A responsabilidade tributária do sócio que se retira da sociedade limitada e a impossibilidade de sua responsabilização com fundamento no Código Civil

AutorSérgio de Araújo Lopes
CargoMestrando em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professor de Seminário do IBET. Advogado em Goiânia/GO
Páginas218-228

Page 218

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar o conteúdo semântico dos enunciados prescritivos da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil) que dispõem sobre a responsabilidade do sócio que se retira de sociedade limitada, seja pela modalidade de cessão de quotas (parágrafo único do art. 1.003)1ou pela resolução da sociedade em relação a este sócio (art. 1.032),2seja pela possibilidade ou não da aplicação dessas normas às relações jurídicas obrigacionais tributárias.

Em outras palavras, pretende-se saber se o ex-sócio da sociedade limitada responde pessoalmente pelas obrigações tributárias em sentido estrito (obrigação de pagar tributo), até dois anos após sua retirada, na hipótese de inadimplemento por parte da sociedade.

Page 219

Entendemos que o assunto é relevante, atual e desperta ainda alguma controvérsia.

De efeito, a despeito de a jurisprudência pátria ter pacificado a orientação segundo a qual "O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente", cristalizada no enunciado da Súmula n. 430 do STJ, e de se tratar de matéria reservada à lei complementar, no caso a Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) - havendo reiterados pronunciamentos do STF que reforça esse entendimento -, ainda assim nos deparamos com decisões judiciais que, de forma expressa ou implícita, adotam uma interpretação divergente, muitas vezes sem uma adequada fundamentação legal, o que contribui ainda mais para uma sensação de "caos" na interpretação do sistema positivo.

Creditamos essa divergência inicialmente à inexistência de organização sistematizada da matéria atinente à responsabilidade nos textos legais, havendo uma multiplicidade de dispositivos que a regulam - a exemplo do Código Tributário Nacional, do Código Civil, da Lei de Sociedades Anônimas etc. Ademais, parece haver uma preferência pela interpretação isolada desses dispositivos, sem considerar todos os planos de interpretação que a construção da norma jurídica requer. Aliás, não é absurdo afirmar que muitas vezes parece haver uma preferência pela intepretação meramente literal dos enunciados prescritivos.

É justamente o caso das decisões judiciais que admitem a responsabilidade tributária do ex-sócio integrante de socie-dade empresarial limitada, adotando como fundamento o parágrafo único do art. 1.003 ou o art. 1.032, do Código Civil.

No entanto, veremos que a aplicação das normas de direito civil que tratam da responsabilidade do ex-sócio para alcançar obrigações de índole tributária encontram dois óbices intransponíveis, que aqui tomamos como objeto de nosso estudo.

O primeiro deles diz respeito a qual instrumento introdutor de normas3a Constituição Federal autorizou a disciplinar a matéria atinente à responsabilidade de terceiros por obrigações tributárias. Enfim, se a responsabilidade tributária de terceiro pode ser objeto de disciplina por outro veículo que não o Código Tributário Nacional.

O segundo reside na própria construção dos sentidos possíveis das referidas normas, que, no nosso entendimento, não têm o condão de alcançar a esfera patrimonial do sócio retirante, ante a impossibilidade de ser pessoalmente responsabilizado pelo cumprimento de obrigações tributárias na hipótese de mero inadimplemento. Para tanto, analisaríamos o alcance semântico das proposições prescritivas "obrigações que tinha como sócio" (parágrafo único do art. 1.003 do Código Civil) e "responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores" (art. 1.032 do Código Civil).

Pretende-se, aqui, realizar uma interpretação sistemática4da matéria atinente à res-

Page 220

ponsabilidade de terceiros pelo cumprimento das obrigações tributárias, confrontando as normas de envergadura constitucional com aquelas de índole infraconstitucional, em especial as contidas no Código Tributário Nacional e nos mencionados dispositivos do Código Civil.

