Responsabilidade civil nas relações familiares

AutorLuciana Zacharias Gomes Ferreira Coêlho
Páginas435-459

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Ver Nota1

1. Noções introdutórias

A temática da responsabilidade civil vem sendo ressignificada no ordenamento jurídico, haja vista o fenômeno da despatrimonialização das relações jurídicas e da repersonalização do direito privado, com especial enfoque ao resguardo da dignidade da pessoa humana em todas as suas dimensões, inclusive familiar e afetiva. Neste sentido, tratar de eventuais indenizações oriundas de danos provocados no âmbito do direito das famílias – ramo que pressupõe o envolvimento de profundos laços emocionais –, torna-se tarefa de difícil consecução. São diversas e sensíveis as particularidades apresentadas nas relações intersubjetivas familiares, razão pela qual falta consenso no tratamento da questão, havendo opiniões favoráveis e contrárias à incidência da responsabilidade civil entre pessoas que estabeleceram uma vida em comum.

O instituto da família ganhou efetiva proteção legislativa especialmente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que a reconheceu como base da sociedade, gozando de especial proteção do Estado. Elevou a união estável ao status de entidade familiar e também atribuiu reconhecimento aos núcleos monoparentais diferenciados, formados por filhos e pais separados ou divorciados. Igualou homens e mulheres no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal e também pôs fim à ideia de indissolubilidade do matrimônio, regulando em definitivo a separação e o divórcio. No que concerne à filiação, determinou tratamento idêntico aos filhos concebidos dentro ou fora do casamento e aos adotivos, no que tange a questões pessoais e patrimoniais2.

Desde então, os diversos arranjos familiares passaram a ser regidos por princípios específicos, implícitos ou explícitos, visando o respeito às diferenças entre os membros da família e suas necessidades particulares. Tais ditames encontram-se presentes não apenas no texto constitucional, mas também no Código Civil de 2002 e na legislação esparsa, refletindo o espírito protetor e conciliador do ordenamento no que tange às relações familiares, calcadas em laços afetivos. Sobre o tema, assim manifesta-se Paulo Luiz Neto Lôbo (2002):

Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em

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vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. A Constituição abriga princípios implícitos que decorrem naturalmente de seu sistema, incluindo-se no controle da constitucionalidade das leis. [...].

A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família.3O resguardo de princípios como a afetividade, a igualdade entre cônjuges e companheiros, o respeito às diferenças e à pluralidade familiar, a convivência e solidariedade em família além da proteção integral às crianças, adolescentes e idosos, dentre tantos outros que permeiam a legislação vigente, revela grande importância. Isto porque o direito das famílias não está vinculado a questões de estrita legalidade, antes deve ser compreendido como ramo em constante evolução, dadas as mutações permanentes das relações intersubjetivas – o que implica na necessidade de interpretações normativas e principiológicas cuidadosas, a fim de respeitar todos os aspectos próprios de uma estrutura familiar.

Portanto, em havendo conflitos nesta seara, resultantes em possíveis danos materiais ou morais, faz-se necessária a presença da sensibilidade do julgador para decidir sobre a incidência ou não da responsabilidade civil entre pessoas de mesma convivência familiar. Por certo que a ruptura dos laços familiares, seja em razão de rompimento de noivado, separação ou divórcio; abandono afetivo; desistência de procedimento de adoção e violência doméstica, dentre tantas outras mazelas que podem ocorrer na esfera do lar, são acontecimentos traumáticos e dolorosos, que se refletem na intimidade das pessoas envolvidas.

