O Retorno do Risco. As Mudanças na Aposentadoria do Servidor Público

AutorMárcio Gheller
CargoServidor do Ministério da Fazenda. Professor. Aluno na Universidade de Buenos Aires - para cursos de doutorado em Direito Civil (UBA)
Páginas30-37

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1. Introdução

O mundo é um lugar perigoso. E o futuro é imprevisível. Com estas palavras Niall Ferguson1, economista escocês, descreve os riscos do mercado financeiro, lembrando que naturalmente a vida sempre foi perigosa, sempre houve furacões, guerras, pragas, fome e peste. Todos os dias ho-mens e mulheres ficam doentes, ou são feridos ou acidentados, e não podem mais trabalhar. Todos nós envelhecemos e perdemos a força para ganhar o pão nosso de cada dia. E uns poucos desafortunados já nascem incapazes de se manter. Esta racionalização nos impõe a necessidade de guardar reservas para o porvir. O truque é saber o quanto poupar e o que fazer com estas poupanças.

O objetivo deste ensaio e pro-vocar uma re? exão sobre alguns aspectos de mudanças que vêm ocorrendo com as aposentadorias e pensões no universo dos servidores públicos.

2. As mudanças nas regras de aposentadoria fiprobabilidade, expectativa de vida e certeza

Só aproveitamos a aposenta-doria, do ponto de vista de uma visão econômica, quando temos fundos para substituir a renda. Este "estar preparado", constituir reservas su? cientes para uma ve-lhice confortável, passa pela decisão de todos os dias, e de uma vida, e a equação fundamental é gastar sem poupar ou poupar para gastar mais tarde.

A grande encruzilhada parece ser: se nos fiamos no modelo an-glo-saxão, em que o livre-arbítrio individual nos coloca na condição de espera de auxílio por um Estado que parte do pressuposto que o cidadão é autossu? ciente, que do seu fracasso ou sucesso deve estar vinculado ao império de sua vontade, devendo a coletividade somente ser buscada ou demandada em casos de falhas de mercado2, de inexistência de condições materiais da família, de um infortúnio imprevisto em situações extremas; ou se nos fiamos em outra expecta-tiva, a do modelo ibérico ou latino, em que a crença é a de que, como descreve Renato Follador, a cultura brasileira sedimentou a imagem do Estado-pai, ou seja, uma entidade cartorial possuidora de uma cornucópia de recursos, dis-cricionariamente alocados3.

O economista italiano Franco Modigliani, prêmio Nobel em 1985 por sua análise pioneira sobre poupança e mercados financeiros, já constatava em seus estudos que as famílias destinam uma parte de sua renda atual para o consumo, mas tendem a consumir conforme suas expectativas de renda pela vida, dentro de um senso que, como seres racionais, olham para o futuro e não gostam de receber choques, o que os leva a poupar

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quando jovens para usar suas economias quando mais idosos.

O enfoque deste ensaio é localizar o marco regulatório no que se refere à proteção social do cidadão comum, per? lado nos quadros dos servidores públicos do Estado brasileiro, desconhecedor se as atuais normas conferem uma mudança de paradigma, ou se con? rmam o contrato de adesão firmado por este indivíduo quan-do adentrou aos quadros públicos. Embora nem sempre percebamos com clareza, existem diversas mudanças no sistema de proteção social dos servidores, que os envolvidos devem atentar, para estar seguros. A propensão humana de fechar as portas de estábulos depois que os cavalos fugiram é bem ilustrada pela história do seguro contra incêndios. Em 1666 houve um grande incêndio em Londres, que destruiu mais de 13.000 casas. Somente catorze anos mais tarde foi criada a primeira companhia de seguro contra o fogo4. O alerta, então, é que busquemos a prudência e a previdência.

Quando falo em marco regula-tório, refiro-me às normas, ao direito, àquilo que Kelsen5 afirmou ser uma ordem da conduta huma-na, que pode ser infiuenciada por tendências políticas, que se faz conduzir por um ideal específico de justiça, como a democracia e o liberalismo.

E as pessoas são protegidas, além das corretas e acertadas decisões cotidianas que tomam, por um conjunto de normas que, após as grandes guerras mundiais, passou-se a chamar direito social, que nada mais é que o direito das classes e dos grupos protegidos frente ao Estado, frente a outros grupos e classes, e frente à sociedade mes-ma, um conjunto normativo em que se permita ao cidadão igual-dade de oportunidades de desen- volvimento dos membros de uma sociedade, independentemente da situação econômica, cultural e social.

Em sede constitucional, nosso legislador dedicou um título inteiro (título VIII, da ordem social, artigos 194 a 204) lançando mão de conceitos para aclarar os direitos a saúde, previdência e assistência social. E com o especial cuidado de orientar o binômio contribuição/aposentadoria. Sabe-se, na simples leitura do artigo 194 daquele diploma legal, que a massa trabalhadora deverá destinar parcela de suas rendas, seus vencimentos, suas tenças, férias ou haveres para posterior período, chamado de descanso, jubilação ou inatividade.

Estas cobranças elevaram as contribuições sociais àquilo que o STF classificou como exigência patrimonial de nature-za tributária, não havendo norma constitucional que imunize os proventos e as pensões mesmo após a aposentadoria dos servidores, a teor da ADI 3.105/2005, nem mesmo após a concessão do benefício na velhice, tempo de serviço, de contribuição ou invalidez. O princípio esposado pelo Supremo é o da solidariedade e do equilíbrio ?-nanceiro atuarial.

Desenhado o quadro geral, vamos ao ponto nodal, que é como é construído o marco protetivo ao servidor público.

É cediço que o nível de proteção dos trabalhadores da iniciativa privada, cuja atividade comercial almeja o lucro, e dos servidores do Estado não é idêntico. E não o é pelas divergências das características da prestação dos serviços, senão por sua natureza.

De um lado os trabalhadores da iniciativa privada, guiados pelo mandamento do artigo 201 da Constituição republicana estabelece um limite máximo para benefícios regrada pelos limites legais de normas do seguro social, ou seja, benefícios máximos em R$ 4.390,24 (menos de dois mil dólares mensais) e contribuição máxima pelo segurado em R$ 482,92, sendo a diferença de cobertura suportada pela coletividade (empregadores e impostos).

De outro lado, o teto da remuneração dos servidores federais corresponde no máximo ao salário de ministro do STF, que é para o ano de 2015, equivalente a R$ 33.763,00 (trinta e três mil, setecentos e sessenta e três reais) a contar de 1º de janeiro de 2015, ou o equivalente, naquela data, a mais de dez mil dólares, enquanto a contribuição máxima será de R$ 4.663,75. A diferença de cobertura é paga pelo Estado empregador, notadamente com impostos. A fixação do siste-ma remuneratório está descrita nos artigos 39 a 41 da carta constitucional.

Exposto como acima, poder-se-ia pensar que o direito discrimina, de forma cruel, os trabalhadores da iniciativa privada em detrimento do servidor. Pontuemos.

Primeiro, como muito bem leciona Marcelo Leonardo Tavares6, existem dois sistemas de previdência no Brasil, o público7 e o privado. O primeiro cobre toda a remuneração dos seus servidores públicos (obrigatório), e uma parte das remunerações dos

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trabalhadores em geral (RGPS), sendo que a diferença salarial foi fiexibilizada para que os trabalha-dores regidos pela CLT pudessem vincular-se, se assim o desejassem, a uma previdência privada, de caráter facultativo e natureza contratual. É o que disciplinam os artigos 201 e 202 da CF/88 e as leis complementares 108 e 109 de 2001.

Segundo, que os benefícios somente são díspares em situação-limite, ou seja, nos extremos de um regime, se comparado com o extremo de outro. Com isso a? r-mo que o nível de proteção de dois trabalhadores, no que se refere ao seguro social, sendo um regido pela CLT e outro estatutário, e que recebam os mesmos vencimentos mensais, digamos, R$ 4.000,00, cumpridos os requisitos legais que lhes sejam próprios, receberão semelhantes valores na inatividade.

Visto por outra ótica, à inicia-tiva privada assegura-se um mínimo de proteção, no mínimo de X, enquanto eventuais complementações poderão ser contratadas com planos privados abertos (socieda-des anônimas com finalidade lu-crativa, que podem pactuar planos individuais ou coletivos) ou entidades fechadas (fundos de pensão na forma de fundação privada ou sociedade civil sem fins lucrati-vos).

Quanto aos servidores, que aderem ao regime de trabalho regulado pela Lei 8.112/90 ou regime jurídico único, não há a possibilidade de contratação com planos privados, sendo obrigatória a aplicação da contribuição em um padrão de vencimento estabelecido por lei, que lhe estabelece a natureza, o grau de responsabilidade e complexidade dos cargos componentes de cada carreira, os requisitos para a investidura e as peculiaridades dos cargos.

Ou seja, a contrario sensu, procurou-se estabelecer ou sistema de proteção no máximo de Y, para o provimento de cargos públicos, aos candidatos que por tais carreiras se interessarem, observados os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, cujo acesso deverá se realizar com a aprovação em concurso público, provas de títulos e demais requisitos e restrições estabelecidos em lei.

Decorrente desta relação jurídica, a carta republicana não veda o acúmulo de atividades pro? ssio-nais nas atividades privadas, e o faz quando da prestação de serviço pelos servidores, vedando-lhes o acúmulo remunerado de cargos públicos, exceto a de dois cargos de professor ou a de um cargo de professor com outro técnico ou cientí? co (artigo 37, VXI, ‘a’ e ‘b’ da CF/88). Veda também ao servidor de participar da gerência ou da administração de sociedade privada, como preceitua o artigo 117 da Lei 8.112/90.

Vencida a desigualdade legal no trato, abordemos as mudanças que estão ocorrendo com a previdência dos servidores, basicamente tratadas no artigo 40 da carta. Como toda mudança da norma, implica ameaças e oportunidades aos titu-lares dos direitos que tiveram o seu marco...

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