A Terceirização Revisitada : Algumas Críticas e Sugestões para um Novo Tratamento da Matéria

AutorMárcio Túlio Viana
Ocupação do AutorProfessor nas Faculdades de Direito da UFMG e PUC-Minas. Desembargador aposentado do TRT-3ª Região
Páginas209-223

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1. A terceirização em geral

Uma mesma palavra pode ter mais de um sentido. A palavra “terceirização” é assim. Pode-se terceirizar, de um lado, como faz a indústria de automóveis; de outro, como faz uma empresa de conservação e asseio.

No primeiro caso, a fábrica externaliza etapas do processo produtivo. Ao invés de fabricar um auto-móvel inteiro, divide a produção com suas parceiras. No segundo caso, a empresa internaliza empregados de outras. Ao invés de contratar pessoal de limpeza, ela contrata ... quem os contratou.

O que há de comum nas duas formas é que em ambas a empresa externaliza custos e internaliza a lógica da precarização. No mesmo instante em que cobra mais responsabilidades dos que lhe prestam serviços, tenta crescentemente se desresponsabilizar.

A precariedade se liga com o desemprego, e o desemprego é sempre uma tragédia. Ele tensiona e enfraquece os laços familiares e ajuda (por isso mesmo) a isolar os indivíduos. Há alguns anos, por exemplo, as curvas das dispensas e do suicídio entre os trabalhadores franceses de 25 a 49 anos caminhavam lado a lado. Entre os precários em geral, o consumo de psicotrópicos era três vezes maior que o normal1.

Quando perde o emprego, o trabalhador perde também a auto-estima. De um lado, porque – mesmo sem ter consciência disso – deixa de se sentir parte de um todo, homem útil na construção (ou recriação) do mundo. De outro, porque o mesmo discurso que lhe exige adaptações e mobilidades também lhe cobra performances e sucesso na vida, atribuindo-lhe culpas e responsabilidades. Assim, o gesto do patrão que o despede é sentido pelo empregado como um “fracasso pessoal”2.

Por outro lado, em ambos os casos – e como veremos melhor adiante – a terceirização fragmenta a coletividade operária3. Ora, ao contrário do que acontece com o Direito Comum, o Direito do Trabalho está sempre questionado; vive sob tensão. Por envolver um embate constante entre trabalho e capital, exige um acúmulo maior de forças não só para se construir formalmente, como para se efetivar na realidade. Nem mesmo a existência de um forte aparato estatal – auditores fiscais, uma Justiça e um Ministério Público especializados, como acontece no Brasil – garante o equilíbrio de forças. Assim, a ação coletiva deve estar sempre presente, ainda que em

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potência. Quando o sindicato se enfraquece, é o próprio Direito que entra em crise.

Desse modo, para além de suas (reais ou falsas) justificações técnicas, a terceirização se insere numa estratégia de largo espectro, não apenas sob o prisma econômico, mas na dimensão política. É uma das formas mais potentes – e ao mesmo tempo mais sutis – de semear o caos no Direito do Trabalho, subvertendo os seus princípios e corroendo seus alicerces4. Além disso, num mundo em que tudo se move, ela oferece à empresa uma rota de fuga, não só confundindo responsabilidades como tornando menos visível a exploração da mão de obra. Assim, de certo modo, a terceirização não apenas pode conter fraudes, mas é em si mesma uma fraude.

1. 1 Para diferençar as duas formas

Vimos que numa das formas de terceirização a empresa leva para fora etapas de seu ciclo produtivo; ao passo que na outra traz para dentro trabalhadores alheios.

Se atentarmos para o lugar onde essas duas formas de terceirização em geral se desenvolvem, podemos chamar a primeira de externa e a segunda de interna. Mas ainda que adotemos essa terminologia – como faremos nesse trabalho – é preciso admitir que a diferença relacionada com o lugar é relativa.

De fato, pode acontecer – mesmo por exceção – que a empresa externalize etapas de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras atuem na mesma planta, num único ambiente – como ocorre em algumas fábricas de automóveis. Outras vezes, inversamente, a empresa internaliza empregados de outra, mas esses trabalhadores permanecem fora dela – como é o caso de alguns call-centers.

Assim, para entender melhor a diferença e o significado das duas formas de terceirização, talvez seja interessante voltarmos a uma velha e sábia lição de OLEA, que compara o trabalho por conta própria com o trabalho por conta alheia5.

No trabalho por conta própria, o produto pertence ao trabalhador do início ao fim do processo produtivo. O artesão faz o seu balaio e só num segundo momento o transfere – se quiser – para as mãos do comprador.

