Revistas pessoais: uma análise acerca da violação aos direitos fundamentais do empregado

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas289-300

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1. Introdução

Dentre os múltiplos aspectos que caracterizam o contrato de trabalho, a subordinação jurídica do empregado e o poder diretivo do empregador apresentam-se como elementos informadores centrais. Com base no poder diretivo e com o escopo de tutelar a propriedade, torna-se cada vez mais frequente, pelos empregadores, o uso de mecanismos de controle dos empregados nas relações de trabalho. Neste contexto, o presente estudo possui como objetivo o exame das Revistas Íntimas1 e Pessoais.

Se por um lado o empregador invoca o direito de propriedade2 para a realização das Revistas Íntimas e Pessoais, de outra banda, não se pode negar a tutela aos direitos da personalidade do empregado, em especial o direito à intimidade e à privacidade, integrantes do rol dos direitos fundamentais e protegidos pelo art. 5º, x, da Constituição de 1988 (CRFB/1988). Resta claro, portanto, a existência de uma “colisão” entre direitos fundamentais, tornando-se imperiosa a análise, por meio da ponderação entre princípios e direitos constitucionais envolvidos, se as Revistas Pessoas e Íntimas representam uma violação aos direitos fundamentais do empregado ou se tal prática encontra respaldo na ordem constitucional vigente, que prevê em seu art. 1º, III, a dignidade humana como fundamento da República, e, ainda, num cenário de preocupação com a efetividade dos direitos da personalidade do empregado.

Assim, o objetivo do presente estudo é justamente proceder a essa análise, considerando também a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que, sem dúvida, está em aquiescência com a tendência do Direito do Trabalho em proteger os direitos da personalidade dos empregados, devendo ser reconhecido como uma ferramenta essencial para a promoção da justiça social. Far-se-á um exame de como essa questão vem sendo tratada pelos Tribunais do Trabalho através da verificação de recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST), não sem antes verificar o caso paradigmático da empresa De millus (em 1991), onde milhares de empregadas do setor de produção de lingeries eram submetidas a Revistas Íntimas ao final do expediente.

2. Tutela dos direitos fundamentais nas relações de trabalho

Em uma sociedade pluralista e desigual, como a da atualidade, forçoso é reconhecer que em muitas das relações privadas que são celebradas, uma das partes tem um poder opressor em relação à outra. Assim sendo, se por um lado temos o direito à autonomia da vontade e à autodeterminação dos interesses privados, por outro temos que os direitos fundamentais são constitucionalmente assegurados a todos.
Portanto, em face deste conflito, faz-se necessário uma ponderação de interesses e o encontro de uma solução que compatibilize ambos os princípios, procurando, sempre, que um não anule completamente o outro.

A aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais se contrapõe à ideia de eficácia vertical dos mesmos. Esta última, que sempre foi utilizada, dá-se na relação entre o particular e o Estado, porém, com o decorrer dos tempos,

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percebeu-se que isso não era suficiente. A doutrina e judiciário, então, passaram a entender que tais direitos deveriam ter aplicabilidade também nas relações entre particulares, sendo consagrada então a eficácia horizontal, a fim de evitar abusos e arbitrariedades de uma das partes em prejuízo da outra.

Em que pese a existência de diversas teorias que buscam explicar o tema3, o Brasil adotou a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Então, no ordenamento jurídico pátrio, é desnecessário que haja intervenção do legislador ordinário4, e não poderia, ser outra a solução a ser encontrada, pois a Constituição de 1988 adota um modelo de Estado Social, tendo como um de seus objetivos a diminuição da desigualdade social e regional, bem como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Além disso, possui um extenso rol de direitos sociais e individuais, o que comprova seu distanciamento do Estado Liberal.

O fato de o Brasil figurar entre os países com maior atraso social do mundo e por apresentar um abismo econômico--social entre as classes mais e menos favorecidas, indubitavelmente, auxilia na adoção dessa teoria. Cumpre esclarecer que é descabida a alegação daqueles que se insurgem contra esta teoria, aduzindo que há uma privação da autonomia da vontade. Tal entendimento não deve ser considerado correto, uma vez que não há direito absoluto e, tal princípio deve ser confrontado com outros no caso concreto para que, numa ponderação de interesses, seja dada a decisão mais justa. Além disso, para realmente se falar em autonomia da vontade, é imprescindível que ambas as partes estejam “em pé de igualdade”, ou seja, que não haja assimetria entre os mesmos. Quando há qualquer limitação à liberdade de um particular, certamente restará comprometida a sua autonomia.

