetividade será avaliada caso a caso’.
Precedentes” (destaque acrescentado).
17. Para uma análise detida da evolução jurisprudencial da responsabilidade civil dos provedores de acesso e
de aplicações da internet, cf. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Responsabilidade civil dos provedores de
acesso e de aplicações e Internet: evolução jurisprudencial e os impactos da Lei 12.695/2014 (Marco Civil
da Internet). In: LEITE, George Salomão LEMOS, Ronaldo (coord). Marco Civil da Internet. São Paulo:
Atlas, 2014. p. 791-¬816: “De modo geral pode-se apontar três entendimentos que têm sido prevalentes na
jurisprudência nacional sobre a responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet: (i) a sua
não responsabilização pelas condutas de seus usuários; (ii) a aplicação da responsabilidade civil objetiva,
ora fundada no conceito de risco da atividade desenvolvida, ora no defeito da prestação do serviço; e (iii) a
responsabilidade de natureza subjetiva, aqui também encontrando-se distinções entre aqueles que consi-
deram a responsabilização decorrente da não retirada de conteúdo reputado como lesivo após o provedor
tomar ciência do mesmo (usualmente através de notif‌icação da vítima) e os que entendem ser o provedor
responsável apenas em caso de não cumprimento de decisão judicial ordenando a retirada do material
ofensivo”.
18. STJ, Terceira Turma, REsp 1406448/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15.10.2013, DJe 21.10.2013.
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do momento em que, notif‌icado extrajudicialmente pela vítima, este permanecesse
inerte, deixando de retirar o conteúdo ofensivo de suas plataformas dentro de um
prazo comumente f‌ixado em 24 horas19. Essa sistemática f‌icou conhecido como
notice and takedown.
Com o advento do Marco Civil da Internet, passou-se a condicionar a respon-
sabilização do provedor ao descumprimento de ordem judicial específ‌ica para a
remoção de conteúdo publicado por terceiro em sua plataforma, na forma de seu
polêmico art. 19. Em síntese, o dispositivo oferece uma salvaguarda para as ativida-
des dos provedores semelhante à verif‌icada nos Estados Unidos, prevista na Seção
230 (c)(1) do Telecommunications Act, conforme alteração promovida em 1994 pelo
denominado Communications Decency Act (CDA)20. A previsão do MCI, contudo, é
objeto de relevantes discussões e duras críticas.
A corrente crítica ao art. 19 do MCI sustenta que o dispositivo seria um ver-
dadeiro retrocesso em relação ao mecanismo de notice and takedown, que vinha se
consolidando na jurisprudência até 2014. De acordo com Anderson Schreiber, a
previsão do MCI “estabeleceu um mecanismo extremamente engessado, que cria
uma proteção intensa para as sociedades empresárias que exploram redes sociais e
reduz o grau de proteção que já vinha sendo f‌ixado pela jurisprudência brasileira
para os usuários da internet”21.
Nessa linha, o autor af‌irma que o art. 19 do MCI seria inconstitucional por
violar a garantia constitucional de reparação plena e integral dos danos à honra, à
privacidade e à imagem, uma vez que o artigo impõe condicionantes e limites à tutela
desses direitos fundamentais22. Viola-se também o princípio do acesso à justiça, no
seu entendimento, na medida em que, em vez de ser tratado como um direito funda-
19. STJ, Terceira Turma, REsp 1403749/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2013, DJe 25.03.2014
“CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. PROVEDOR
DE COMPARTILHAMENTO DE VÍDEOS. VERIFICAÇÃO PRÉVIA E DE OFÍCIO DO CONTEÚDO POS-
TADO POR USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. IMAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL.
RISCO NÃO INERENTE AO NEGÓCIO. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO OU
OFENSIVO. RETIRADA DO AR EM 24 HORAS. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDEN-
TIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER, DESDE QUE INFORMADO O URL. DISPOSITIVOS LEGAIS
ANALISADOS: ARTS. 5º, IV E IX, 220 DA CF/88; 6º, III, 14 E 84, § 4º, DO CDC; 461, § 1º, DO CPC; E 248
E 927, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/02”.
20. Vale destacar que essa regra possui exceções, a exemplo do que ocorre com o regime de responsabilização
por violações a direitos autorais, conforme dispõe o Digital Millenium Copyright Act (DMCA). Para apro-
fundamento, cf. SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação.
Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda., 2016, p. 72-73.
21. SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano
derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO; Adalberto; LIMA,
Cíntia Rosa Pereira de (coord). Direito & Internet. Tomo II: Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).
São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 289.
22. Em sentido contrário, manifestando-se pela constitucionalidade do art. 19 do MCI, cf. NORTHFLEET, Ellen
Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade: parte II. Consultor Jurídico, 20 fev.
2020. Disponível em: .com.br/2020-fev-20/ellen-gracie-constitucionalidade-marco-
-civil-internet-ii>. Acesso em: 15.05.2021: “32. Adequada a solução legislativa, não se vislumbra no artigo
19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) qualquer vício de inconstitucionalidade”.
345
RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
mental, o ajuizamento de ação se torna obrigação da vítima e condição sine qua non
para que esta possa se ver indenizada pelo provedor – e apenas caso descumprida
uma ordem judicial proferida pelo juízo competente23. Por f‌im, ao impor a judicia-
lização do conf‌lito, o dispositivo caminharia em sentido contrário à forte tendência
de tentativa de desabarrotamento do Judiciário no Brasil.
