Restrição do direito de voto na sociedade limitada

AutorFernando de Andrade Mota
Páginas124-137

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1. Introdução

As sociedades limitadas têm sido o tipo societário mais utilizado pelo empresário no Brasil para o desenvolvimento da atividade econômica, como revelam as estatísticas divulgadas pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio/DNRC1para o período de 1985 a 2005, e respondem por aproximadamente 99% das sociedades registradas no período.

A limitação de responsabilidade de todos os sócios, com flexibilidade maior que aquela dada pelas sociedades anônimas - notadamente quando de sua primeira previsão legal, no Decreto 3.708/1919 -, fez com que tanto micro e pequenas quanto macroempresas adotassem esta forma de sociedade.

Embora o Código Civil de 2002 tenha suscitado inúmeras críticas por conta da disciplina mais rígida e pormenorizada estabelecida para as sociedades limitadas, os dados citados do DNRC, não obstante atualizados somente até 2005, não revelam nenhuma alteração perceptível quanto ao predomínio das limitadas como tipo societário mais adotado no Brasil.

A despeito da regulamentação detalhada deste tipo societário na legislação atual, alguns temas não tratados pelo decreto revogado continuaram sem regramento. Este é o caso da restrição do direito de voto dos quotistas: o DNRC já se manifestou pela impossibilidade de emissão de tal espécie de quota [BRASIL 2013:19]; a doutrina, por sua vez, divide-se a este respeito. De um lado, autores como Arnoldo Wald [2005:359], Leslie Amendolara [2006:61], Frederico A. Monte Simionato [2009:601] e Daniel Moreira do Patrocínio [2008:27] defendem sua admissibilidade. De outro lado, sua impossibilidade jurídica é arguida por autores como Romano Cristiano [2008:249], Jorge Lobo [ 2004:144], Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa [2010:421] e Fábio Tokars [2007:146].

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A questão é relevante, pois este mecanismo pode servir para a composição dos diferentes interesses dos sócios, sobretudo tendo em vista a ampla utilização deste tipo societário e a ausência de consenso quanto à matéria.2

Nesse contexto, pretende-se verificar a possibilidade de emissão de tais quotas, considerando a aparente omissão da disciplina legal para as sociedades limitadas, as manifestações não uniformes da doutrina e o posicionamento do DREI acerca do tema.

Para tanto, inicia-se com uma breve exposição do debate envolvendo a conveniência da emissão de participações societárias com direito de voto restrito, incluindo referência ao seu desenvolvimento histórico como prática comercial, antes do reconhecimento legislativo, bem como aos debates existentes no campo das sociedades anônimas (em que o tema foi tratado em maior extensão) e aos entendimentos atuais a respeito da conveniência de permitir a restrição do direito de voto.

Será feita uma abordagem do regime jurídico das sociedades limitadas - com referência à sua introdução no sistema jurídico brasileiro pelo Decreto 3.708/1919, à sua regulação atual pelo Código Civil e às particularidades da microempresa e da empresa de pequeno porte.

Feitas tais colocações, serão analisados os princípios constitucionais da legalidade e da livre iniciativa, bem como os princípios de interpretação das leis, ponderando que uma primeira análise levaria à conclusão de que seria admitida a restrição do direito de voto de quotas, diante da ausência de vedação legal.

Adicionalmente, serão verificadas a inexistência de norma de ordem pública que vede, ainda que de forma indireta, a restrição do direito de voto bem como a ausência de incompatibilidade sistemática entre tal restrição do direito de voto e dispositivos do Código Civil, inclusive em vista das disposições que fazem referência ao capital social ao tratar do voto nas sociedades limitadas.

Constatada a admissibilidade das quotas sem direito de voto, proceder-se-á a um exame de qual seria o regime jurídico destas quotas, e particularmente daqueles que seriam seus direitos "fundamentais", tais como a existência de uma contrapartida patrimonial efetiva pela restrição do direito de voto e do direito de votar em deliberações a respeito de seus direitos específicos.

2. Participações societárias sem direito de voto: debate atual a respeito de sua (in)conveniência

O tema da restrição do direito de voto nas sociedades limitadas - e também nas sociedades anônimas - tem suscitado controvérsia há muito tempo, não havendo consenso a respeito de sua conveniência.

