A responsabilidade patrimonial dos sócios e a reforma trabalhista

AutorBianca Bastos
Páginas15-24

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Bianca Bastos1

Introdução

A responsabilidade patrimonial dos sócios sempre foi uma questão controvertida nas execuções trabalhistas. A partir de um recorrente inadimplemento das dívidas em processos judiciais e da previsão legal para que a execução trabalhista se realizasse ex officio, os atos processuais direcionados ao pagamento do crédito adotaram uma característica de execução forçada, com o uso de prerrogativas judiciais para apreensão de bens e quitação das dívidas trabalhistas.

As críticas se assomaram contra o modelo da execução trabalhista, diante de uma imputada agressividade processual na apreensão de bens de pessoas físicas. A certa medida, com razão. Mas, de outra parte sem a consideração de uma questão essencial no exercício da jurisdição.

Começando por esta essencialidade, que é própria do exercício da jurisdição na execução de título de dívida líquida e certa, fato é que o pagamento da dívida é de rigor. Na execução não se discute mais a existência do direito material e aquele que está condenado deve pagar. Para isto possui prazo de 48 horas, a contar da citação, por expressa previsão da Lei2.

Não obstante, as estatísticas da Justiça do Trabalho apontam para uma inadimplência recorrente. A estatística apurada pelo Tribunal Superior do trabalho para o período de janeiro a dezembro de 2016 demonstra que foram iniciadas no país 724.491 execuções trabalhistas, tendo sido encerradas 661.850, remanescendo em andamento 1.723.351, e permanecendo em arquivo provisório o saldo de 795.3903.

Como se vê, do número de execuções iniciadas no ano de 2016, o correspondente ao percentual de 94,64% foram quitadas. Mas o saldo remanescente revela falta de efetividade, quanto a um número de credores de 2.428.741 titulares de direito, sendo que a quase unanimidade é de credores trabalhadores. Sem contar que o número de processos que já estão em arquivo provisório (795.390) são de casos em que normalmente já foram esgotados todos os meios de busca patrimonial, tratando de uma contingência da inexecução por ausência de bens, que se perpetuou na Justiça do Trabalho, diante a adoção da tese jurisprudencial que considerou por muitos anos inaplicável a prescrição intercorrente nos processos trabalhistas, situação hoje modificada na Reforma Trabalhista, e do novo art. 11-A da CLT4.

Daí é que, para ganhar efetividade, apesar de todos os esforços dos agentes estatais (especialmente, dos juízes do trabalho), a execução trabalhista ganhou fama de desa-tender ao melhor direito processual, possuindo como seu primeiro objetivo o econômico, e afrontando princípios básicos na constrição patrimonial de bens de pessoa física, como o contraditório. Como se verá neste artigo, a execução trabalhista nunca foi antijurídica. Foi sim a expressão da jurisdição que representa, que é satisfativa e se realiza por coerção estatal, diante da resistência do devedor.

Contudo, não há como negar que a Reforma Trabalhista trouxe boas regras à execução trabalhista. Vieram regras expressas na Consolidação das Leis do Trabalho sobre a forma como proceder a desconsideração da personalidade jurídica (art. 855-A da CLT, acrescentado pela

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2015 (arts. 133 a 137 do CPC), e priorizando a segurança jurídica, principalmente no que atine à aplicação do princípio do contraditório antecipado (arts. 9º5 e 106 do CPC).

A partir da reforma trabalhista da Lei n. 13.467/2017, o estudo da responsabilidade patrimonial dos sócios passa a adotar um modelo processual da desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137) na própria CLT, e também com a regra específica da limitação da responsabilidade do sócio que se retira da sociedade empresarial (art. 10-A da CLT)7. Entretanto, não há alteração quanto ao fundamento de direito material para a desconsideração da personalidade jurídica no processo trabalhista que, em relação aos créditos de trabalhadores, dispensa a verificação dos pressupostos do art. 50 do Código Civil brasileiro.

Tampouco se limitará a execução direta da pessoa física diante da situação em que a pessoa física do sócio atuar com infração à lei, ou ao estatuto da sociedade empresarial. Equivocamente tratada como desconsideração na jurisprudência, esta situação sempre foi diferenciada.