Em sentido contrário, a defesa do art. 19 do MCI sustenta que, além de a siste-
mática nele prevista não ser um mecanismo novo no ordenamento jurídico brasileiro
– já havia previsão semelhante, por exemplo, no direito eleitoral24 –, a medida não
conf‌igura a concessão de uma salvaguarda arbitrária a esses agentes, mas uma proteção
à liberdade de expressão verif‌icada na internet, garantindo-se, assim, o imediatismo
e a interatividade que caracterizam hoje a comunicação na rede.
Esse regime de responsabilização subjetiva também busca evitar incentivos à
criação de um dever contínuo de monitoramento privado e de exclusão de conteúdos
potencialmente controvertidos. Solução diferente poderia viabilizar alguma forma de
censura privada por parte dos provedores, acarretando riscos de restrição indevida à
liberdade de expressão, além de aumentar a imprevisibilidade quanto à responsabili-
dade dos provedores. Esse conjunto de considerações, que tende a aumentar o custo
de serviços, também é lembrado como possível barreira para a inovação tecnológica,
científ‌ica, cultural e social25.
23. SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano
derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO; Adalberto; LIMA,
Cíntia Rosa Pereira de (coord). Direito & Internet. Tomo II: Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).
São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 293-294.
24. Nesse sentido, a Lei nº 12.034/2009, a que se convencionou chamar de minirreforma eleitoral, acresceu
o artigo 57-F à Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições). Cf. LEONARDI, Marcel. Internet e regulação: o bom
exemplo do Marco Civil da Internet. Revista do Advogado. vol. 115, ano 32, p. 99-113. São Paulo: AASP, abril
2012, p. 111: “Ressalte-se que esse modelo não é novo, pois a remoção judicial de conteúdo on-line já faz
parte do sistema brasileiro. A Lei nº 12.034/2009, que tratou da reforma eleitoral, estabeleceu que provedores
somente serão responsabilizados pela divulgação de propaganda eleitoral irregular caso sejam notif‌icados
da existência de decisão da Justiça Eleitoral e não tomem providências para cessar essa divulgação, dentro
do prazo assinalado pela decisão judicial”.
25. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; SOUZA, Carlos Affonso. Responsabilidade civil de provedores na rede: análise
da aplicação do Marco Civil da Internet pelo Superior Tribunal de Justiça. Revista IBERC, Minas Gerais, v.
1, n. 1, p. 01-28, nov.-fev./2019, p. 14-15: “Diante disso, a doutrina destaca importantes argumentos para
embasar a opção do legislador em adotar a responsabilidade subjetiva por omissão do provedor que não
retira o conteúdo ofensivo após ordem judicial. Em primeiro lugar, af‌irma-se que seria equivocado permitir
que os provedores pudessem decidir, como regra, se o conteúdo questionado deveria ou não ser exibido
ou se ele causaria ou não dano, por serem eles empresas privadas. Alega-se também que os critérios para
a retirada de conteúdo seriam muito subjetivos, o que prejudicaria a diversidade e o grau de inovação na
Internet, e que a retirada de conteúdos da rede, de forma subjetiva e mediante mera notif‌icação, poderia
implicar sério entrave para o desenvolvimento de novas alternativas de exploração e comunicação, as quais
poderiam não ser desenvolvidas em razão do receio de futuras ações indenizatórias. Nesse sistema, se uma
suposta vítima identif‌icasse um conteúdo lesivo (ao seu entender) e desejasse sua remoção, bastaria que
ela notif‌icasse o provedor de aplicações de internet. E, caso tal provedor f‌icasse inerte ou entendesse pela
não necessariedade da remoção, ele poderia ter que responder uma ação judicial e, em alguns casos, pagar
uma indenização para a vítima. Esse sistema traria, sem dúvidas, uma insegurança maior para as relações
e poderia justif‌icar remoções de conteúdo sem o devido contraditório”.
FELIPE SCHVARTZMAN
346
Além disso, a ponderação entre a liberdade de expressão e os direitos da per-
sonalidade – atividade tipicamente praticada no exercício da função jurisdicional
– deveria ser realizada pelo Estado-juiz26. Deslocar essa competência aos provedores
de internet pode ainda provocar um efeito silenciador/inibidor do discurso, tolhendo
o debate público e o livre mercado de ideias27. Isso porque, na falta de parâmetros
seguros e pré-def‌inidos de qual princípio deva prevalecer no caso concreto, passa a
ser conveniente aos provedores, por cautela, removerem qualquer conteúdo discu-
tido por uma pretensa vítima, ainda que potencialmente legítimo e protegido pela
liberdade de expressão, em razão do receio do provedor de responder solidariamente
com o autor do conteúdo, caso algum excesso venha a ser apurado pelo Judiciário
na sequência.
Além disso, sustenta-se que a regra do art. 19 não constitui condescendência
legal com situações jurídicas ilícitas, abusivas ou não merecedoras de tutela pelo
ordenamento. Signif‌ica apenas dizer que, apesar da incidência do CDC no serviço
prestado pelos motores de busca na Internet – ou provedores de aplicações, se en-
quadrados na nomenclatura do MCI –, a sua responsabilidade deve f‌icar restrita à
natureza da atividade por eles desenvolvida.
