O retorno da moral

AutorDardo Scavino
Ocupação do AutorProfessor Titular de Filosofia
Páginas101-155
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III. O RETORNO DA MORAL
1. Moral e dominação
A morte do Homem
O iluminismo já havia concebido um sujeito trans-his-
tórico e trans-cultural: o Homem. Semelhante a Deus, Ho-
mem era um sujeito absoluto nos dois sentidos da palavra:
não-relativo, universal, mas também ab-solvido, ou seja,
des-ligado de toda determinação histórica ou cultural. Este
sujeito, então, era absolutamente livre. E se podia acessar
uma verdade objetiva, desprovida de preconceitos, desliga-
da de qualquer determinação, era precisamente porque tra-
tava-se de um sujeito livre. A liberdade, neste aspecto, era
uma condição da verdade. E este sujeito era livre porque era,
em última instância, autônomo, porque ditava as próprias
normas ou leis de seu agir, porque se autolegislava ou não
obedecia às normas de outro.
Todavia Sartre, retomando o conceito husserliano de
“intencionalidade”, propunha em O ser e o nada este raciocí-
nio: toda consciência é consciência de algo; por conseguinte, a
consciência não é algo, não pode ser tratada como uma coisa
ou como um objeto. Num sentido estrito, a consciência não é
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DARDO SCAVINO
nada e, consequentemente, subtrai-se a qualquer determi-
nação. De um ou outro modo, as diversas morais modernas
eram morais da liberdade. O dever do homem moderno era,
antes de mais nada, ser absolutamente livre. De modo que
não podia justificar seus atos invocando causas externas ou
motivos psicológicos. Ninguém pode dizer que rouba por-
que tem fome ou que fica violento porque doem seus mola-
res. Quando acode a estas explicações, o indivíduo não se
toma por um sujeito, mas como um objeto. É o que acontece
com o escravo de Hegel: prefere a escravidão porque teme a
morte. De maneira que, ainda neste caso extremo, o sujeito
escolhe livremente converter-se num objeto, decide volunta-
riamente já não ter vontade própria e submeter-se à vontade
do amo. Em última instância, o sujeito é responsável por to-
dos seus atos: a livre vontade do sujeito absoluto era o fun-
damento da moral.
A propósito do pensamento de Marx, Nietzsche e
Freud, Michel Foucault constrói na década de ’60 a expres-
são “morte do Homem”. Este sujeito absoluto tinha começa-
do a desaparecer, com efeito, desde meados do século XIX.
Já não se pode falar de um sujeito universal e livre, o Ho-
mem, mas de vários sujeitos relativos e ligados a contextos
históricos e culturais. Daí que um psicanalista como Jacques
Lacan pode brincar como os dois sentidos da palavra sujeito:
uma consciência, por um lado, que se crê livre e desprecon-
ceituada; e, por outro, alguém sujeito às diversas linguagens
culturais (ou como dirá Derrida no monolinguismo do outro:
Tenho uma só língua, e não é a minha”, é a do outro, esse
outro que fala em meu nome e me dá sua palavra). A situação
inverte-se: já não se trata do sujeito livre, autônomo, que
busca desculpas para justificar seus atos, mas do sujeito de-
terminado, compulsivo, que se imagina atuar com movimen-
tos próprios. Já dizia-o Spinoza, no século XVII – e por isso
se converterá, retroativamente, em um “precursor” de Marx,
Nietzsche e Sigmund Freud –: os homens creem-se livres
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A FILOSOFIA ATUAL: PENSAR SEM CERTEZAS
porque ignoram suas determinações. Mas se aquele sujeito
absoluto, universal e livre, era só ilusão, se não havia mais
que sujeitos relativos e ligados a contingências histórias e
determinações culturais, como poderia a filosofia fundar, en-
tão, uma moral? Esses sujeitos já não são responsáveis por
todas as determinações. E mais, pode-se estudá-los como se-
res naturais, porque seus comportamentos respondem a de-
terminações históricas, econômicas, sociais, linguísticas ou
pulsionais. Estes sujeitos não são autônomos porque obede-
cem à norma de outro, aos valores de sua etnia ou à língua de
seus antepassados. A possibilidade de uma ciência capaz de
estudar os comportamentos humanos de maneira objetiva
implicava a impossibilidade de fundar uma moral universal
do Homem. As ciências humanas, curiosamente, eram inse-
paráveis da morte do Homem.
Ao pretender fundar uma moral universal, a filosofia
iluminista parecia ter-se convertido em vítima de uma ilusão
etnocêntrica, semelhante à ilusão objetivante da filosofia da
representação ou metafísica. Poderia falar-se de um bem e
um mal universais? O bom para uma cultura não pode ser mal
para outra? Cada povo considera que sua maneira de viver é
a melhor ou a verdadeiramente boa, e costuma desprezar a
dos estrangeiros, os bárbaros, porque vivem “mal” a partir do
momento em que não se comportam “como a gente”. O termo
moral, justamente, provém do latim mos, que significa costu-
me, usos ou hábitos. Que estas práticas culturais estejam es-
treitamente ligadas à linguagem, ao logos, é algo que os pró-
prios gregos já sabiam: os “bárbaros” não eram somente
aqueles que não se comportavam “como a gente”, mas tam-
bém, especialmente, aqueles que emitiam uns sons mais se-
melhantes ao “balbuciar”7 dos pássaros que à pronúncia de
7. N.T.: No espanhol, “barboteo” quer dizer falar de maneira atropelada as
palavras. Nessa língua o termo se assemelha ainda mais à expressão “bár-
baro” do que no idioma português.

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