Responsabilidade civil pelos danos causados por entes dotados de inteligência artificial

AutorMafalda Miranda Barbosa
Ocupação do AutorUniv Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/ University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas157-179
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RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS
CAUSADOS POR ENTES DOTADOS DE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Mafalda Miranda Barbosa
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/
University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra. Doutorada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução – formulação do problema. 2. As insuciências dos modelos tradi-
cionais de responsabilidade civil. 3. As soluções. 3.1 Responsabilidade dos entes dotados de
inteligência articial. 3.1.1 Os fundos de compensação de danos causados por entes dotados
de inteligência articial. 3.1.2 A personicação dos entes dotados de inteligência articial?
3.2 Hipóteses especiais de responsabilidade pelo risco. 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO – FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
Os computadores cada vez mais sof‌isticados, capazes de levar a cabo tarefas com-
plexas, saltaram dos écrans do cinema e da televisão para o mundo real. Ainda que não
assumam forma humanoide – ou ainda que os que assumam possam não corresponder
às versões mais desenvolvidas da inteligência artif‌icial –, robots inteligentes e algoritmos
aptos a aprender e a decidir autonomamente têm vindo a alterar as sociedades lentamente,
imiscuindo-se, mesmo sem real perceção de muitos, no quotidiano das pessoas.
As mudanças que, com base na inteligência artif‌icial, se constatam são diver-
sas. Serão, segundo se prognostica, mais e mais profundas no futuro. Segundo os
estudiosos, o impacto far-se-á sentir ao nível do mercado de trabalho, ao nível dos
processos produtivos, mas também no que diz respeito à forma de relacionamento
entre humanos. Atingirá, inclusivamente, o desenvolvimento pessoal de cada ser
humano que, se, por um lado, terá acesso a um leque alargado de meios de superação
das suas limitações, mesmo físicas, por outro lado, corre o risco de passar a viver
num mundo controlado com a precisão matemática dos sistemas algorítimicos, fa-
zendo-nos lembrar, em certa medida, o mundo descrito em Nós, o romance distópico
de Yevgeny Zamyatin,
Antes que o homem mude – e com ele o direito – haverá problemas para os quais é
preciso encontrar soluções. As novas tecnologias podem, não obstante a segurança que
para elas é reivindicada, provocar lesões em direitos como a vida, a integridade física,
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MAFALDA MIRANDA BARBOSA
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a propriedade, a privacidade, a igualdade, a honra, ou outros danos que não estejam
associados à violação de posições jurídicas absolutas1.
Diversos relatos de acidentes entretanto ocorridos provam-no. Em 2016, um veículo
automático da marca Tesla não acionou o sistema de travagem e embateu num camião
branco, por o ter confundido com o céu, causando a morte do ocupante2. Também nos
Estados Unidos, mas em 2018, foi a vez de um automóvel autónomo ter atropelado
fatalmente uma senhora que atravessava a estrada com uma bicicleta3.
Signif‌ica isto que, ainda que seja importante uma ref‌lexão acerca do papel que o direito
poderá ter em face da inteligência artif‌icial, urge encontrar respostas para fazer face a even-
tuais danos que possam ocorrer. A responsabilidade civil, com os seus conceitos e as suas
categorias, com a sua teleologia e intencionalidades próprias, é, então, chamada a depor.
Nas páginas que se seguem, procuraremos, embora sem pretensões de exaustividade
– que não seriam compagináveis com um trabalho desta índole –, não só evidenciar as
insuf‌iciências dos tradicionais modelos delituais e contratuais para lidar com muitos dos
problemas que são colocados, como também encontrar vias de solução para as suprir.
Neste caminho dialógico, embora lidemos com requisitos específ‌icos da responsabilidade,
o objetivo é, fundamentalmente, estabelecer as possíveis bases da imputação (delitual
e/ou contratual). Muitos serão, portanto, as questões que f‌icarão na sombra, esperando
trata-las, autonomamente, noutros estudos.
2. AS INSUFICIÊNCIAS DOS MODELOS TRADICIONAIS DE
RESPONSABILIDADE CIVIL
Se com a revolução industrial, a introdução da máquina nos processos produtivos e
a consciência de que poderiam avultar muitos danos a partir da utilização desses novos
1. European Commission (2020), 10: “while AI can do much good, including by making products and processes
safer, it can also do harm. This harm might be both material (safety and health of individuals, including loss of
life, damage to property) and immaterial (loss of privacy, limitations to the right of freedom of expression, human
dignity, discrimination for instance in access to employment), and can relate to a wide variety of risks”.
2 . Cf. Patrícia Gonçalves (2020), 5 s. A autora, numa interessante análise, mostra que muitos dos problemas de ocorrência
de danos podem resultar de um excesso de conf‌iança na nova tecnologia. A páginas 10, refere que “a tecnologia pode
revelar-se particularmente útil, permitindo ajudar na recolha, compilação, organização e análise dos dados e da infor-
mação que depois serão utilizados para prever com maior grau de certeza o resultado de determinada ação. Mas, na
verdade, esta ajuda pode ter um lado perverso: o grau de conf‌iança do ser humanos nos seus parceiros artif‌iciais pode
revelar-se excessivo enquanto, por contrapartida, constrange a sua conf‌iança na própria compreensão e consideração
dos potenciais resultados das suas ações”. E dá exemplos (cf. pág. 11): “em 5 de setembro de 1983, um doente de 72
anos, foi conduzido para o bloco cirúrgico da urgência do Alfred Hospital, em Melbourne. Foi-lhe induzida a anestesia
e foi ventilado com o que se pensava ser 100% oxigénio. A sua condição clínica inicial era crítica e foi f‌icando cada vez
mais hipotenso e bradicárdico e refratário ao suporte inotrópico. Trinta minutos depois da indução da anestesia sofreu
uma paragem cardíaca. O anestesista de serviço confessou mais tarde que o doente, apesar de estar a receber 100%
de oxigénio, apresentava uma coloração azul-acinzentada. Face à falta de indicação de problemas na oxigenação, a
equipa cirúrgica considerou outras alternativas que pudessem estar na origem da paragem, mas não foi encontrada
qualquer razão, o doente manteve-se em paragem cardíaca, não voltou a ter circulação sanguínea espontânea e veio a
falecer. Os gases arteriais retirados nas tentativas de ressuscitação revelaram PaO2 de 8mmHg e PaCO2 de 27mmHg.
Estes resultados levaram a que fosse imediatamente pedida uma avaliação da máquina de oxigénio. A avaliação veio
a revelar uma conexão cruzada entre oxigénio e óxido nítrico que conf‌irmou que durante todo o tempo cirúrgico o
doente tinha recebido 100% de óxido nítrico”. O excesso de conf‌iança a que a autora se refere tende a aumentar com
a introdução de processos automatizados de inteligência artif‌icial.
3. Patrícia Gonçalves (2020), 5.
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