O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar tal debate, na medida em que visa a examinar a possibilidade, diante da legislação vigente, de tal restrição no âmbito das sociedades limitadas. A análise da conveniência de esta restrição ser permitida pelo legislador suscita outras questões, como a necessidade de reforma da legislação, seja para coibir ou facultar (e neste caso, talvez, disciplinar) tal prática. Esta análise de conveniência, por sua vez, dependeria de um exame da extensão do papel do Estado na regulamentação da atividade econômica e dos próprios objetivos a serem atingidos, que fugiria do escopo proposto.

A discussão da conveniência do direito de voto amplo e irrestrito, contudo, revela alguns argumentos relevantes para a própria interpretação da legislação a respeito da matéria, de modo que se impõe o exame, ainda que perfunctório, do estado deste debate.

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Embora formulados preponderantemente em torno das sociedades anônimas,3muitos dos argumentos são desenvolvidos em torno de concepções gerais sobre o papel da empresa e do empresário e se aplicam igualmente às sociedades limitadas.

A defesa da restrição do direito de voto tem como fundamento a autonomia da vontade dos sócios: estes escolhem, na medida em que lhes seja útil, deter tais participações. Neste sentido, costuma-se fazer referência à adoção desta modalidade de participação societária como consequência do próprio desenvolvimento das empresas, que levou à existência de sócios que, a despeito de deterem direito de voto, não o exerciam.4A empresa começa a desenvolver-se com uma mesma pessoa investindo o capital necessário para o empreendimento e o administrando. Com a sua evolução, contudo, a necessidade de capital para sua expansão, a partir de determinado momento, excede a disponibilidade do empresário, que passa, então, a obter capital de terceiros. Estes terceiros investidores podem não ter capacidade para participar da administração da sociedade ou interesse em fazê-lo; ainda que tenham ambos, sua participação poderá ser inócua se a participação no capital social for reduzida a ponto de não influenciar o resultado das deliberações, de modo que, na prática, não exercerão o direito de voto. Desta forma, ainda que idealmente possa ter sido considerado essencial, o direito de voto "tornou-se irrelevante para o pequeno acionista, pela impossibilidade de controle da empresa (...)" [RIBEIRO, 2009:51], daí decorrendo o reconhecimento da admissibilidade de ações sem tal direito.

O surgimento das ações preferenciais ocorre antes pela prática dos empresários que por inovação legislativa, como acontece com tantos outros institutos comerciais.5Desta forma, a previsão legal das ações sem direito de voto surge para disciplinar uma realidade preexistente.

No Brasil, Alfredo Lamy Filho [1996: 190] relata consultas realizadas a respeito do cabimento de "ações de prioridade" poucos anos após a edição da primeira Lei das S/A, respondidas positivamente. O mesmo se deu alhures, como menciona José Alexandre Tavares Guerreiro [1994:30]: "(...). Também em outros Países teve curso a criação das ações preferenciais, mesmo sem prévia estipulação legal (...)".6Desta forma, ao permitir a restrição formal do direito de voto, a legislação nada mais faria que reconhecer uma realidade de fato, podendo, por outro lado, garantir aos detentores de tais ações direitos específicos que em outra qualidade não teriam.

A formalização desta distinção entre os papéis dos sócios poderá ser conveniente

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em determinadas situações, garantindo, por exemplo, que a administração da sociedade permaneça com determinada pessoa, independentemente de possuir ou não a maioria do capital, na medida em que esteja mais habilitada para conduzir os negócios. Este interesse não será, necessariamente, exclusivo do próprio sócio-administrador, mas também dos investidores que tomaram a decisão de investir com base no desempenho que a empresa obteve sob aquela mesma administração. Por outro lado, sócios com pequena participação, cujo direito de voto não conferiria, na prática, direito de prevalecer em nenhuma deliberação, poderão desejar vantagens específicas nesta qualidade.

Mauro Rodrigues Penteado aponta, ainda - tratando de ações preferenciais -, "sua aptidão para operações de saneamento financeiro e de reestruturação do perfil econômico e do patrimônio das companhias" [in LOBO, 2002:184].

Estes interesses empresariais, indiscutivelmente legítimos, podem ser bem servidos pelas ações preferenciais. A despeito disto, no entanto, diversos são os argumentos contrários à permissão da restrição do direito de voto.

O primeiro destes argumentos parte da conhecida relação que se estabeleceu entre as sociedades anônimas e a sociedade política democrática, para considerar que a restrição do direito de voto seria contrária ao ideal da "democracia acionária" [COMPARATO/ SALOMÃO FILHO, 2005:188].

Um segundo argumento contrário à...

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