2. Considerações iniciais
2. 1 O direito positivo como sistema

O ato de conhecer é um ato de reduzir complexidades. E o agrupamento dos objetos segundo um critério útil facilita o ato de compreensão de sua natureza. Em estudo clássico sobre o Sistema Constitucional Tributário, Geraldo Ataliba leciona que é da natureza das realidades componentes do mundo e do caráter lógico do pensamento humano agrupar as realidades que se pretende conhecer sob critérios unitários, que gozem de utilidade científica e conveniência didática, para reconhecer sua coerência e harmonia a partir de um todo.5O sistema é a composição desses elementos, construídos sob uma forma unitária. Em seu significado de base, "sistema" é objeto formado de unidades que se vinculam sob um princípio unitário ou cujos elementos são orientados por um vetor comum. Assim, sempre que existir um conjunto de elementos relacionados entre si e reunidos sob uma mesma referência, tem-se a noção fundamental de sistema, como sintetiza Paulo de Barros Carvalho.6Pois bem, o sistema das relações sociais é um subsistema do sistema universal, que, por consequência lógica, é uma redução de complexidade do mundo fenomênico. Os sistemas sociais, por sua vez, são formados pelas relações do homem com objetos que o integram, mais precisamente do ser humano com seus pares. O sistema jurídico é subsistema do sistema das relações sociais, cujos atos de comunicação, isto é, as suas unidades, têm em seu núcleo uma referência à prescritividade do modo de dever-ser das condutas intersubjetivas: as normas jurídicas.

Em outras palavras, o direito positivo é o conjunto cujos elementos são as normas jurídicas válidas em um determinado tempo e espaço e cujo núcleo central tem por objeto direcionar os comportamentos intersubjetivos do homem em sociedade, segundo pontua Paulo de Barros Carvalho.7Sob esse aspecto, o direito positivo pode ser qualificado com um sistema jurídico8ou ordenamento.9As normas jurídicas possuem uma mesma estrutura lógica: uma hipótese que sempre implica uma consequência. Seus conteúdos semânticos, isto é, seus sentidos, são construídos para tentar alcançar o maior número possível de hipóteses de condutas. A partir de um novo núcleo comum dessas condutas é que será possível ao cientista do direito formular outros subsistemas, os quais se relacionam entre si. Todos os subsistemas jurídicos, porém, buscarão um fundamento de validade comum, que é a Constituição do Brasil.

Page 221

2. 2 A conversação necessária entre os textos dos diversos ramos de direito

Como é próprio a todo conjunto, o sistema jurídico também pode ser repartido em outros sistemas menores, a partir de um novo critério unificador. Esse fenômeno se verifica nos sistemas positivos modernos, a partir dos quais pode ser isolado o sistema constitucional, composto pelas disposições presentes no texto constitucional de cada país.

Com razão, as constituições nacionais formam verdadeiros sistemas, isto é, um "conjunto ordenado e sistemático de normas, construído em torno de princípios coerentes e harmônicos, em função de objetivos socialmente consagrados", conforme registra Geraldo Ataliba.10Dentro do sistema constitucional brasileiro, existem outros subsistemas, entre os quais o Sistema Constitucional Tributário, composto pelo conjunto das normas que versem matéria tributária, em nível constitucional.

A unidade do subsistema constitucional tributário brasileiro está nas normas constitucionais que tratam da matéria tributária. Esta matéria, portanto, é tomada como princípio de relação que as unifica, nas lições de Geraldo Ataliba.11Porém, o Sistema Constitucional Tributário brasileiro, assim como o Sistema Tributário brasileiro - que se compreende pelo conjunto das normas constitucionais e infraconstitucionais tributárias - não possuem foros de autonomia científica que permitam interpretações isoladas de outros subsistemas jurídicos. A autonomia é meramente para fins didáticos. É um recorte do objeto, como falamos antes. Os conceitos de direito tributário serão sempre submetidos a um diálogo com os conceitos de outros ramos do direito, também isolados para fins unicamente de estudo, a exemplo dos conceitos de direito civil.

É o fenômeno da intertextualidade, axioma da interpretação, que estabelece a conversação entre os textos dos ramos de direito distintos, independente da proximi-dade das matérias ou relações de hierarquia. Interpretar pressupõe a atividade de seguir o percurso gerador de sentido e a conversação com outros textos - a intertextualidade, leciona Paulo de Barros Carvalho.12Portanto, cumpre ao exegeta do direito buscar, no campo do Direito civil e do Direito societário o conteúdo semântico da expressão responsabilidade por obrigações sociais, por exemplo. O conteúdo da expressão responsabilidade pelas obrigações tributárias, por seu turno, deve ser analisado a partir do sistema tributário pátrio.

Não se pode perder de vista que o conceito de tributo, ponto de partida para a construção do próprio direito tributário, está implicitamente posto no texto constitucional e é a partir da Constituição que devemos analisar a validade de todas as normas (gerais e abstratas ou individuais e concretas, como no caso das decisões judiciais) que sobre ele (tributo) dispõem.

3. Considerações, ainda...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT