Revisitando o Museu Nacional e a história da Antropologia no Brasil pelas mãos de Heloísa Alberto Torres

AutorAdelia Miglievich-Ribeiro
CargoDoutora em Sociologia (PPGSA-IFCS-UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e docente permanente no PPG de Ciências Sociais e no PPG de Letras (mestrado e doutorado). PQ Produtividade, nível 2, do CNPq. Atualmente, em posdoc, como pesquisadora colaboradora do PPGSOL-UnB. E...
Páginas27-59
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2019v18n41p27/
2727 – 59
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Revisitando o Museu Nacional
e a história da Antropologia no
Brasil pelas mãos de Heloísa
Alberto Torres1
Adelia Miglievich-Ribeiro2
Resumo
O artigo destaca o protagonismo de Heloísa Alberto Torres (1895-1977) no campo da ciência e da
cultura no Brasil, como antropóloga e diretora do Museu Nacional, na cidade do Rio de Janeiro,
instituição guardiã dos maiores acervos em História Natural e Antropologia. A análise de sua traje-
tória permite a reconstrução dos “círculos sociais” (SIMMEL, 1939), em seus entrecruzamentos e
tensões, que possibilitaram, na era Vargas, a formação de importantes instituições brasileiras com-
prometidas com a construção da identidade nacional. Em uma especial “estrutura de sentimentos”
(WILLIAMS, 2011), marcada pelo positivismo e pela indissociabilidade entre progresso cientíco
e soberania nacional, Heloísa Alberto Torres compõe uma geração a valorizar as riquezas naturais
e as culturas primordiais como um projeto do campo antropológico em seus inícios. A visibilidade
à excepcional trajetória da cientista pretende ainda fazer justiça àquelas mulheres que atuaram
1 A pesquisa que subsidia este artigo, fruto da tese de doutorado defendida no PPGSA/IFCS/UFRJ, sob a orien-
tação de Glaucia Villas Bôas, no ano 2000, foi por mim publicada bastante posteriormente no livro Heloísa
Alberto Torres e Marina de Vasconcellos: mulheres pioneiras e a formação das Ciências Sociais na cidade do
Rio de Janeiro (Ed. UFRJ, 2015), que conjugou o “garimpo” em diversos arquivos no Estado do Rio de Janeiro,
além do recurso às narrativas orais. A “tragédia anunciada” do Museu Nacional, seu incêndio em 02 de
setembro de 2018, levou-me a revisitá-la criticamente, anunciando novos viezes analíticos a fim de visibilizar
a luta, no caso, de uma mulher, que expressa, talvez, o imenso voluntarismo dos e das cientistas cientistas
brasileiros(as) em face da diversidade dos obstáculos enfrentados em distintos tempos históricos.
2 Doutora em Sociologia (PPGSA-IFCS-UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Uni-
versidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e docente permanente no PPG de Ciências Sociais e no PPG de Letras
(mestrado e doutorado). PQ Produtividade, nível 2, do CNPq. Atualmente, em posdoc, como pesquisadora
colaboradora do PPGSOL-UnB. E.mail: miglievich@pq.cnpq.br.
Revisitando o Museu Nacional e a história da Antropologia no Brasil pelas mãos de Heloísa Alberto Torres | Adelia Miglievich-Ribeiro
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na ciência e na vida pública, em cargos de mando, em um tempo em que tais arenas ainda eram
exclusivamente masculinas. Por m, conclui-se pela prevalência da dinâmica da vida social e das
transformações históricas sobre a aparência de imobilismo das instituições de modo que,mesmo
em cenários os mais hostis, é possível identicar as emergências que mantêm viva a esperança.
Palavras-chave: Heloísa Alberto Torres. Museu Nacional. história da Antropologia.
Apresentação
Aquela “presença de Heloísa” que Carlos Drummond de Andrade tão bem
definiu é, contraditoriamente, um imenso vazio para os que, como nós, lidaram
de perto com a dileta filha de Alberto Torres. A triste evocação da mestra,
em diferentes atividades a que emprestou sua inteligência e seu aplomb, só agora
proporcionará triste e dolorosa avaliação.