Esse é, aliás, um dos princípios do decálogo do Comitê Gestor da Internet – CGI.
br, proposto em 2009, do qual o Marco Civil da Internet é originário28. Segundo a
Resolução do CGI.br que orienta os dez princípios para a governança e uso da Inter-
net no Brasil, a inimputabilidade da rede signif‌ica dizer que “o combate a ilícitos na
rede deve ser dirigido aos responsáveis f‌inais e não aos meios de acesso e transporte,
sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e
do respeito aos direitos humanos”29.
Por f‌im, o art. 19 do MCI não prevê exatamente uma regra de remoção de conte-
údo, mas antes de responsabilidade civil – embora haja entendimentos que parecem
26. Sobre a ponderação entre esses princípios, cf. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Honra, liberdade de
expressão e ponderação. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 2, abr.-jun./2013. Disponível em:
civilistica.com/honraliberdade-de-expressao-e-ponderacao/>. Acesso em: 15.08.2019.
27. A contribuição de Owen Fiss a respeito da liberdade de expressão e da ameaça do chilling effect é pautada
pela ref‌lexão do autor sobre a intervenção estatal no domínio discursivo. Cf. FISS, Owen M. A ironia da
liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e prefácio de BINENBOJM,
Gustavo; PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, 57: “Aqueles encarregados
de desenhar as instituições devem atribuir o poder de regular o conteúdo – de agir como um mediador – as
agências removidas da arena política. Nunca é uma boa ideia escolher para presidir um encontro alguém
demasiadamente interessado em um resultado. Ademais, um pesado ônus de controlar a ação estatal deve
recair sobre o Judiciário, especialmente porque este se situa fora da arena política. Ao se desincumbir de
tal tarefa, o Judiciário não deve focar o motivo – declarado ou não – da ação, mas deve cuidadosamente
identif‌icar o efeito global da regulação estatal sobre o debate público. A Corte deve se perguntar: a regulação
realmente melhorará a qualidade do debate, ou terá ela efeito oposto?”.
28. Disponível em: co-civil-da-internet-e-uma-grande-vitoria-para-os-
-brasileiros-considera-cgi-br/408>. Acesso em: 15.08.2019.
29. Resolução CGI.br/RES/2009/003/P disponível em: .
Acesso em: 15.08.2019.
347
RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
apontar a existência de uma ordem judicial como única hipótese para a eliminação
de determinado conteúdo na Internet30.
É por isso que, em regra, o art. 19 do MCI não impede um provedor de aplica-
ções de, por iniciativa própria, entender por bem remover determinado conteúdo,
caso o repute como uma ofensa a seus termos de uso, independentemente de ordem
judicial31-32. Fazer valer os termos de uso de uma plataforma, porém, também não
deve signif‌icar a remoção sumária, arbitrária e infundada do conteúdo publicado
por terceiros, sem que lhes seja assegurada ampla defesa, de modo que a retirada
da postagem em questão também possa ser contraditada, evitando que provedores
abusem de sua posição.
Entre os defensores da sistemática adotada no art. 19 do MCI, af‌irma-se que a
melhor solução legislativa para a hipótese seria que o ordenamento jurídico contasse
com uma cláusula semelhante à do “bloqueio do bom samaritano” (“good samari-
tan blocking”). Isso porque, mais do que isentar o provedor da responsabilidade de
forma solidária com o autor da ofensa, a Seção 230 do Communications Decency Act,
30. ROSSETTO, Guilherme Ferreira; ANDRADE, Henrique dos Santos; BENATTO, Pedro Henrique Abreu.
A responsabilidade dos provedores de aplicação no Marco Civil da Internet: ref‌lexões sobre a viabilidade
da medida com foco nos problemas que assolam o Poder Judiciário. Revista de Direito Privado. vol. 69. ano
17. p- 47-67. São Paulo: Ed. RT, set. 2016, p. 53: Antes do Marco Regulatório da Internet, a 3ª e 4ª Turmas
do STJ vinham pacif‌icando – principalmente nos casos envolvendo direitos autorais – o já criticável me-
canismo de notif‌icação e retirada de conteúdo denominado notice and take down (notif‌ique e derrube), o
qual, sinteticamente, preceitua que o provedor deve retirá-lo assim que notif‌icado pelo usuário, até mesmo
extrajudicialmente, sob pena de responder solidariamente com o autor imediato do dano. No entanto, a
Lei 12.695/2014 matizou o notice and take down ao introduzir nova exigência: a notif‌icação judicial. Agora,
para que eventual conteúdo seja eliminado da internet é preciso que o interessado provoque o Poder Judi-
ciário, o qual, após analisar a demanda e com base numa decisão fundamentada, emitirá ordem negativa
ou positiva”.
