Retomando a democracia para os excluídos

À luz dos acontecimentos da tarde de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, o ministro Luiz Fux publicou artigo no qual assegurou, enquanto presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que a corte permanecerá vigilante para que situação semelhante jamais ocorra no Brasil[1].

De fato, o alerta soa pertinente. É que, nos últimos tempos, assistimos a uma conjuntura de recessão democrática em diversos países do mundo. Governantes populistas autoritários tomaram o poder pela porta da frente, eleitos pelo voto de um povo que não mais se identificava com a representação política tradicional e que se seduziu com uma retórica antissistema, contra 'tudo isso que está aí".

No Brasil, com os riscos e as peculiaridades próprios de um país em desenvolvimento, o movimento iniciou-se com a "explosão social" de 2013; desenvolveu-se com o lavajatismo e a crise do presidencialismo de coalizão; e ganhou ainda mais força com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão do neoliberalismo autoritário [2]. Com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019, a crise alcançou o seu ápice, dando origem a um governo voltado ao ataque à autonomia das instituições, à redução do sistema de proteção social, à criminalização de movimentos sociais e à deslegitimação da ciência.

Nesse contexto, os desafios para contenção da erosão democrática já eram muitos, mas foram acentuados em razão da superveniência de verdadeira turbulência humanitária ocasionada pela pandemia da Covid-19. Para além dos profundos efeitos no campo sanitário, social e econômico, parte da preocupação inicial dos juristas voltou-se à possibilidade de que a crise fosse utilizada como pretexto para corroer ainda mais a democracia [3]. Sob a justificativa de se estar em uma situação de emergência e diante da ausência de previsão de medidas adequadas pelo sistema jurídico, um governo à margem do Estado de Direito poderia ser apresentado como solução [4]. Logo ao início da pandemia, por exemplo, o governo da Hungria requereu ao Legislativo a extensão, por prazo indeterminado, da situação de estado de emergência, o que conferia ao Executivo poderes quase que ilimitados [5].

Tornou-se necessário, portanto, que a sociedade e as instituições mantivessem sob vigilância constante as medidas de combate ao coronavírus, a fim de avaliar se eventuais restrições a direitos fundamentais e outras normas constitucionais se justificavam, à luz dos princípios da concordância prática e da proporcionalidade.

Nessa conjuntura, o STF estava diante do cenário ideal para retomar seu protagonismo na defesa da Constituição, colocando a democracia e os direitos fundamentais em primeiro plano. Ultrapassado o primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro, instalada a profunda crise decorrente da pandemia da Covid-19 e após reiterados ataques à sua autonomia, o ano de 2020 impôs ao STF romper com a postura de autocontenção para frear a guinada autoritária.

Não à toa, olhando para trás, verifica-se que a vigilância, referida pelo ministro Fux, foi de fato constante no que toca à preservação dos pressupostos formais da democracia. É impossível não lembrar da decisão que suspendeu norma que isentava o governo federal de responder aos pedidos de acesso à informação na pandemia [6]; da que determinou que o Ministério da Saúde mantivesse a divulgação diária dos dados epidemiológicos [7]; e da que suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal [8], diante da possível pretensão de aparelhamento do órgão. Houve ainda a suspensão de ato cujo objetivo era produzir e compartilhar informações de pessoas integrantes do movimento político antifascista [9]; a suspensão de medida provisória que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dados identificados de seus consumidores de telefonia móvel [10]; e a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que proibia a utilização de material didático sobre "ideologia de gênero" nas escolas públicas [11].

Lado outro, o STF também foi firme em reconhecer o valor da ciência, minando um dos elementos do fascismo o anti-intelectualismo [12]. Sobre isso, podem ser citados os precedentes nos quais: 1) se estabeleceu a autonomia de Estados e municípios para adotar medidas de contenção à pandemia, desde que amparadas em orientações de seus órgãos técnicos correspondentes [13]; 2) se destacou que a desconsideração dos dados da ciência poderia levar à responsabilização dos agentes públicos [14]; e 3) se fixou tese acerca da obrigatoriedade de imunização por meio de vacina [15].

Todavia, a despeito desses avanços, não se pode olvidar que o neoliberalismo autoritário e o populismo penal são fatores estruturantes da crise democrática contemporânea. E, nesses pontos, ainda há passos a percorrer.

O neoliberalismo autoritário caracteriza-se pela redução da intervenção estatal na economia e desmantelamento do sistema de proteção social. Em síntese: adota-se uma política de austeridade que prioriza dos interesses das grandes empresas e rejeita os direitos sociais, trabalhistas e ambientais. A prova disso é que, durante a pandemia, o negacionismo do presidente veio a se revelar não como produto de desinformação, mas como opção por priorizar as atividades econômicas em detrimento das vidas.

Nesse ponto, há que se aperfeiçoar a vigilância. Durante o ano de 2020, o STF validou acordos individuais de redução salarial [16], contribuindo para o enfraquecimento dos sindicatos; e, apesar de ter deferido requerimentos importantes, como a criação de barreiras sanitárias e a instalação de sala de situação, indeferiu a retirada de garimpeiros e madeireiros das terras indígenas,...

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