Responsabilidade civil por 'infidelidade virtual'?
Autor | Karenina Carvalho Tito |
Ocupação do Autor | Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais e Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora. Advogada |
Páginas | 331-347 |
RESPONSABILIDADE CIVIL POR
“INFIDELIDADE VIRTUAL”?
Karenina Carvalho Tito
Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais e Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra. Professora. Advogada.
Sumário: 1. Introdução do problema. 2. O conteúdo moral do dever de delidade conjugal.
3. A ilicitude da indelidade virtual. 4. Os danos da indelidade virtual. 5. A prova ilícita da
indelidade virtual. 6. Notas conclusivas. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO DO PROBLEMA
Um bom entendimento da pergunta que se formula no título deste estudo implica
admitir o impacto da internet nas relações sociais e, em particular, nas relações conjugais.
O surgimento de afinidades erótico-afetivas “virtuais” fora da relação conjugal é, sem
dúvida, capaz de questionar a noção que temos de “infidelidade” no âmbito da responsa-
bilidade civil no casamento. E faz sentido que assim seja, principalmente porque “novos”
comportamentos podem implicar diferentes soluções jurídicas e permitir identificar
“novos” danos1. Falamos de comportamentos que surgem à distância, online, através
de texto (ex. chats), imagem (ex. partilha de fotografias), vídeo (ex., Skype) ou voz (ex.
WhatsApp), como forma de encetar um relacionamento com um conteúdo erótico-afe-
tivo e ou pornográfico no mundo virtual. É também fruto do aumento exponencial da
existência de websites de relacionamento e de chats em plataformas como o Instagram
ou o Facebook. A diferença em relação às “antigas” relações extraconjugais que podiam
ser estabelecidas à distância, por carta ou telefone, é significativa2, desde logo porque a
internet, utilizada nos atuais meios de comunicação – através de smartphones, tablets ou
laptops –, permite maior mobilidade, anonimato e privacidade.
O problema à luz da responsabilidade civil entre cônjuges é mais complexo do que
aparenta. Em primeiro lugar devido à própria noção ou natureza do dever de fidelidade
conjugal. Os avanços tecnológicos possibilitaram novas formas de relacionamento que
colocaram em crise o próprio conteúdo de “fidelidade”, passando o problema também
para o mundo virtual. A questão está em saber se a prática de relacionamentos cibernéticos
1. Ainda que não sejam comportamentos tão “novos” quanto isso, considerando que, nos anos 90, com o surgimento
das novas tecnologias, já se discutia o impacto da internet na sociedade e das várias opções que as pessoas casadas
tinham para comunicar (e-mail, fóruns, chats, vídeo-conferência etc.) e cometer uma “infidelidade virtual”. Veja-se,
em especial, HALL, Christina Tavella. Sex Online: Is this Adultery? Hastings Communications and Entertainment
Law Journal, São Francisco, v. 20, n. 1, 1997, p. 201-221.
2. Na opinião de PONZONI, Laura de Toledo. Infidelidade Virtual – realidade com efeitos jurídicos. Revista da Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 102, jan./dez. 2007, p. 1031, “o que se diz ou se faz
na Internet, portanto, não difere muito do que ocorria nos amores vividos através de cartas ou telefone”.
KARENINA CARVALHO TITO
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de natureza afetiva ou sexual – confidências afetivas, flerte, troca de experiências sexuais
e, até mesmo, simulações do ato sexual – podem ou não configurar uma “infidelidade”
com relevância jurídico-civil, sobretudo ante a falta de contato físico. Esta questão está
relacionada com o eventual conteúdo moral do dever de fidelidade conjugal.
Em segundo lugar, é essencial identificar o bem jurídico que se pretende proteger
com a tutela jurídico-civil perante as práticas de “infidelidade virtual”, o que está inti-
mamente ligado à ilicitude e com o tipo de responsabilidade civil em causa: contratual
ou extracontratual? Repare-se que há diferentes formas de se conceber o requisito da
ilicitude: tanto podemos entender que haverá uma responsabilidade civil extracontratual
pela violação de direitos de personalidade, como podemos defender que a ilicitude decorre
da própria violação dos deveres decorrentes do casamento, enquanto responsabilidade
civil contratual.
Em terceiro, cumpre perceber se existe efetivamente algum tipo de dano identificável
com as práticas de ciberinfidelidade, inclusivamente algum “dano existencial”, para que
possamos falar de uma verdadeira responsabilidade civil.
Por fim, focados no direito processual civil, vamos olhar para a problemática da
obtenção de provas ilícitas mediante a intromissão nos referidos meios de comunicação
pessoais – smartphones, tablets ou laptops. Vamos começar por enunciar argumentos a
favor da admissibilidade da prova ilícita no processo civil, com vista a favorecer a verdade
dos fatos da infidelidade virtual, passando, depois, à procura de argumentos a favor da
sua inadmissibilidade, na medida dos limites constitucionais à descoberta da verdade.
São estas as questões que propomos debater, todas interligadas ao mesmo problema:
a responsabilidade civil por “infidelidade virtual”.
2. O CONTEÚDO MORAL DO DEVER DE FIDELIDADE CONJUGAL
A interpretação tradicional do dever de fidelidade conjugal passa por englobar dois
aspectos, um positivo e outro negativo: a disponibilidade dos cônjuges em manterem
relações sexuais entre si e a proibição de as ter com terceiros3. Trata-se essencialmente
de identificar o dever de fidelidade com a fidelidade física, dando especial importância ao
dever de conteúdo negativo que proíbe o adultério e que obriga à abstenção (non facere)
de atos sexuais com terceiro4. Ainda assim, a “infidelidade” com relevância jurídica
deverá existir muito para além de um qualquer conceito de fidelidade física reduzida a
um “ato sexual de relevo”5.
3. De acordo com ALONZO MENDOZA, Pamela. Daños morales por infidelidad matrimonial. Um acercamiento al
derecho español. Revista Chilena de Derecho y Ciencia Política, Santiago, v. 2, n. 2, 2011, p. 47
4. O adultério abrange todos os actos sexuais realizados com outra pessoa que não o cônjuge: a copula vaginal, a
cópula vulvar ou vestibular, o coito anal, o coito oral, a masturbação com intervenção de terceiro, o auxilio à
masturbação etc.. Cfr. PINHEIRO, Jorge Duarte. O direito de família contemporâneo. 5. ed. Coimbra: Almedina,
2016, p. 380.
5. Muito discutido no âmbito do direito penal a propósito dos crimes contra a liberdade sexual. A propósito, veja-se
a noção de “ato sexual de relevo” em ANTUNES, Maria João. Artigo 163.º (coacção sexual). In: Comentário Co-
nimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 447-452.
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