A Responsabilidade da Empresa Empregadora no Direito do Trabalho Brasileiro

AutorEduardo Pragmácio Filho
Páginas107-140

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Até agora, viu-se que, para contextualizar a empresa no direito do trabalho da atualidade, é necessário haver um diálogo maior com a economia e com o direito comercial, para, enfim, falar-se em uma teoria da empresa para o direito do trabalho brasileiro, como a que ora se propõe.

As várias teorias econômicas (neoclássica, agenciamento, custos de transação, nexos de contratos e direitos de propriedade) oferecem critérios relevantes (e até então desconhecidos da doutrina trabalhista pátria) para se identificar esse fenômeno tão complexo e enigmático que é a empresa e, assim, rastrear a fonte de seu poder.

Esse diálogo proposto com o direito comercial traz noções importantíssimas, como é o caso dos quatro perfis da empresa de Asquini (subjetivo, objetivo, funcional e corporativo) e o risco empresarial de Simon Deakin.

As várias formas de trabalho “fissurado”, como as cadeias de abastecimento e as franquias, em que existem multiplicidades de agentes exercendo as várias funções de empregador, deixam o (velho) direito do trabalho ineficiente e, de certa forma, restrito ao âmbito de uma típica (e bem definida) relação de emprego, e acaba por deixar de lado relações que também merecem proteção.

Por outro lado, a imprecisão jurídica para se dar os contornos de uma empresa, somada à noção de despersonalização do empregador, levou boa parte dos aplicadores do direito a um certo exagero de responsabilidade e certa banalização de institutos relevantes, como a desconsideração da personalidade jurídica e, até, sua desconsideração inversa. Alguns alegam que, como o empregador é a empresa e como esta é um ente despersonalizado, alguém

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deve se responsabilizar, não importa como, pelos créditos trabalhistas (créditos alimentares): sócios minoritários, sócios sem poder de gestão, sócios retirantes ou familiares de sócios.

Esse exagero provocou, em consequência, uma reação contrária do legislador, que, na recente reforma trabalhista, com a Lei n. 13.467/2017, quis impor limites restritos a respeito do grupo econômico trabalhista, deixando expresso que a mera identidade de sócios não gera grupo econômico, pois deve haver “a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes”. Talvez a comunhão e a integração de interesses sejam a força integradora do empresário, o seu poder de organizar a atividade.

Assim, o momento é propício também para uma reforma do pensamento doutrinário, um up date na dogmática trabalhista brasileira, sobretudo para enquadrar corretamente a empresa (trazer toda a noção dialogada) e dar novos contornos para sua responsabilidade. Para essa tarefa, primeiramente é necessário oferecer breves noções jurídicas sobre obrigações e responsabilidade.

4.1. Breves noções sobre obrigações e responsabilidade

O contrato de trabalho é bilateral, gera direitos e deveres para cada parte, empregado e empregador, que, em resumo, constitui-se, principalmente, na prestação do serviço pessoal de um lado e a remuneração desse serviço de outro95.

O vocábulo obrigação é, no dizer de Farias e Rosenvald (2017, p. 34), plurívoco, pois comporta diferentes significados96, mesmo dentro da ciência jurídica. Para eles, uma obrigação é “uma relação jurídica transitória, estabelecendo vínculos jurídicos entre duas diferentes partes (denominadas credor e devedor, respectivamente), cujo objeto é uma prestação pessoal, positiva ou negativa, garantido o cumprimento, sob pena de coerção judicial”97.

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Para Tartuce (2013, p. 37), uma obrigação é uma relação jurídica transitória existente entre um credor e um devedor98 e cujo objeto imediato é uma prestação. Já para Alexandre Agra Belmonte (2004, p. 208), “obrigação é vínculo jurídico de natureza pessoal, que une um sujeito ativo, denominado credor, a um sujeito passivo, denominado devedor, objetivando um comportamento consistente numa prestação de caráter patrimonial”.

São elementos constitutivos subjetivos de uma obrigação o credor (sujeito ativo) e o devedor (sujeito passivo), ao passo que os elementos constitutivos objetivos de uma obrigação são a prestação (elemento imediato) e o bem jurí- dico tutelado (elemento mediato). Por fim, o elemento imaterial da obrigação é o vínculo jurídico entre o credor e o devedor.

No caso do contrato de emprego, por simetria aos conceitos oferecidos, é possível dizer que a obrigação trabalhista é uma relação transitória entre empregado e empregador, cujo objeto principal é a prestação (pessoal) do trabalho e a correspondente remuneração.