31. Ainda em referência ao dispositivo do Projeto de Lei do Marco Civil da Internet, quando a regra sobre a
responsabilidade civil dos provedores de aplicação por atos de terceiros correspondia a outro artigo,
conf‌ira-se a observação de Marcel Leonardi, que pode ser aproveitada integralmente para a versão
atual e aprovada da lei, cf. LEONARDI, Marcel. Internet e regulação: o bom exemplo do Marco Civil
da Internet. Revista do Advogado. vol. 115, ano 32, p. 99-113. São Paulo: AASP, abril 2012, p. 108-109:
“Um ponto fundamental: o art. 15 do Marco Civil da Internet não diz que remoção de conteúdo somente
pode ocorrer por força de ordem judicial. O artigo trata de responsabilidade civil, e não de remoção
forçada de conteúdo. Ou seja: o artigo esclarece que o provedor pode ser responsabilizado em caso
de descumprimento de ordem judicial de remoção forçada de conteúdo, mas não diz – nem poderia
dizer – que qualquer remoção de conteúdo somente por ordem judicial. Isso signif‌ica que cada pro-
vedor continua livre para implementar as políticas que entender pertinentes para remoção voluntária
de conteúdo. Não se deve pensar, portanto, que o provedor está de mãos atadas, aguardando por uma
ordem judicial: ele pode perfeitamente remover o conteúdo de acordo com seus termos de uso, suas
políticas e outras práticas”;
32. NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade: parte II.
Consultor Jurídico, 20 fev. 2020. Disponível em: .conjur.com.br/2020-fev-20/ellen-gracie-
-constitucionalidade-marco-civil-internet-ii>. Acesso em: 15.05.2021: ”18. É importante mencionar que o
Marco Civil da Internet não impede a atuação espontânea dos provedores de aplicação em remover conteúdo
gerado por terceiros, nos casos em que verif‌icarem, de acordo com os parâmetros estabelecidos em suas
políticas de uso, que o conteúdo gerado violou as regras estabelecidas entre provedores e usuários para uso
do serviço”.
FELIPE SCHVARTZMAN
348
nos Estados Unidos, também incentiva a remoção espontânea de materiais que o
provedor repute ilícitos33-34.
A regra do art. 19 do MCI, é certo, também (i) não afasta o dever de indenizar
que possa ser imputado ao responsável principal que, diretamente como autor
de uma ofensa, houver disponibilizado conteúdo, informação e comentários
lesivos na Internet; (ii) tampouco altera o regime de responsabilidade civil de
provedores de aplicação por atos próprios. Em síntese, essa previsão do MCI diz
respeito somente à responsabilização aplicável aos provedores de aplicação por
atos de terceiro.
A def‌inição do regime de responsabilidade civil para essa situação específ‌ica,
como lembra Carlos Affonso Souza, pressupõe duas perguntas essenciais, sendo a
resposta af‌irmativa à primeira delas condicionante da segunda: (i) teria o provedor
o dever de f‌iscalizar, monitorar e consequentemente f‌iltrar os conteúdos que são
submetidos por seus usuários?; e (ii) deve o provedor responder se, uma vez ciente
do conteúdo reputadamente danoso, falha em removê-lo, usualmente quando noti-
f‌icado extrajudicialmente pela vítima?
33. SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora:
Editar Editora Associada Ltda., 2016, p. 73: “Cumpre lembrar que o mencionado artigo 230, além de isen-
tar o provedor da responsabilidade como se autor do conteúdo lesivo fosse, também incentiva a remoção
espontânea de materiais que o provedor por acaso repute ilícitos. Nessas circunstâncias, entra em prática o
chamado ‘Bloqueio do Bom Samaritano’ (‘good samaritan blocking’), que impede a parte prejudicada por
essa remoção de eventualmente responsabilizar o provedor. Assim dispõe o artigo 230 (c)(2): ‘(c) Proteção
do Bloqueio do Bom Samaritano e Remoção de Material Ofensivo (...) (2) Responsabilidade Civil – Nenhum
provedor ou usuário de serviço interativo de computador será responsabilizado por: (A) qualquer ação
voluntária, tomada em boa-fé para restringir acesso ou disponibilidade de material que o provedor ou o
usuário considere obsceno, indecente, lascivo, sórdido, excessivamente violento, ameaçador, ou de qualquer
forma questionável, independentemente da proteção constitucional desse material; ou (B) qualquer ação
tomada criar ou disponibilizar para provedores de informação ou outros os meios técnicos para restringir
acesso ao material descrito no item (1)’”.
34. Nos últimos anos, porém, uma possível reforma da Seção 230 vem sendo debatida por diferentes poderes e
autoridades nos Estados Unidos. Algumas iniciativas nesse sentido podem ser sumariadas nos seguimentos
movimentos em ordem cronológica: (i) em maio de 2020, Donald Trump, presidente dos EUA à época,
publicou a “Executive Order on Preventing Online Censorship”, propondo a relativização da imunidade ga-
rantia pela Seção 230(c) da CDA às plataformas de internet pelo conteúdo produzido por seus usuários.