(POURCHET, 1977, p. 60).
Heloísa Alberto Torres (1895-1977), nas palavras da antropóloga
Maria Júlia Pourchet (1977), foi arqueóloga, antropóloga, indigenista, pes-
quisadora, chefe, membro de diferentes conselhos cientícos. Uma mulher
idealista em seu amor à ciência que, convicta do valor da brasilidade e es-
pecialmente atenta ao indigenismo, ocupou, na primeira metade do século
XX, o protagonismo na escrita da história das ciências sociais na cidade do
Rio de Janeiro, então capital da república, na hercúlea missão, até então
exclusivamente masculina, de fomentar instituições cientícas e culturais
para um Brasil que ainda buscava alcançar a modernidade.
Falamos de um tempo em que, sob a forte inuência positivista, ho-
mens públicos – e algumas poucas mulheres – enfatizavam o desenvolvi-
mento cientíco como condição sine qua da soberania nacional. Os po-
líticos e os cientistas conversavam, reconhecendo-se mutuamente como
artíces de um Brasil que mal se emancipara da metrópole, Portugal. Con-
forme Gondra e Schueler (2008, p. 28), os museus existentes durante o
Império – Museu Nacional do Rio de Janeiro (1818), Museu Paraense
Emílio Goeldi (1871), Museu Botânico do Amazonas (1883-1890) – ser-
viram ao projeto político incentivado desde o período regencial (1831-
1840) até o Segundo Reinado (1840-1889), de exibição das riquezas locais
para ns de sustentar a invenção da nação.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 18 - Nº 41 - Jan./Abr. de 2019
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A aliança entre ciência, preservação da memória coletiva e projeto de
nação contida no ideário positivista, mais do que um imaginário, mas uma
“estrutura de sentimentos”, em acordo com o materialismo cultural de
Raymond Williams (2011) 3, partia da Europa e se “aclimatava” progressi-
vamente nas Américas. Entre o nal do século XIX até a década de 1920,
assistiu-se à formação e à instauração de museus que se destacavam pelas
atividades de ensino e pesquisa cientíca, em contraposição às institui-
ções do século XVIII, cujas coleções haviam sido até então organizadas de
acordo com critérios estritamente estéticos: “Os museus conquistam nova
lógica e relevância, enquanto espaços onde a nação se faz ao mesmo tempo
sujeito e objeto da reexão” (SCHWARCZ, 1989, p. 23).
Aos museus no Brasil passavam a caber, também, a produção e a di-
vulgação de conhecimentos cientícos sobre as riquezas naturais, gentes e
culturas desta terra. Em acordo com Domingues (1996), o Brasil represen-
tava-se pela opulência das suas riquezas naturais, cuja exploração cientíca
resultou no “colecionismo” de objetos da natureza que faziam a grandeza
de tais museus e os inseriam na rede internacional das ciências naturais. Os
museus também respondiam pela formação de novos prossionais para o
exercício da ciência no Brasil.
O Museu Real, como primeiro se chamou o Museu Nacional, a mais
antiga instituição de ciências da América Latina, foi criado pelo decreto de
06 de julho de 1808, funcionando como centro aglutinador de ciência e
cultura na Corte. Se, no século XIX, o museu esteve integrado às explo-
rações colonialistas, depois, serviu à armação da soberania nacional, de
maneira que as pesquisas realizadas pelo seu quadro de cientistas ao mesmo
tempo em que desvendavam conhecimentos sobre a natureza permitiram
a montagem das ricas coleções que retratavam as culturas múltiplas das
populações originais no imenso território nacional.
3 Tenho feito uso do conceito de Raymond Williams (2011) com vantagens em minhas pesquisas na sociolo-
gia dos intelectuais. Este me ajuda a escapar de uma demasiada ênfase quer na agência humana quer na
estrutura. Na verdade, seu “materialismo cultural” supera a cisão entre infra e superestrutura, ressaltando as
vivências ou experiências e a chamada “consciência prática”, que afetam os sujeitos e são por eles afetadas,
necessariamente, relacionais, internas e externas aos indivíduos, processuais, pouco discerníveis; porém, reais
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2018).

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