Nesta baila, trazendo o foco da discussão para o objeto deste artigo, é cristalino que esta tese é a mais adequada para a proteção dos direitos fundamentais do empregado. é inegável que, nas relações empregatícias, a autonomia de vontade é usufruída, na esmagadora maioria das vezes, pelo empregador, cabendo ao empregado, apenas, aceitar as imposições de seu patrão, ou ficar sem emprego.

Desta forma, como o desemprego é uma realidade que assombra boa parte da sociedade brasileira, o empregado, muitas vezes, prefere “abrir mão” da autonomia de sua vontade, submetendo-se às imposições do empregador, com o escopo de continuar trabalhando, no lugar de ter que engrossar as fileiras dos desempregados. Com isso, nas palavras de Daniel Sarmento: “[...] afirmar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos individuais nestas relações não atenta contra a au-tonomia privada, mas visa, ao inverso, promovê-la no seu sentido mais pleno, que é aquele que recebeu a benção do constituinte.”5Conclui-se, portanto, que a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas chega a ser uma necessidade na ordem jurídica brasileira, face à dívida social que diversos segmentos da sociedade são credores. Compartilham deste entendimento, diversos reno-mados autores, tais como Gustavo Tepedino, Ingo Sarlet e Carlos Roberto Siqueira Castro6.

Ocorre que, infelizmente, o legislador ordinário pouco se interessou em enfrentar o tema. Com isso, a decisão passou a ficar unicamente a cargo dos magistrados, o que gera certa insegurança jurídica, visto que não há como exigir que todos os magistrados tenham um entendimento homogêneo para diversos casos concretos. Então, imperiosa é a necessidade de se estabelecer alguns parâmetros para que, quando houver a colisão entre tais princípios, a solução encontrada seja a mais adequada e justa.

O principal parâmetro a ser considerado é a desigualdade entre as partes. Assim, quanto mais desiguais forem as partes da relação jurídica, maior deve ser a tutela das garantias individuais e menor deve ser a invocação da autonomia da vontade. Conforme já salientado neste trabalho, o campo das relações privadas também é propício para sujeição e opressão.
Sem embargo, não há que se falar em autonomia de vontade quando uma das partes está despossuída de total liberdade para expressar o que deseja.

E esse é o panorama do Direito do Trabalho, onde o empregado é a parte hipossuficiente da relação. Nesse caso, pelos motivos já expostos, a autonomia de vontade deve ter uma força inferior. Nas lições de Daniel Sarmento:

[...] em certos domínios normativos, como o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor, que têm como premissa a desigualdade fática entre as partes, a vinculação aos direitos fundamentais deve mostrar-se especialmente enérgica, enquanto a argumentação ligada à autonomia da vontade dos contratantes assume peso inferior7.

Desta forma, com base em tudo que foi exposto, percebe-se que a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas deve ser acolhida nas relações empregatícias, visto que deve ser dada máxima proteção ao hipossufuciente, ao lado mais fraco da relação, uma vez que este não tem como exprimir com total liberdade a sua vontade.
Neste âmbito, é o entendimento de Alice monteiro de Barros: “[..]. Nota-se a tendência do Direito do Trabalho brasileiro

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a proteger os direitos da personalidade do trabalhador, que corresponde, sem dúvida, à eficácia horizontal dos direitos fundamentais”8.

Frise-se que o Direito do Trabalho foi concebido para ser um rol de direitos mínimos e irrenunciáveis que devem ser assegurados a todos os empregados, mitigando a autonomia da vontade das partes e dando uma proteção ao trabalhador que antes se via completamente abandonado pelo ordenamento jurídico. Neste diapasão, nas palavras de Jorge Luiz Souto maior, o direito do trabalho:

[...] tem como característica fundamental a luta contra as injustiças provocadas pela indústria em massa. Ao contrário do direito em geral, o direito do trabalho não se preocupa como o modus vivendi do corpo social, mas com a amenização da exploração do trabalho humano, que se realiza em nítido desvirtuamento da justiça9.

Assim, as normas trabalhistas têm sua razão de ser na proteção ao empregado e na consagração da justiça social, tendo em vista a desigual relação entre capital versus trabalho, onde o empregado é notoriamente o hipossuficiente. mais uma vez, na precisa lição de Jorge Luiz Souto maior, com o fito de corroborar este entendimento:

Uma conceituação que considere...

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