A Responsabilidade Contratual e as Obrigações do Empregador em Relação aos Direitos Personalíssimos do Trabalhador

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorPós-doutora no Programa de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Humanos - Direito, Política, História e Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas96-141

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4.1. A natureza e o escopo do contrato de trabalho

O contrato de trabalho, outrora regulado como contrato meramente mercantil no Código Comercial de 1850 e ignorado pelo Código Civil de 1916, restrito apenas à locação de serviços, à empreitada e à locação de coisas, teve sua concepção absolutamente recolocada pelo Tratado de Versalhes, logo após o término da Primeira Guerra Mundial.

Desde então, o direito do trabalho como um todo passou a ter papel significativo nos ordenamentos jurídicos pátrios, culminando, no Brasil, com a Constituição de 1988, a qual enuncia logo no art. 1º, incisos III e IV, os fundamentos da República Federativa do Brasil, quais sejam: a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Os arts. 170, caput e 193 do referido diploma dispõem, ainda, que a ordem econômica será “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.

Nas palavras de João de Lima Teixeira Filho, “A cristalização dessa doutrina, em nível constitucional, advém do Tratado de Versalhes e da Constituição de Weimar. A partir de então, todo o mundo capitalista passou a considerar o trabalho humano como uma emanação da personalidade e da dignidade humana, e não mais como simples energia física a ser vendida como coisa no mercado de serviços”393.

Em junho de 1919, após a Primeira Guerra Mundial, foi realizada em Versalhes a Conferência de Paz, a qual originou o Tratado de Versalhes e a criação da Organização Internacional do Trabalho. O tratado tinha como objetivos promover a justiça e a paz sociais, além de enunciar a melhoria das relações empregatícias por meio dos princípios que regeriam a legislação internacional do trabalho e, em particular, respeitar os direitos humanos no mundo do trabalho. Desde a criação da OIT, portanto, está assente no direito internacional não poder haver paz universal duradoura sem justiça social.

No plano político, a OIT exsurgiu como importante organismo internacional, icando responsável por assegurar bases sólidas para a paz mundial e obter melhores condições humanas para a classe trabalhadora.

Contudo, foi durante a Segunda Guerra Mundial que o passo decisivo se deu para elevar os direitos sociais ao patamar dos direitos fundamentais. Em 10 de maio de 1944, a OIT realizou sua Conferência Geral na cidade da Filadélia, adotando o que posteriormente seria conhecido como a Declaração da Filadélia.

A Constituição da OIT talvez seja a primeira manifestação internacional a elevar os direitos sociais ao nível dos demais direitos humanos, airmando, dentre os princípios fundamentais sobre os quais se fundam a Organização, que “o trabalho não é uma mercadoria” e que “todos os seres humanos, qualquer que seja a sua raça, a sua crença ou o seu sexo, têm o direito de efetuar o seu progresso material e o seu desenvolvimento espiritual em liberdade e com dignidade, com segurança económica e com oportunidades iguais”, enunciando a concepção moderna dos direitos trabalhistas.

Também nesse contexto, foi assinada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que, em seu art. 23, enumera quatro itens relacionados ao direito do homem ao

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trabalho.394 Dessa maneira, o acesso ao trabalho e sua realização digna são elencados no rol de direitos humanos fundamentais. Passa a ser reconhecido no trabalho algo além do que um mero meio de sobrevivência e sustento próprios, mas também um componente imaterial que confere dignidade àquele que labora.

Ainda por volta do inal da Segunda Guerra Mundial, até mesmo países em desenvolvimento, como o Brasil, introduziram certos direitos sociais no arcabouço jurídico. Aqui foram implantados direitos como o salário-mínimo, a previdência social para os trabalhadores urbanos e o direito de organização sindical, que, apesar de já garantido mesmo antes de 1945, não era efetivo. Muitos desses direitos foram incluídos na Constituição de 1946, inclusive o direito de greve395.

A eleição de Getúlio Vargas à Presidência permitiu nova expansão dos direitos sociais.

Entretanto, entre 1964 e 1984, o regime militar reprimiu grande parte destes direitos, que só foram reconquistados a partir de 1978, por meio dos sindicatos de trabalhadores da cidade e do campo que ganharam autonomia em relação ao Estado e estabeleceram uma extensa pauta de reivindicações de direitos sociais, muitos dos quais foram inseridos na Carta de 1988.

De volta ao âmbito internacional, em junho de 1998, a 86a Conferência Internacional do Trabalho aprovou a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Em seu item 2, ela reairma o compromisso das nações pertencentes à OIT, mesmo que estas não tenham ratificado as convenções correspondentes, de respeitar os princípios relativos aos direitos fundamentais objeto da norma internacional, tais como: “a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação396397”.

Em suma, é preciso pensar as relações trabalhistas para além do binômio trabalho-salário. O trabalho humano deve ser compreendido como uma forma de conquista de dignidade na sociedade atual e de acordo com o estágio internacional apresentado. É via este pensamento conscientizado que ganham sentido os aspectos extrapatrimoniais das relações de trabalho, seus adjetivos e, mais do que tudo, as obrigações dos detentores do modo de produção para com os que alienam a força de trabalho em contexto capitalista. É o conceito de trabalho digno que imprime deveres intrínsecos e essenciais ao contrato de trabalho equivalentes ao que a doutrina civilista denomina “deveres anexos ao contrato”, derivados da boa-fé objetiva.

4.2. As obrigações do tomador de serviços derivadas do contrato de trabalho

O Brasil, como estado-membro da OIT, a partir da Constituição de 1988, vem tentando implementar os princípios trazidos pela Organização. Com o advento do Código Civil de 2002, percebe-se, na redação de seus arts. 421 e 422, aproximação salutar com o direito do trabalho em disposições tais como “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” e “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” etc.

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Em suma, em razão da manifesta superação do tradicional conceito de que direito constitucional e direito privado ocupavam posições estanques, divorciadas entre si, e diante do fenômeno conhecido como “constitucionalização” dos demais ramos do direito, a relexão sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, roman-ticamente descrita por Von Münch, nos seguintes termos: “uma vez desmoronado o dique que, segundo a doutrina precedente, separava o direito constitucional do direito privado, os direitos fundamentais se precipitaram como uma cascata no mar do Direito privado”398, o contrato, inclusive o de trabalho, passa a ser lido pela lente constitucional, o que importa reconhecer novos princípios de interpretação.

Diante de tal airmação, revela-se a importância de ter-se em mente que as relações contratuais, de uma maneira geral, são regidas por princípios compromissados com a justiça das mesmas e que podem ser cumpridos em diferentes graus, a depender tanto das possibilidades jurídicas no momento do aperfeiçoamento...

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