A riqueza do direito comparado

AutorLeonardo Brandelli
Páginas89-103

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Para homenagear Véra Fradera, grande comparatista brasileira, gostaria de exprimir, em algumas páginas, a felicidade que me trouxe o exercício do direito comparado durante quase quarenta anos.

A descoberta, pois nos anos 1960 houve uma verdadeira descoberta dos sistemas de direito estrangeiro, foi uma revelação, um deslumbramento. Senti que o direito tinha uma outra dimensão além daquela que meus estudos universitários me fizeram perceber, compreendi que a regra de direito só podia ser realmente entendida, no sentido mais forte do termo, comparando-a com soluções estrangeiras. Mas, para compreender o direito estrangeiro, cuja regra podia ser legislativa, jurisprudencial, divina, ritual… eu pressentia que era preciso – tarefa bem difícil – ir além do direito, interessar-se pela história (isso eu sabia devido ao meu currículo universitário, que na época, comportava obrigatoriamente dois anos de direito romano e dois anos de história do direito), mas também sociologia, estudo das mentalidades, das civilizações, das religiões, filosofia, todas elas ciências fascinantes que eram, na época e ainda hoje, pouco estudadas nos cursos de direito.

O direito comparado era um parente pobre; parece que a qualidade e o prestígio do Código Civil Francês, reconhecidos na nossa história no século XIX, eram o principal motivo. O Código Civil Francês de 1804 não tinha, por assim dizer, recebido influência estrangeira. Toda sua inspiração era francesa e romanista. Sob a égide de Portalis, seus redatores lograram uma tarefa bem difícil: ao mesmo tempo seguir a tradição do antigo direito e insuflar-lhe as ideias novas trazidas pela revolução. O direito romano, o antigo direito e as ideias dos filósofos das Luzes inspiraram os redatores do Código Civil. Mas não se acha, nele, influência de

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direitos de outros países. E, durante todo o século XIX, os grandes autores ativeram-se essencialmente a fazer a exegese do Código Civil, a glorificá-lo, pois, no início do século XIX, o Código francês enunciava um direito que consagrava valores que pretendiam ser universais: de igualdade, de liberdade. Era uma obra de razão, ao mesmo tempo coerente e nova. Todas essas qualidades suscitaram a admiração dos juristas de outros países; ele serviu de modelo a numerosas codificações estrangeiras. O direito civil francês era, de certa forma, um direito “puro”, os redatores do Código não haviam sido inspirados por direitos estrangeiros.

O prestígio do direito francês, a consciência dos juristas franceses a cerca da qualidade e da modernidade, à época, do seu direito – baseado numa concepção puramente francesa do direito civil – que não havia se inspirado em outros sistemas de direito, certamente explica e justifica o nítido desinteresse, que perdurou na França por demasiado tempo, pelo direito comparado.

Compreende-se então que, no século XIX, os juristas (salvo algumas exceções como Saleilles e Lambert) não tenham se interessado por outros direitos além do direito francês.

Foi o surgimento do BGB, que entrou em vigor em 1900, que começou a mudar as coisas. Saleilles e Lambert, ao organizar nesse ano, em Paris, um congresso de direito comparado, tinham por objetivo essencial comparar o direito alemão ao direito francês. A common law, nessa época, parecia demasiado diferente do pensamento romanista para poder ser objeto de comparação.

Portanto, foi apenas tardiamente, pode-se dizer de maneira geral após a segunda guerra mundial, que o direito comparado começou a ser reconhecido. René David foi um pioneiro ao publicar, em 1950, seu Tratado de Direito Comparado, seguido pouco depois por seu Tratado de Direito Inglês.

Os estudantes dos anos 1950, salvo exceção, não tinham aulas de direito comparado, e a descoberta dessa matéria era, no mais das vezes, fruto de uma viagem de estudo a um país estrangeiro ou de aulas assistidas em institutos ou universidades estrangeiras nas quais eram ministrados cursos daquela matéria.