A medida foi publicada após o Twitter adicionar etiquetas de checagem de fatos em publicações do então
presidente estadunidense naquela rede social; (ii) em setembro de 2020, o Departamento de Justiça dos
EUA enviou ao Congresso uma proposta legislativa que também pretendia reformar a imunidade conferida
às plataformas de internet, sob o fundamento de promover transparência e discurso aberto, bem como
incentivar que as plataformas tomassem medidas contra conteúdos e atividades ilícitos online. Para isso,
a imunidade garantida pela Seção 230 do CDA seria retirada, entre outras medidas, no caso de remoção de
“conteúdo questionável”; (iii) em outubro de 2020, os presidentes-executivos do Twitter, Alphabet/Google
e Facebook participaram de audiência no Senado dos EUA para debater a Seção 230 do CDA e a responsa-
bilidade das plataformas por conteúdo de terceiros; e (iv) em março de 2021, os presidentes-executivos do
Facebook, Twitter e Alphabet/Google participaram de audiência com o Comitê de Energia e Comércio da
Câmara dos Deputados dos EUA para debater desinformação nas plataformas, depois que o Capitólio, em
janeiro daquele ano, foi invadido por partidários do então presidente Donald Trump para protestar contra
o resultado da eleição presidencial de 2020.
349
RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
Ao f‌im e ao cabo, é a resposta a essas duas perguntas que vai def‌inir se a mo-
dalidade de responsabilidade civil deve ser (i) objetiva; (ii) subjetiva e def‌lagrada
por descumprimento de notif‌icação extrajudicial; ou (iii) subjetiva e def‌lagrada por
descumprimento de ordem judicial.
Como se demonstrou, a opção do legislador, no art. 19 do MCI, foi no sentido
de que o provedor, como regra, não responde por conteúdo de terceiros quando
descumprir ordem judicial específ‌ica, ressalvadas duas exceções pontuais previstas
no texto da lei – divulgação de cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado e
uso indevido de conteúdo protegido por direito autoral.
Primeiro, nos casos de divulgação, sem autorização de seus participantes, de
imagens, vídeos ou outros materiais contendo cenas de nudez ou atos sexuais de
caráter privado – o que engloba, por exemplo, a chamada pornograf‌ia de vingança
–, o provedor será responsabilizado subsidiariamente “quando, após o recebimento
de notif‌icação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de
forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização
desse conteúdo” (MCI, art. 21).
Em segundo lugar, a aplicação da regra geral – de que a responsabilidade civil
só é def‌lagrada em caso de descumprimento de ordem judicial – para infrações a
direitos autorais e conexos depende de previsão legal específ‌ica, mas a técnica legis-
lativa adotada nessa exceção, já dirigida ao futuro legislador, aponta que a legislação
“deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da
Constituição Federal” (MCI, art. 19, §2º).
Fora essas duas exceções, o MCI não prevê outra situação em que um provedor
de aplicação possa responder por ato de terceiro se descumprir uma notif‌icação
extrajudicial privada.
4. A (IM)POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PRÉVIA DAS EMPRESAS
JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS PUBLICADOS POR USUÁRIOS
EM SEUS SITES: ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL
1.352.053/AL
O STJ analisou especif‌icamente a discussão referente à responsabilização civil
das empresas jornalísticas por comentários publicados por usuários nos autos do
recurso especial 1.352.053/AL, julgado no início de 2015. Trata-se de caso em que um
desembargador do Tribunal de Justiça de Alagoas ajuizou ação em face de empresa
jornalística pleiteando o pagamento de indenização por danos morais. O pedido foi
feito em razão de ofensas postadas por usuários na seção de comentários do portal
de notícias, em relação a uma matéria jornalística que dava conta de um julgamento
em que o referido desembargador havia atuado como relator.
Em síntese, o STJ decidiu pela responsabilização da empresa gestora do
portal de notícias, por entender que a ausência de controle sobre os comentários
FELIPE SCHVARTZMAN
350
postados por terceiros configuraria defeito do serviço. Confira-se a ementa do
acórdão:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL.
INTERNET. PORTAL DE NOTÍCIAS. RELAÇÃO DE CONSUMO. OFENSAS POSTADAS POR
USUÁRIOS. AUSÊNCIA DE CONTROLE POR PARTE DA EMPRESA JORNALÍSTICA. DEFEITO
NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA PERANTE A VÍTIMA. VALOR
DA INDENIZAÇÃO.
1. Controvérsia acerca da responsabilidade civil da empresa detentora de um portal eletrônico por
ofensas à honra praticadas por seus usuários mediante mensagens e comentários a uma notícia
veiculada.
2. Irresponsabilidade dos provedores de conteúdo, salvo se não providenciarem a exclusão do
conteúdo ofensivo, após noticação. Precedentes.
3. Hipótese em que o provedor de conteúdo é empresa jornalística, prossional da área de co-
municação, ensejando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
4. Necessidade de controle efetivo, prévio ou posterior, das postagens divulgadas pelos usuários
junto à página em que publicada a notícia.
5. A ausência de controle congura defeito do serviço.
6. Responsabilidade solidária da empresa gestora do portal eletrônica perante a vítima das ofensas.
7. Manutenção do ‘quantum’ indenizatório a título de danos morais por não se mostrar exagerado
8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO”35.
No julgamento, o relator reconheceu, acertadamente, que as empresas jornalís-
ticas atuam como provedores de informação em relação às notícias por elas publicadas,
ao passo que atuam como provedores de conteúdo quanto aos comentários publicados
por seus usuários, sem controle prévio da plataforma.
Apesar disso, o Tribunal não aplicou a consequência esperada a partir dessa
classif‌icação, que seria a ausência de responsabilidade prévia do portal de notícias
pelos comentários postados por terceiros.
