A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o Constitucionalismo em face do Lado Oculto da Modernidade

AutorEvandro Charles Piza Duarte - Marcos Vinícius Lustosa Queiroz
CargoProfessor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília
Páginas10-42
Direito, Estado e Sociedade n.49 p. 10 a 42 jul/dez 2016
A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro:
o Constitucionalismo em face do Lado
Oculto da Modernidade
The Haitian Revolution and the Black Atlantic:
Constitutionalism in face of the Dark Side of Modernity
Evandro Charles Piza Duarte*
Universidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil
Marcos Vinícius Lustosa Queiroz**
Universidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil
1. Introdução
No contexto das Revoluções Haitiana (1791-1804) e Francesa (1789-
1799), um grande debate foi instaurado em Paris sobre os direitos polí-
ticos da população negra nas colônias. Visando articular pessoas, realizar
o lobby parlamentar e pensar em estratégias para ajudar, sobretudo, na
conquista da cidadania pelos homens livres de cor1, foi criada, no ano de
* Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da Universi-
dade de Brasília. Coordenador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEDD-UnB) e do
Maré: Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro. Autor de Criminologia e Racismo (Juruá).
E-mail: evandropiza@gmail.com.
** Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília. Integrante do Centro de Estudos em Desigualdade e
Discriminação (CEDD-UnB) e do Maré: Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro. E-mail:
marcosvlq@gmail.com.
1 No momento em que antecede a Revolução Haitiana, a sociedade de São Domingos era dividida essencial-
mente em três grandes grupos sociais: os brancos, os negros escravos (crioulos, nascidos na colônia, e africa-
nos, chamados pejorativamente de bossales) e livres de cor (mulatos livres e negros livres). No entanto, cabe
ressaltar que a realidade e mediação dessas lugares sociais era muito mais complexa do que a primeira vista
pode parecer, questão que, infelizmente, não é possível desenvolver neste artigo (DUBOIS, 2004, e FICK,
1990). De fato, o colonialismo produziu no seu processo de formação e, portanto, de aprendizagem para a
produção da subalternidade uma gestão dos direitos tanto a partir da origem “nacional” (lembrando que o
estado-nação se constituiu nesse processo), quanto das características físicas. Ele constituiu hierarquias e as
distribuiu numa lógica de produção da hegemonia branca. Em muitos casos, a hegemonia era conquistada
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1788, por Jacques-Pierre Brissot, a Societé des Amis des Noirs2, que acabou
se tornando um dos principais pontos de mediação institucional na França
das lutas negras no Caribe3.
Após a criação dessa sociedade, políticos ligados à manutenção da es-
cravidão, prontamente, nomearam a si mesmos como L’Ami des Hommes.4
Objetivava-se, assim, mostrar que Os Amigos dos Negros não necessaria-
mente eram Amigos dos Homens, trabalhando a oposição lexical entre Ho-
mem contra Nativo (ou Homem contra Negro), comum a toda a literatura
europeia que atravessou o colonialismo desde 14925.
Este fato é um grão da história, fascinante e persistente6 por transcen-
der à sua própria especif‌icidade, pois pertence a uma cadeia hermenêutica
constituidora da modernidade, em que noções como as de humanidade,
raça, nacionalidade, cidadania, liberdade e igualdade estavam sendo ges-
tadas em um período de incertezas e instabilidades políticas. É também
ilustrativo de como as negociações e disputas em torno de determinadas
identidades e conceitos políticos, no f‌inal do século XVIII, eram feitas em
uma rede de f‌luxos atlânticos proporcionados pelo colonialismo. Um grão
da história que, apesar de todo seu simbolismo e universalidade, se perdeu
ou foi ignorado pela historiograf‌ia e f‌ilosof‌ia política justamente por estar
atrelado a um silenciamento ainda mais profundo, que é aquele exercido
sobre o que foi e o que simbolizou a Revolução Haitiana7.
mediante a produção de grupos intermediários capazes de consolidar o domínio sobre populações locais
ou escravizadas.
2 Sociedade dos Amigos dos Negros.
3 GEGGUS, 2002.
4 Os Amigos dos Homens.
5 TROUILLOT, 2015.
6 A dualidade persiste temporalmente e atravessa localidades, ainda que adquirindo novos tons. A reto-
mada de uma pretensa universalidade “humana” em contraposição a reivindicação dos grupos negros é
uma constante na história da luta por igualdade e liberdade. Um exemplo recente ilustra a questão. Diante
da escalada da violência policial, das práticas discriminatórias do sistema de justiça e da política de en-
carceramento da juventude negra nos Estados Unidos, militantes negros articularam o movimento “Black
Lives Matter”, ou seja, as vidas negras importam. Prontamente se organizou uma reação às reivindicações
da comunidade negra estadunidense em torno do mote “All Lives Matter”, todas as vidas importam, no
sentido de relativizar as demandas dos negros e, em certo sentido, blindar qualquer tipo de crítica à ordem
estabelecida (GARZA e SOLOMON).