Para Farias e Rosenvald (2017, p. 77), a relação obrigacional é sempre dual, há sempre contraposição de partes, independentemente da pluralidade de sujeitos em cada polo. Há centros de interesses que independem do número de pessoas que os integrem, e é por isso que existem obrigações divisíveis99, indivisíveis100 e solidárias101.

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Farias e Rosenvald (2017, p. 78) trazem duas considerações interessantes. A primeira é a de que o sujeito de uma obrigação não precisa ser determinado logo no nascedouro da relação, mas precisa ser determinável no cumprimento da execução, por se tratar de uma indeterminabilidade relativa, momentânea. A fonte da obrigação deve fornecer os elementos para essa determinação. Trasladada essa ideia ao direito do trabalho, ao prescrever que o empregador é a empresa (um ente que não é uma pessoa, mas, sim, um comportamento), seria possível identificar o sujeito da obrigação (empresário).

A segunda é o fato de não ser necessário que os sujeitos originários se mantenham os mesmos até a extinção da obrigação. É possível haver substituição de sujeitos, por variadas hipóteses (cessão de crédito, assunção de dívida, novação). No caso do direito do trabalho, pode haver substituição de sujeitos e extensão de responsabilidade trabalhista, em fenômenos como a sucessão, o grupo econômico e a desconsideração da pessoa jurídica102.

Outra noção é importante: a distinção entre débito (schuld) e responsabilidade (haftung). Na lição de Farias e Rosenvald (2017, p. 38):

O “débito” traduz a prestação a ser espontaneamente cumprida pelo devedor, em decorrência da relação de direito material originária. Seria o bem da vida solicitado pelo credor, consistente em um comportamento traduzido por um dar, fazer ou não fazer. Em suma, cuida-se do direito subjetivo do credor à prestação, como um poder jurídico de satisfação de seu interesse. O cumprimento exato da prestação extingue em regra o direito à prestação.

Já a responsabilidade, na lição de Farias e Rosenvald (2017, p. 38):

[...] é a sujeição que recai sobre o patrimônio do devedor como garantia do direito do credor, derivada do inadimplemento do débito originário. Por intermédio da agressão aos bens do devedor, será concretizada a pretensão do credor, quando houver lesão a seu direito material. Trata-se da velha parêmia “quem deve também responde”.

É por isso que débito e responsabilidade nascem simultaneamente, mas, no mundo fático, em dois momentos distintos: (i) primeiro, o direito subjetivo ao crédito se impõe ao devedor; (ii) segundo, a eventual lesão ao direito subjetivo gerará a pretensão em favor do credor (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 40).

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Assim, o artigo 391 do CC (no Título IV — do inadimplemento das obrigações) prescreve: “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”; com conteúdo semelhante, o artigo 789 do CPC (no Capítulo V — da responsabilidade patrimonial) afirma: “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”.

Essa dualidade entre débito (schuld) e responsabilidade (haftung) pode gerar algumas situações especiais e excepcionais. A primeira é a existência de débito sem responsabilidade, como é o caso de débitos trabalhistas prescritos, pois existe o crédito, mas não existe responsabilidade por conta da extinção da pretensão. A segunda é a existência de débito sem responsabilidade pró- pria, cujo exemplo pode ser dado pelas garantias reais (hipoteca e penhor) e por aqueles que se responsabilizam com seu patrimônio pessoal sem terem assumido a prestação (fiança, por exemplo).

Sobre esse último, Farias e Rosenvald (2017, p. 43) apontam a “responsabilidade executória secundária”, fazendo referência ao artigo 790 do CPC103, em que a responsabilidade (haftung) recairá sobre patrimônio de terceiros que não têm a qualidade jurídica de obrigados (schuld), como é o caso do sócio ou administrador na desconsideração da personalidade jurídica.

Por fim, outra noção fundamental a ser abordada é aquela a respeito das fontes das obrigações.

4.2. As fontes das obrigações trabalhistas

Apesar dos vários posicionamentos da doutrina, sobre a sistematização das fontes das obrigações104, é possível dizer, com base nas ideias de Fernando Noronha (apud FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 119) que “as verdadeiras fontes das obrigações são os acontecimentos, as situações reais que são pressupostos da

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aplicação dos preceitos legais, pondo em movimento as consequências previstas nestes”, isto é, as obrigações “podem nascer de qualquer fato jurídico, ou seja, de qualquer acontecimento que implique consequências jurídicas”. Por isso, Fernando Noronha propõe abandonar a tradicional classificação das fontes das obrigações, para tentar classificá-las a partir de sua funcionalidade, de acordo com as variadas funções que elas...

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