Com fundamento próprio à desconsideração da personalidade jurídica quanto ao crédito do trabalhador, a justificativa doutrinária ainda prevalece, numa construção jurídica que diferencia os pressupostos da desconsideração de acordo com a titularidade do crédito na execução, diferenciando critérios para empresas, associações (e, de modo específico, os sindicatos) e fundações. E isto também reflete na definição de pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica inversa.

Por fim, a inclusão do art. 855-A na Seção IV, do Capítulo III (Dos dissídios Individuais), do Título X (Do Processo Judiciário do Trabalho) não apenas incorpora as disposições do Código de Processo Civil quanto à forma como proceder a desconsideração da personalidade jurídica, mas especialmente regula a interposição de recursos contra as decisões no incidente, questão da maior relevância diante da tipicidade recursal no âmbito trabalhista.

Origem e evolução legal da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

A desconsideração da personalidade jurídica é uma forma de superação da autonomia patrimonial decorrente da personificação de um contratante. A pessoa jurídica possui personalidade e patrimônios próprios (art. 45 do CCB), respondendo por todas as obrigações contratadas. Seus componentes estão protegidos pelo caráter autônomo reconhecido à organização e patrimônio constituídos na pessoa jurídica. Por meio da desconsideração da personalidade jurídica supera-se a divisão patrimonial, atingindo-se, diretamente, o patrimônio das pessoas físicas. Subestimam-se os efeitos da personificação no caso concreto, atingindo-se o patrimônio dos sócios componentes da pessoa jurídica.

Essa figura jurídica foi construída a partir de uma teoria que se originou do mau uso da pessoa jurídica com finalidade de manipular a responsabilidade patrimonial, eximindo os sócios de empresa em face à separação de patrimônios decorrentes da autonomia e capacidade da pessoa jurídica para entabular os negócios.

Também conhecida como disregard doctrine, surgiu a partir de dois casos relevantes. A primeira manifestação da jurisprudência pela desconsideração da personalidade jurídica ocorreu em 1809, no caso Bank of United States vs Deveaux8, nos EUA. Em 1897, na Inglaterra foi julgado o caso Salomon vs Salomon & Co Ltda.

Nestes casos históricos e precursores houve a desconsideração da personalidade jurídica. Muitos outros casos tomaram as hipóteses julgadas como critério de decisão, perante o direito anglo-saxão. Para que a utilização da teoria fosse organizada fora desse sistema, Rolf Serik, jurista alemão, pesquisou as hipóteses julgadas na década de 1950. O trabalho deste doutrinador alemão foi o de sistematizar os casos, a fim de transportar a ideia da desconsideração do sistema anglo-saxão para o sistema romano-germanístico, que modela os institutos jurídicos segundo pressupostos e conceitos pré-estabelecidos

Com essa sistematização, a desconsideração da personalidade jurídica passou a ser aplicada com cumprimento dos pressupostos de abuso de direito e de fraude.

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A teoria foi introduzida no Brasil por Rubens Requião, doutrinador do direito de empresa, no ano de 19699, quando realizou palestra na Universidade Federal do Paraná que, sucessivamente, publicou um artigo intitulado “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica10.

A partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), a regra do § 5º de seu art. 28 surgiu como fundamento de direito material para a desconsideração da personalidade jurídica e foi intensamente adotado na execução trabalhista, situação que até hoje se constata. Este dispositivo legal é o fundamento de direito material que, de modo recorrente e até hoje, fundamenta as decisões da jurisprudência trabalhista. Os julgados da Justiça do Trabalho repetidamente informam que tal artigo é a personificação da teoria menor, que seria adequada às características do crédito trabalhista, oriundo de direitos sociais e tipicamente alimentar.

Sucessivamente, outras disposições legais trataram da desconsideração, a saber: a Lei Antitruste (Lei n. 8.894/1994, art. 1811) e a Lei Ambiental (Lei 9.605/99, art. 4º12. E, atualmente o art. 50 do Código Civil brasileiro13.

A previsão do § 5º, art. 28 da Lei n. 8.078/92 dispõe no sentido de que [...] Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores e, de certo modo, repete as disposições do art. 18 da Lei Antitruste e art. 4º da Lei Ambiental.

Contudo, a delimitação dos pressupostos para a desconsideração da personalidade no Brasil somente se fez a partir do Código Civil de 2002 (art. 50). O Código Civil, na busca de uma solução que intencionou objetivar os pressupostos para a desconsideração...

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