7 A questão aqui levantada, sobre a oposição entre os direitos dos homens e os direitos dos negros, esteve
presente na própria estrutura hermenêutica da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como
argumentou Duarte ao comparar o texto com os argumentos de Diderot sobre a descrição da forma humana
(DUARTE, 2011, pp. 179 e 180). O resgate desse “grão da história” demonstra que esse debate não era
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Essa história serve para ilustrar as breves intenções desse artigo, o qual
objetiva ser mais um começo do que um f‌im, a espacialização de um pos-
sível campo hermenêutico e metodológico, entre outros possíveis, para
se compreender os fenômenos da modernidade8, do colonialismo9 e do
constitucionalismo10. Neste sentido, procurar-se-á, primeiramente, def‌inir
apenas uma atitude irref‌letida dos franceses iluministas e revolucionários, mas uma posição que resistia ao
reconhecimento dos negros como humanos, malgrado a existência de argumentos políticos e morais a favor
desse reconhecimento. De fato, em 13 de maio de 1791, Robespierre encaminha à Assembleia Constituinte
Francesa a proposta de reconhecimento dos direitos políticos dos homens de cor livres, proferindo a famo-
sa frase “(...) se devêsseis perder vossas colônias ou perder vossa felicidade, vossa glória, vossa liberdade,
eu repetiria: que pereçam vossas colônias” (ROBESPIERRE, 2008, p. 69). Somente este outro “grão da
história” seria suf‌iciente para repensar o lugar de todo o debate travado a propósito do reconhecimento
da humanidade aos negros. Isso porque o radicalismo, tanto da sociedade quanto do maior representante
dos jacobinos, foi circunscrito a dar direitos políticos aos livres, ou seja, a imensa maioria dos homens e
mulheres negros escravizados sequer tinha sido, até então, considerado como potencialmente humana.
Como se mostra adiante, foi somente em razão da luta dos jacobinos negros que a radicalidade da ideia de
que há uma universalidade humana para além das distinções (de cor) pôde ser concretizada (JAMES, 2007).
8 Pela importância do conceito para o presente artigo, em linhas gerais, as narrativas hegemônicas enten-
dem a modernidade como o tempo histórico oriundo da “descoberta do Novo Mundo”, do Renascimento
e da Reforma Protestante, no qual o mundo da vida passa a ser extremamente “racionalizado” (a razão
como supremo tribunal de tudo aquilo que reivindica validade) e as tradições perdem sua espontaneidade
natural. A partir da universalização das normas, da generalização de valores e da socialização que força
a individualização, estrutura-se uma nova forma de discurso f‌ilosóf‌ico e consciência política, no qual o
presente, na sua vinculação ao passado e abertura para o futuro, deve apresentar os seus próprios critérios
de orientação, extrair de si mesmo sua normatividade e af‌irmar-se a si mesmo. Essas transformações, de
pretensões universais, implicaram em mudanças profundas no que se concebe como tradição, passado,
futuro, subjetividade, indivíduo, temporalidade, etc (HABERMAS, 2000). Conforme f‌icará expresso ao
longo do texto, essa narrativa deve ser vista com extrema desconf‌iança ou, ao menos, deslocada em seus
pressupostos, especialmente como demonstraram Dussel (DUSSEL, 2016) e Todorov (TODOROV, 2010).
9 Como conceito abrangente, o colonialismo pode ser entendido como o processo histórico iniciado no
f‌inal do século XV com a expansão da “Europa” sobre os demais continentes e povos, processo este que
deitou raízes presentes até os dias de hoje. Tal experiência, de confronto e dominação de alteridades radi-
cais, articulou-se por meio da “invenção”, “descobrimento”, “conquista” e “colonização” do “outro”, em um
fenômeno que operou estratégias de poder não só no âmbito militar, mas também na construção discursiva
e f‌ilosóf‌ica sobre aquilo que era tido como diferente (DUSSEL, 1993).
10 Segundo as narrativas comuns, o constitucionalismo é a experiência histórica derivada dos movimen-
tos revolucionários dos f‌ins do século XVIII. Articulando uma semântica específ‌ica, por meio das ideias
de soberania popular, legalidade e direitos fundamentais, o constitucionalismo emerge como resposta a
pressão estrutural por diferenciação entre política e direito no âmbito da emergente sociedade multicêntrica
da modernidade. Neste sentido, a constituição opera como instância política de processos de construção e
reconstrução do Estado, em que o povo (a democracia) surge como elemento chave de um sistema de di-
reito que deve se autofundamentar nas estruturas constitucionais (NEVES, 2009). É de se observar, porém,
que a historiograf‌ia “da forma constitucional” nos leva a pensar o problema constitucional, especialmente
na tradição inglesa, no período anterior ao nascimento da modernidade (PAIXÃO, 2011). Isso não signif‌ica,
porém, que essa historiograf‌ia tenha considerado as tensões sociais produzidas pela modernidade como
constitutiva do constitucionalismo também neste período. Ao contrário, Linebaugh e Rediker demonstram
que essas tensões já estavam colocadas muito antes, a exemplo da discussão da lei de terras, da escravidão
e da questão colonial (LINEBAUGH e REDIKER, 2008).
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