Já no trabalho por conta alheia, o produto vai passando automaticamente para o empresário, em tempo real, na medida em que vai sendo fabricado. É como se, pouco a pouco, o balaio do artesão fosse escorrendo de suas mãos.

A terceirização externa, como dizíamos, lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da produção passa a ter proprie-dade sobre ele.

Ora, essa forma de terceirização, por si mesma, não afeta de forma negativa as subjetividades. Trabalhar numa fábrica que fornece peças não é subs-tancialmente diferente do que trabalhar numa montadora. Estar aqui, ao invés de estar ali, não fere a dignidade de ninguém. Em última análise, trata-se do mesmo fenômeno que faz nascerem, de um lado, fábricas de relógios, e de outro, de doces de leite.

Naturalmente, nessa hipótese, não se pode dizer que o operário da fábrica de autopeças exerça uma atividade meio, já que o fim da fábrica será exatamente produzir peças – ainda que, num segundo momento, sejam estas vendidas para a montadora. Na verdade, na terceirização externa, a discussão sobre atividade meio ou fim simplesmente não se coloca

Já a terceirização interna nos remete ao trabalho por conta alheia. Uma empresa se serve dos empregados contratados por outra, e o que lhe interessa, diretamente, é a própria prestação de serviços. Assim, à medida que o produto é construído, vai passando automaticamente para as suas mãos.

A terceirização interna desloca o empregador para fora da relação jurídica de emprego, como se ele fosse uma peça de xadrez6. Aliás, no fundo, o novo modelo produtivo tem feito muito esse jogo, embora quase sempre prefira deslocar não o rei, mas o peão, ou seja, o empregado – como acontece, por exemplo, nos contratos de estágio ou nas cooperativas de mão de obra. Mas isso em nada altera o resultado final, já que a relação jurídica, de um modo ou de outro, se desmonta. Assim, quando a Súmula 331 do TST taxa uma terceirização de ilícita, e reconhece o tomador

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como empregador, não faz mais do que recolocar as peças no lugar de onde nunca deveriam ter saído.

Quanto ao trabalhador terceirizado, não é diferente, sob alguns aspectos, do burro de carga ou do trator que o fazendeiro abastado aluga aos sitiantes vizinhos. Jogado daqui para ali, de lá para cá, é ele próprio – e não apenas sua força de trabalho – que se torna objeto do contrato, ainda que dentro de certos limites. Num passe de mágica, e sem perder de todo sua condição humana, o trabalhador se vê transformado em mercadoria7. Seu corpo está exposto na vitrine: a empresa tomadora vai às compras para obtê-lo, e de certo modo o pesa, mede e escolhe.

Falando do homem dos tempos modernos, Bauman o retrata como o peregrino – que segue firme o seu percurso, procrastinando sua felicidade, sua realização pessoal. Para esse homem, “o significado do presente está no futuro”.8 E é esse futuro planejado, esperado, que “dá forma ao informe, transforma o fragmentado num inteiro, dá continuidade ao que é episódico”9.

Já o homem pós-moderno está mais para o vagabundo ou para o turista. Ele se mexe, se move, mas com os olhos postos no presente. Sua vida é uma sucessão de recortes, de retalhos descosturados.

Mas o vagabundo e o turista, embora tenham aquele traço em comum, também são diferentes: o primeiro não tem um lugar, o segundo tem mil lugares. E a mesma diferença podemos encontrar entre o terceirizado e o seu oposto extremo – o trabalhador com vínculo direto, bem qualificado, que distribui currículos pela Internet e se desloca por sua própria conveniência. Tanto um quanto o outro são como folhas ao vento. Mas – no limite – o terceirizado (ou o vagabundo) pode se tornar a sombra do trabalhador com vínculo direto (ou o turista), que hoje ainda consegue escolher onde ficar, mas no futuro corre o risco de ser apenas escolhido. Como naquelas tétricas mensagens de alguns cemitérios, um sussurra para o outro: “eu sou você amanhã...”

Um caso à parte é a empreitada. Uma empresa se desloca com seus homens, suas ferramentas e (às vezes) todo o material necessário para montar uma máquina, construir uma casa ou prestar serviços de manutenção em elevadores. Em relação ao tomador, a atividade lembra o trabalho eventual. Além disso, não há subordinação, nem pessoalidade (hipóteses em que a própria figura se desnaturaria). Mas o que realmente importa é que os trabalhadores se ligam efetivamente – até mesmo em termos psicológicos – à empresa prestadora de serviços . É como se toda a empresa se deslocasse junto com eles.

A terceirização externa quebra a classe operária em termos objetivos, na medida em que viabiliza a produção em pequenas unidades, na forma de rede; a interna a divide sobretudo...

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