Pelo contrário, o jornal foi considerado solidariamente responsável com o au-
tor da ofensa, mesmo tendo excluído as mensagens ofensivas tão logo os fatos lhe
foram comunicados por meio da citação para responder a ação judicial, em razão
do que o STJ entendeu ser uma particularidade relevante: o provedor de conteúdo
era também um portal de notícias, de modo que a sua atividade seria precisamente
o fornecimento de informações ao público consumidor, ainda que não inserisse
diretamente o material na seção de comentários de seus usuários.
Essa circunstância particular, segundo o julgado, diferenciaria as empresas jor-
nalísticas das empresas de informática (e.g., Google e Microsoft, citadas no acórdão),
mesmo quando ambas atuam como provedoras de conteúdo36. A Terceira Turma do
35. STJ, REsp 1352053/AL, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 24.03.2015, DJe 30.03.2015.
36. No mesmo sentido, também pelo desacerto do entendimento f‌irmado no REsp 1.352.053/AL, cf. QUEI-
ROZ, João Quinelato de. Aplicabilidade do Marco Civil da Internet na responsabilidade civil por uso
351
RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
STJ entendeu que, em se tratando de um portal de notícias, a ausência de qualquer
controle pelo veículo, prévio ou posterior, conf‌igura defeito do serviço, por existi-
rem uma relação de consumo e uma atividade desempenhada por jornalistas, cujo
controle do potencial ofensivo seria não apenas viável, mas necessário em razão da
atividade inerente ao objeto da empresa.
Além disso, vale registrar que o Marco Civil da Internet não foi aplicado ao
caso porque os fatos examinados eram anteriores à edição da Lei nº 12.965/14, mas
também porque o MCI, ao menos pelo que o f‌inal da fundamentação do acórdão
sinaliza, seria inaplicável em todo caso, por não tratar da responsabilidade civil dos
provedores de conteúdo37. De forma específ‌ica, essa ressalva indicada no julgado é
o ponto do acórdão que mais interessa para a análise aqui proposta.
Isso porque, com essa ressalva f‌inal, o julgado parece sugerir que a conclusão
pela responsabilidade do portal de notícias teria sido a mesma caso os fatos anali-
sados também fossem posteriores à edição do MCI. Nesse caso, desconsidera-se
que o provedor de conteúdo, por se enquadrar no amplo conceito de “funciona-
lidade que pode ser acessada por meio de um terminal conectado à internet”
(MCI, art. 5º, VI), também pode ser considerado um provedor de aplicações38.
Esse foi o entendimento f‌irmado pelo próprio STJ quando do julgamento do REsp
1.568.935/RJ, em que se reconheceu que os provedores de e-mail, de conteúdo e
de hospedagem, quando oferecem ferramentas e funcionalidades acessíveis por
meio de um terminal conectado à internet, podem ser denominados de provedores
de aplicações ou de serviços:
indevido de conteúdo protegido por direitos autorais na internet. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 5,
n. 2, 2016. Disponível em: . Acesso
em: 15.08.2019: “Em nosso entendimento, parece equivocada tal interpretação aplicada especialmente
aos sites de notícias. Impor a estes sites a obrigação de controle prévio dos comentários é restringir a
liberdade da rede e a liberdade de livre manifestação do pensamento (art. 5º IV da CR/88), de modo que
se deve privilegiar pelos espaços abertos de debate na rede e a eventual responsabilidade civil recair
sobre cada usuário”.
37. STJ, REsp 1352053/AL, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 24.03.2015, DJe 30.03.2015: ”Cabe
esclarecer que o marco civil da internet (Lei 12.965/14) não se aplica à hipótese dos autos, porque os fatos
ocorreram antes da entrada em vigor dessa lei, além de não se tratar da responsabilidade dos provedores de
conteúdo”.
38. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; SOUZA, Carlos Affonso; NUNES, Beatriz Laus Marinho. Responsabilidade
Civil de Provedores. In: SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo; BOTTINO, Celina (coord.) Marco
Civil da Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 96: “Os
provedores de aplicações de Internet podem ser compreendidos como a pessoa que fornece um conjunto de
funcionalidades que são acessadas por meio de um terminal conectado à internet. O provedor de aplicações
de Internet aparenta englobar os tradicionalmente chamados provedores de conteúdo (que disponibilizam
na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores de informação ou pelos próprios usuários da
Internet, como as redes sociais, os aplicativos de mensagens e as plataformas para compartilhamento de
vídeos) e de hospedagem (que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto), tendo em
vista que, no artigo 19 do MCI, foi determinado que a responsabilidade civil desse provedor, por conteúdo
gerado por terceiro, será omissiva e a partir da notif‌icação judicial”.
FELIPE SCHVARTZMAN
352
“Da lição do Professor Frederico Meinberg Ceroy (‘Marco Civil da Internet: conceitosde provedo-
res’), publicada em diversossitesjurídicos, é possível elencar os principais tipos deprovedores:
(i)Provedores debackbone– ligados à infraestrutura da rede mundial decomputadores, são
os responsáveis por viabilizar o grande tráfego de informações.Comparando-se à uma malha
rodoviária, seriam ashighwayspor onde circulam as informaçõesem massa. São exemplos de
provedores debackboneno Brasil: Embratel, Telefônica, Tim Intelig,CTBC, dentre outros.
