Implementação da justiça restaurativa por meio dos juizados especiais criminais

AutorTahinah Albuquerque Martins
CargoGraduanda em Direito pela UnB
I Introdução

Em 2005, a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995) completou dez anos. Após a sua edição, diversos tribunais em todo o Brasil modificaram sua estrutura em prol da implementação da idéia de um acesso à justiça mais facilitado. Decorrida uma década, já é possível uma análise crítica e construtiva dessa nova experiência no direito penal brasileiro. Será que hoje o sistema penal é menos burocrático? Para quais caminhos esse sistema ruma?

É tempo de analisar a história e compreender melhor os fatores internos e internacionais que levam o direito penal contemporâneo a um processo de descriminalização e busca de métodos alternativos de resolução de disputas. É necessário, ademais, atentar para os benefícios advindos da construção de um sistema penal que, diferentemente do modelo clássico, revitaliza o papel da vítima e do acordo para resolução efetiva de conflitos.

Nesse diapasão, é chegado o momento de encarar frontalmente as críticas e os problemas ainda persistentes em uma estrutura formal de resolução de disputas que, apesar das melhorias, ainda deixa muito a desejar no tocante ao sentimento de justiça por parte da vítima, à reparação do dano pelo ofensor, ao envolvimento da comunidade e à execução das composições realizadas nos Juizados.

Num primeiro momento histórico, afastar a vítima do conflito foi prudente para a erradicação da vingança privada e concretização da proporcionalidade da sanção para o delito1 cometido. Inicialmente, a retirada da vítima do conflito, pode-se afirmar, foi um avanço do Estado Moderno.

Entretanto, com o decorrer do tempo, a estatização da justiça provocou um distanciamento entre os magistrados, e demais aplicadores do direito, e os cidadãos vitimizados, em virtude de constantes modificações da realidade social e da estagnação do processo penal, vinculado a uma estrutura estatal burocrática e a leis arcaicas2.

No final do século XX, este distanciamento era tal que o crescente volume de processos, a demora da prestação de serviço pelo judiciário e o sentimento de insegurança não podiam mais ser solucionados com a mera ampliação dos quadros funcionais dos tribunais. Nesse contexto, despontaram idéias favoráveis à descriminalização dos delitos e à informalização do sistema penal, não obstante haja ainda bastante resistência para qualquer abertura no sentido da disponibilidade da ação e do processo, sob a justificativa de respeito ao princípio do devido processo legal.

Entretanto, tais resistências foram vencidas pela descrença no Estado quanto à persecução penal, no que atine à verificação da necessidade de soluções mais ágeis para infrações de menor importância. Tentativas de composição dos conflitos surgem, então, na fase pré-processual, com o intuito de se instituir a cominação de penas alternativas baseadas em multas ou restrições de direitos, e não mais em sanções que impliquem na supressão de liberdade. O fundamento dessa justiça consensual é a valorização da vítima, em oposição ao sistema retributivo dominante, no qual ela recorre ao Estado e este assegura a persecução penal contra o ofensor. Nesse sistema, a vítima é comumente tratada como mera partícipe do processo e praticamente não atua nele.

II A realidade dos Juizados Especiais Criminais

A Lei nº. 9.099/1995 instituiu os Juizados Especiais Criminais (JECrim) e Cíveis (JEC). É oriunda da busca por uma maior efetividade no processo, diante da percepção de que o processo penal tradicional dificilmente supera os graves problemas de justiça, principalmente no tocante à celeridade do procedimento, à eficácia da execução penal e à satisfação do indivíduo vitimizado. Tais problemas são o produto de um sistema injusto, repressivo, estigmatizante e seletivo, em que o Estado avoca o direito de punir, estabelecendo um distanciamento em relação à vítima e ao conflito no qual está arraigada.

De acordo com AZEVEDO3, com a instalação dos Juizados Especiais Criminais no Rio Grande do Sul, reduziu-se em cerca de um quarto a quantidade de varas criminais e de acidente de trânsito. Essa redução ocorreu em virtude da diminuição da movimentação processual nas varas criminais comuns, que se concentraram em delitos mais graves.

Contudo, este não é este o panorama que se seguiu. A média anual de processos distribuídos nas varas criminais comuns do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) foi de 6.000, em 1994 e em 1995, saltando este número para 54.687, em 1996, e baixando para 37.608, em 1997. Como? A partir de 1996, os Juizados Especiais Criminais passaram a responder por 80% do movimento processual criminal em Porto Alegre, chegando a 90%, em 19974. As varas comuns tiveram de abranger delitos que antes não as atingiam, resolvidos por métodos informais, como a "mediação", ou melhor, a intimidação nas delegacias de polícia, diminuindo a cifra negra da criminalidade5. Dessa forma, o aumento dos processos distribuídos para as varas se justificou com a redução da quantidade de varas comuns e manutenção do volume de processos.