Quem tinha a sorte de deparar-se com essa disciplina ou de estudar um direito estrangeiro encontrava, pela primeira vez, institutos novos, racio-

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cínios diferentes, uma abordagem então desconhecida pelas disciplinas jurídicas.

Minha visão foi a de um comparatista francês. Sem dúvida, a de um jurista brasileiro teria sido diferente pois, na América do Sul, por causa da história, as codificações civis foram inspiradas nas codificações francesa, alemã ou espanhola. Por isso, para conhecer seu próprio direito, todos os juristas brasileiros recorrem à comparação, e o espanto é menor que o do comparatista francês formado apenas no seu direito. Mesmo assim, não se deve esquecer o espanto que pode suscitar, para um jurista brasileiro, a descoberta de direitos não ocidentais.

Também é mister constatar que o mundo evoluiu. O direito comparado, “pura” arte pela arte que conheci desde os meus vinte anos, me parece ter sofrido uma mutação utilitária. Não se pergunta mais por que é preciso estudar o direito comparado.

Hoje, a globalização, a existência da União Europeia e logo, do direito comunitário, a importância que assumiu a jurisprudência da Corte de Justiça europeia dos direitos humanos levam necessariamente todos os juristas a interessar-se por outros direitos além do seu. Muitos comparatistas são chamados a participar, no plano nacional, internacional ou supranacional, de comissões e grupos de trabalho que, reunidos espontaneamente ou sob a égide de uma instituição nacional ou internacional, podem ter por missão redigir textos que, se um dia forem ratificados, poderão aplicar-se nos Estados.

Já houve realizações sedutoras, mas elas não parecem, pelo menos não hoje, dar todos os resultados esperados. Grande parte desses trabalhos aguardam, e talvez aguardarão ainda muito tempo, para servir ao objetivo que os suscitou. Somente uma decisão política, se um dia for delineada uma Europa federal, poderia dar pleno sentido aos textos já elaborados com vistas a uma eventual harmonização do direito dos Estados da União Europeia.

Ademais, pude constatar que, de cinquenta anos para cá, a circulação dos modelos jurídicos assumiu um lugar importante na evolução dos sistemas. Entre os temas que citarei a título de exemplo, alguns hoje não pareceriam mais tão originais. Alguns institutos estrangeiros são ou devem ser abordados, nos currículos universitários, para explicar regras novas do direito francês. Por exemplo, foi introduzido no direito francês um novo contrato, a fidúcia, uma imitação assaz longínqua do trust; a reser-

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va de propriedade é reconhecida no nosso direito; o direito empresarial aprendeu muito com o mundo dos negócios anglo-americano. O contexto mudou um pouco, e é talvez o advento no campo dos comparatistas dos direitos asiáticos: japonês, chinês, hindu, que pode, hoje, suscitar novos espantos. Mas a adoção, por esses países, de institutos ou regras ocidentais atenua muitas vezes o efeito de novidade.

Mas sempre restará o puro prazer, o direito comparado apenas pelo espanto intelectual, pelo simples conhecimento e reflexão sobre o direito, destacado de qualquer objetivo utilitário, por mais importante que seja.

Entre todos os objetivos do direito comparado que me ensinaram e que eu mesmo ensinei durante longos anos, o que sempre mais me seduziu continua a ser a melhor compreensão do seu próprio direito. Prazer pessoal, egoísta talvez, mas que leva a um grande enriquecimento do espírito e que pode ser obtido por todos os juristas que o desejarem.

Portanto, gostaria de compartilhar, brevemente, algumas de minhas próprias experiências, para tentar explicar o prazer que todo jurista pode obter com a comparação dos direitos.

Minha descoberta começou pelos cursos no “Instituto de Direito Comparado de Paris”.

Mais que um curso de introdução ao direito comparado, que me revelou todas as riquezas possíveis e os objetivos que podia ter o direito comparado, foi lá que tive meus primeiros cursos de common law, de direito alemão, de direito...

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