(ii)Provedores de acesso– também estão relacionados à infraestrutura da rede,fornecem o acesso
dos consumidores à internet, como se fossem as vias secundárias para sechegar àshighways. São
exemplos: Net Virtua, GVT, Tim, Claro, Vivo etc.
(iii)Provedores de correio eletrônico (e-mail)– responsáveis por uma dasprincipais nalidades
da internet, que é o envio de mensagens particulares a um destinatário ougrupo de destinatários
especícos. O envio e o recebimento dependem da identicação dosrespectivos usuários atra-
vés denickname(apelido na rede) e senha. Exemplos: Hotmail (daMicrosoft), Yahoo, Gmail (do
Google), entre tantos outros.
(iv)Provedores de conteúdo– são aqueles que disponibilizam na internetinformações para consul-
ta pública, mantidas em local de armazenamento (servidor) próprio ouem terceiros especializados
(provedores de hospedagem). Exemplos: portais de veículos deimprensa, sítios institucionais e
de informação de órgãos públicos, redes sociais etc.
(v)Provedores de hospedagem– guardam dados de terceiros em seus própriosservidores, cujo
acesso a essas informações pode ser pública ou restrita, dependendo da opçãodo contratante do
serviço. No Brasil, temos o Hostgator, a Locaweb, o Uol Host e vários outros.
Os três últimos tipos de provedores acima, quando oferecem ferramentas efuncionalidades
acessíveis por meio de um terminal conectado à internet, podem serdenominados deProvedores
de Aplicações ou de Serviços 39 (destaque acrescentado).
E parece natural que um portal de notícias possa assumir a faceta de um pro-
vedor de aplicação, considerando que a própria seção de comentários dos jornais
na Internet, não raro, é integrada a contas de redes sociais – estas, sim, conside-
radas provedoras de aplicação sem maiores dúvidas –, a exemplo do Facebook, o
que permite aos usuários publicar mensagens a partir dos perf‌is já criados nessas
plataformas.
Daí se extrai que as empresas jornalísticas, se não forem consideradas prove-
doras de conteúdo – atraindo, assim, o regime de responsabilização correspondente,
que é aplicável às empresas de informática quando atuam nessa mesma qualidade
de provedoras –, podem ser compreendidas como provedoras de aplicação quando
disponibilizam espaços em seus sites para comentários de usuários e leitores. Como
consequência desse reconhecimento, aplica-se a regra prevista no art. 19 do Marco
Civil da Internet, de modo que os portais de notícia apenas serão responsabilizados
por comentários ofensivos postados por terceiros, caso descumpram ordem judicial
para a retirada do material.
39. STJ, Terceira Turma, REsp 1568935/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 05.04.2016, DJe
13.04.2016.
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RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
5. CONCLUSÃO
Como se viu, a forma como os jornais informam e os leitores consomem infor-
mações mudou. A interatividade dos usuários e a instantaneidade das informações
online são tônicas do jornalismo digital. Nesse cenário, é comum que os jornais
ofereçam espaço dedicado em suas plataformas para promover engajamento com a
sua comunidade de seguidores – seja com o próprio veículo, seja entre os usuários,
uns com os outros.
Após evolução jurisprudencial sobre o tema, o STJ (i) refutou a tese de que
a produção de conteúdo ofensivo integra risco da atividade, bem como rejeitou a
ideia de que a ausência de um mecanismo de controle desse conteúdo conf‌iguraria
prestação de serviço defeituoso; e (ii) f‌irmou o entendimento de que, a respeito dos
provedores de conteúdo em geral, a sua responsabilidade depende da existência ou
não do controle editorial do material disponibilizado na rede. Não havendo esse
gerenciamento, a responsabilização somente seria devida se, após notif‌icação para
a retirada, não o f‌izesse; se houver a moderação prévia, o provedor de conteúdo se
tornaria responsável por eventual publicação ofensiva de terceiro independentemente
de notif‌icação.
Embora o STJ reconheça que um único agente pode desempenhar funções de
diferentes provedores na internet, admitindo que empresas jornalísticas atuem como
provedores de informação (em relação às notícias por elas postadas) e provedores de
conteúdo (quanto à seção de comentários de seus leitores), o Tribunal, para f‌ins de
responsabilização civil, não aplicou as consequências que se extraem dessa distinção
no julgamento do REsp 1.352.053/AL.
Naquela oportunidade, o STJ entendeu ser necessário diferenciar empresas
jornalísticas de empresas de informática, sob o fundamento de que o controle edito-
rial de conteúdo faria parte da atividade inerente ao objeto do portal de notícias em
questão, mas não seria exigido das empresas que o Tribunal classif‌icou como sendo
as da “área da informática”.
Ao julgar eventos anteriores ao Marco Civil da Internet, o STJ reconheceu a
responsabilidade civil objetiva de um portal jornalístico por ofensa publicada por
terceiro na seção de comentários (REsp 1.352.053), ao passo que, quando a posta-
gem é inserida em uma rede social, por exemplo, o próprio acórdão daquele julgado
conf‌irma que o Tribunal não exige esse dever de monitoramento prévio e contínuo
do conteúdo disponibilizado por usuários na Internet – exigência que é característica
de um controle editorial esperado de agentes que podem responder de forma objetiva
por danos causados por terceiros.