Embora esteja insculpido no art. 1.513 do Código Civil o princípio da não intervenção ou da liberdade no que tange a questões familiares, preconizando que: “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”, calcado na ideia de autonomia

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privada e livre gestão das escolhas do núcleo familiar, não se deve imaginar que o Estado desassistirá aqueles que necessitem de proteção e amparo caso se vejam violados em seus interesses particulares, nem permitirá ofensas ao interesse cole-tivo. Esclarece Flávio Tartuce (2007):

[...] o real sentido do texto legal é que o Estado ou mesmo um ente privado não pode intervir coativamente nas relações de família. Entretanto, o Estado poderá incentivar o controle da natalidade e o planejamento familiar por meio de políticas públicas. Vale lembrar, também, que a Constituição Federal de 1988 incentiva a paternidade responsável e o próprio planejamento familiar, devendo o Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desses direitos, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas (art. 227, § 7º, da CF/88). Além disso, o Estado deve assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (art. 227, § 8º, da CF/88). Tudo isso consagra o princípio da não-intervenção. Mas vale lembrar que esse princípio deve ser lido e ponderado frente a outros princípios.4Tendo em vista que a legislação pátria tutela os interesses da pessoa humana e que a família é reconhecida como base de toda a estrutura social, poderia o Estado intervir no sentido de reprimir quaisquer ofensas aos direitos subjetivos nas relações familiares, como a vida, a honradez, a integridade física ou psíquica de seus membros. Todavia, pondera Ruy Rosado de Aguiar Junior (2005) que pode ser difícil para o intérprete vencer a controvérsia sobre a responsabilidade civil por atos praticados no âmbito do direito das famílias, pois devem ser levados em consideração diversos fatores de ordem não apenas jurídica, mas também histórica e até moral.

No âmbito do direito de família, cabe a responsabilidade civil do cônjuge (ou companheiro) autor do dano? Para essa resposta, devemos atender a que o fato pode ser ilícito absoluto, ou apenas infração a dever conjugal, familiar ou sucessório; o (ato pode estar tipificado na lei, ou não; a lei definidora da conduta pode ser civil ou criminal; o autor pode ser cônjuge ou companheiro que atinge a vítima na posição que lhe decorre do direito de família; o dano pode ser patrimonial

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ou extrapatrimonial; o dano pode ser específico, por atingir direito regulado no Livro da Família ou das Sucessões, ou constituir-se em dano a direito assegurado genericamente às pessoas, assim como disposto no artigo 186 do C. Civil; a consequência da infração ao direito pode ser a sanção prevista na norma de direito de família, ou a reparação aplicada de acordo com as regras próprias do instituto da responsabilidade civil, assim como disposto nos artigos 944 e seguintes, com ou sem aplicação cumulativa). Deve ainda ser ponderada a colisão de princípios, a exigir ou não, conforme a posição a ser adotada, tratamento diferenciado na solução das diversas hipóteses.5Insta, pois, analisar com cuidado e atenção a possibilidade de incidência e o alcance da responsabilidade civil no que tange às relações familiares, temática ainda incipiente na legislação, doutrina e jurisprudência, mas que pode ter profundos reflexos na busca pela efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Tudo isto sem deixar de lado a preocupação com a estabilidade do instituto da família em todas as suas composições contemporâneas, bem como seu papel enquanto alicerce da sociedade.

2. Responsabilidade civil: caracterização, elementos e incidência nas relações familiares

O estudo da responsabilidade civil na sistemática jurídica atual reflete a crescente preocupação do legislador com o bem-estar não apenas individual, mas coletivo, e denota que seu escopo central é o ser humano enquanto principal destinatário das normas positivadas. Outrora voltada estritamente para a proteção patrimonial consoante um modelo liberalista, o campo de incidência da responsabilidade civil alargou-se, a fim de atender aos anseios da sociedade complexa contemporânea, sempre às voltas com novas exigências, novas tecnologias, exploração de diversas atividades de risco e proliferação de relações entre desiguais.

Hodiernamente, a teoria subjetiva clássica da responsabilidade civil, calcada na verificação de culpa do agente, não oferece soluções justas e adequadas

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às exigências do cenário jurídico-social contemporâneo. O moderno tratamento da questão perpassa, pois, pela teoria do risco, encontrando-se na responsabilidade objetiva um modo de abarcar vítimas de prejuízos decorrentes de atividades lícitas, porém consideradas pelo ordenamento como arriscadas e ensejadoras de reparação. Tal entendimento decorre de demandas por um maior espírito de cooperação, havendo significativo movimento no sentido de...

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