Ainda no Rio Grande do Sul6, em 1994, tão-somente 125 feitos foram arquivados, e em 1996 e 1997, o arquivamento correspondeu a 63% das decisões nos JECrim, em contraposição à conciliação ou à transação, que abrangeram 5% das decisões terminativas. Já em 1998, 1.259 foram objeto de extinção de punibilidade. E mais: 76% dos delitos registrados no JECrim/RS correspondem a lesões corporais leves e ameaças, e quase sessenta por cento deles se dão entre vizinhos e cônjuges. Dos processos no JECrim/RS que chegam à audiência preliminar, há um significativo aumento do número de conciliações entre vítima e autor (36% das decisões), vez que, na maioria dos casos, este reconhece que cometeu o delito do qual é acusado e prefere aceitar as condições estabelecidas pelo juiz para uma composição a prosseguir com a ação penal.

Em São Paulo7, com a implementação dos JECRim, em 1995, houve um crescimento da quantidade de inquéritos8 distribuídos no Juízo Comum9. Em contrapartida, no ano seguinte, houve um decréscimo de 27,59% em relação à distribuição anterior10. Aos poucos este número foi aumentando, registrando-se, em 1997, 92.265 feitos no Juizado Especial, e em 1998, um total de 108.790. Atualmente, verifica-se que a distribuição nos Juizados está se estabilizando. Nos foros regionais de São Paulo11, de um total de 550 denúncias e 730 sentenças, em 1995, têm-se uma redução, em 1998, para apenas 210 denúncias e 134 sentenças. Esses dados mostram a efetividade numérica das composições nas audiências de conciliação e das transações penais promovidas pelo Ministério Público.

Com a implementação dos JECrim, nota-se que a seletividade do sistema se transfere das delegacias de polícia para as vítimas, vez que basta a comunicação do delito por estas para se originar um Termo Circunstanciado. A vítima também aufere maior protagonismo em relação ao processo penal tradicional já que a Lei nº. 9.099/1995 tornou obrigatória a representação da vítima nos casos de lesão corporal leve e culposa, um dos crimes com maior índice de ocorrência. Verifica-se também que há um predomínio de vítimas mulheres (62% das vítimas), o que demonstra não só a freqüência deste tipo de delito entre elas, como também uma postura mais ativa delas no sentido de encaminhar judicialmente a punição dos agressores12. Observa-se, ainda, a dificuldade em realizar o acordo civil para a reparação de danos causados pelo autor à vítima, bem como a insatisfação da vítima com a transação penal, vez que ela não percebe diretamente a reparação. O autor, na maioria das vezes, é punido com multa ou prestação de serviços à comunidade convertida em cestas básicas.

Realizada a análise dos primeiros cinco anos, cabe agora averiguar a situação vigente13. Será que os Juizados realmente contribuem para a diminuição da criminalidade? Há necessidade de condutas ditas de menor potencial ofensivo serem criminalizadas? Será que os profissionais do direito são realmente preparados para realizar uma composição?

A resposta parece ser negativa. Ainda encontram-se em audiências nos JECrim's profissionais despreparados para orientarem e conduzirem seus clientes, conciliadores mal instruídos para atuarem nas audiências e juízes que não familiarizados com o procedimento conciliatório, vez que não conseguem se transpor da função de julgar.

Outro grave problema dos Juizados é a garantia da efetividade de suas decisões, visto que é bastante reduzida a possibilidade de assegurá-las coercitivamente. Como obrigar alguém a prestar serviços à comunidade? Como sujeitar as partes a perseverarem no tratamento junto ao Núcleo de Assistência Psicossocial (NUPS)? A conversão da pena em reparação de danos satisfaz à vítima e resolve verdadeiramente o conflito?

Outrossim, é possível constatar no cotidiano dos JECrim a realização de composições impostas às partes e propostas de transação penal quando não há justa causa para o oferecimento de denúncia ou queixa-crime. Isso se deve, em grande parte, a uma "necessidade" do "sucesso" do acordo em prol do esgotamento da pauta dos magistrados. Com uma maior quantidade de acordos e arquivamentos, os JECrim's continuam trazendo excelentes resultados estatísticos para o Poder Judiciário. Infelizmente, esse esgotamento da pauta decorre de um direcionamento das partes para a composição, sem se preocupar, na maioria das vezes, se estão realmente satisfeitas com o acordo, se se sentem reparadas ou se conseguiram ao menos entender o que levou o ofensor a agredi-las.

A ausência de entendimento mútuo entre vítima e ofensor promove resultados para além da audiência de conciliação. Nos casos em que as partes são encaminhadas para acompanhamento no NUPS, elas raramente prosseguem no tratamento com eficácia. Isso porque a ausência de...

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