Nesse cenário, a circunstância de o jornalismo, hoje, ser produzido e consu-
mido de forma mais interativa, inclusive com a intervenção de terceiros (e.g., seção
de comentários dos usuários na Internet, às vezes até mesmo conectados por meio
FELIPE SCHVARTZMAN
354
de perf‌il cadastrado em rede social), faz com que essa distinção entre empresas de
tecnologia e de mídia seja menos óbvia.
Embora o Marco Civil da Internet não tenha servido de fundamento ao julga-
mento do REsp 1.352.053, em razão de os fatos terem ocorrido antes de sua vigên-
cia, o acórdão parece sinalizar que a Lei nº 12.965/14, ainda que estivesse em vigor,
também não teria abordado a responsabilidade civil dos provedores de conteúdo40.
Essa conclusão parece ser incompatível com a própria jurisprudência do STJ,
que admite a possibilidade de provedores de conteúdo serem tratados como provedores
de aplicação (REsp 1568935/RJ), o que atrai a incidência do art. 19 do MCI e, por
consequência, a conf‌iguração de responsabilidade civil apenas após descumprimento
de ordem judicial específ‌ica.
Não bastasse, o ponto se torna mais evidente com a constatação de que a seção
de comentários dos portais jornalísticos na Internet, não raro, é integrada com redes
sociais, que são provedores de aplicação, o que apenas poderia reforçar o art. 19 da
Lei nº 12.965/14 como regime de responsabilidade civil aplicável às empresas jor-
nalísticas por comentários de terceiros na Internet.
Dessa forma, em relação à seção de comentários das empresas jornalísticas sem
moderação prévia, (i) ou bem o portal de notícias atua como provedor de conteúdo – e,
pela jurisprudência do STJ anterior à edição da Lei nº 12.965/14, esses provedores
não respondem por mensagens publicadas diretamente por seus usuários, salvo se
não providenciarem a exclusão do conteúdo ofensivo após notif‌icação particular;
40. A preocupação com a ressalva feita no acórdão de que o Marco Civil da Internet não seria aplicável para
a responsabilização de provedor de conteúdo, mesmo que os fatos fossem posteriores à edição da lei, se
apoia também em um levantamento realizado pelo grupo de pesquisa PLEB (Pesquisa sobre Liberdade de
Expressão no Brasil), do Núcleo de Estudos Constitucionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Em 2018, o grupo analisou apelações cíveis julgadas pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro (TJRJ), entre 2011 e 2017, com resultados que ainda serão publicados. No entanto, com
base em apresentação inicial feita pelo grupo, a PLEB sinaliza que, mesmo quando os julgados enfrentam
fatos posteriores à edição do MCI, há o risco de o magistrado simplesmente deixar de aplicar a Lei nº
12.965/14, sem apresentar razão para tanto. O estudo destaca que o recurso extraordinário 1.037.396, que
teve repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, deve analisar a constitucionalidade do
art. 19 do MCI, depois que a Turma Recursal do Colégio Recursal originário naquele processo declarou o
dispositivo inconstitucional, aplicando a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consu-
midor a uma rede social (provedora de aplicação). Além desse caso, há um segundo recurso extraordinário
que trata da constitucionalidade do art. 19 do MCI (RE 1.057.258), relatado pelo Min. Luiz Fux. Ambos
chegaram a ser pautados para julgamento no dia 4 de dezembro de 2019, mas o Presidente do Supremo à
época e relator de um dos recursos, Min. Dias Toffoli, retirou os recursos de pauta para convocar audiência
pública, em conjunto com o Min. Luiz Fux. As audiências chegaram a ser designadas para os dias 23 e
24 de março de 2020, mas a ocorrência da pandemia de Covid-19 suspendeu a convocação e novas datas
seguem pendentes de def‌inição. Embora a constitucionalidade do art. 19, do MCI, ainda vá ser enfrentada
pelo STF por ocasião do julgamento desses recursos extraordinários, o levantamento feito pelo grupo de
pesquisa PLEB da PUC-Rio manifesta uma preocupação válida: “se os magistrados não estão declarando a
sua inconstitucionalidade, que diferença isso faria?”. Cf. LEITE, Fábio Carvalho. Por que juízes não aplicam
o art. 19 do Marco Civil da Internet?. Disponível em: .plebpuc.science/post/por-que-ju%C3%A-
Dzes-n%C3%A3o-aplicam-o-art-19-do-marco-civil-da-internet?fbclid=IwAR1R7Pntb20DLcUxpWL8X-
GhuEs-K0Ums_Zn_DdDdG55M48tu4NXPvODffAM>. Acesso em: 15.10.2019.
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RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESAS JORNALÍSTICAS POR COMENTÁRIOS DE TERCEIROS NA INTERNET
ou (ii) o jornal se enquadra na def‌inição ampla de provedor de aplicação, o que atrai
o regime de responsabilidade civil previsto no art. 19 do Marco Civil da Internet,
derivada do descumprimento de ordem judicial.
Seja como for, parece não caber o regime de responsabilidade objetiva dos por-
tais de notícia, de forma solidária com os autores de conteúdo ofensivo, a partir de
uma distinção apontada entre empresas de jornalismo e informática, quando ambas
atuam como a mesma modalidade de provedor e sem que a legislação faça alguma
distinção nesse sentido.

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