O risco e o seu papel na legitimação da responsabilidade objetiva

AutorFelipe Teixeira Neto
Páginas3-51
CAPÍTULO 1
O RISCO E O SEU PAPEL NA LEGITIMAÇÃO DA
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Não há dúvidas que, num panorama de evolução dogmática, o risco aparece como
o primeiro grande fundamento de peso invocado para legitimar a responsabilidade
sem culpa, ao menos numa visão pós-sistematizada do instituto (para bem marcar
a sua diversidade das reminiscências dos Direitos primitivos). Foi por meio da sua
invocação que se passou a justif‌icar a possibilidade de, em determinados casos mais
ou menos ampliados, impor-se um dever de indenizar na ausência de comprovação
da culpa ou mesmo da ilicitude5.
Daí que a aparente linearidade da sua invocação – não obstante, por vezes, funda-
mentando-se em tendências diversas, não raro até mesmo contraditórias6 – autoriza a
que por ele se comece a busca por um fundamento unitário que, na atualidade, atribua
legitimidade à responsabilidade objetiva enquanto categoria jurídica, analisando a
suf‌iciência das diversas teorias então desenvolvidas.
1. AS TEORIAS FUNDADAS NO RISCO E O SEU DESENVOLVIMENTO
Como se pôde verif‌icar a partir de um panorama histórico-jurídico de evolu-
ção, a migração de legitimidade da obrigação indenizatória deu-se na tentativa de
resolver problemas que surgiram com maior fôlego a partir de expressivas mudanças
promovidas pelo processo de industrialização. E tal foi operacionalizado não apenas
por meio da reinterpretação de dispositivos já vigentes7, mas também de alterações
legislativas pontuais tendentes a regrar grupos de situações bem delimitados.
Tudo isso permitiu o surgimento, por assim dizer, de verdadeiras “ilhas” de
imputação objetiva, o que muito contribuiu à carência de uma genuína preocupação
5. Há consenso no sentido de que a responsabilidade objetiva se dá com dispensa da culpa. A mesma certeza
não ocorre no que toca ao pressuposto da ilicitude, havendo não apenas divergências de regimes no seu
indiscutível universo fragmentário, mas mesmo de concepções a respeito em um plano geral de verif‌icação
de pressupostos. Daí que, em razão deste cenário delicado no campo dogmático, a verif‌icação acerca da
(ir)relevância da ilicitude merecerá abordagem específ‌ica em momento oportuno, limitando-se, por ora,
apenas ao registro da problemática.
6. MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, León. Elementos de la responsabilidad civil. Prejuicio, culpa y relación de
causalidad. Trad. colombiana. Bogotá: Leyer, 2005, p. 91.
7. A este respeito, TRIMARCHI, Pietro. Rischio e Responsabilità Oggettiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 17, ob-
serva a importância criadora da jurisprudência na valoração de regras de imputação já existentes, mas até
então embasadas num sistema geral de responsabilidade subjetiva, permitindo, com isso, a estruturação
de novas interpretações a partir de preceitos que tinham signif‌icado original diverso ou mesmo com uma
maior restrição aos critérios de avaliação da culpa.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 3EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 3 02/12/2021 09:13:5002/12/2021 09:13:50
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
4
de conjunto, não apenas no que toca à falta de elaboração de princípios gerais, mas
também de linhas de concretização ou mesmo de harmonização de soluções8, criando
um cenário absolutamente craquelê, mesmo sob os auspícios de um fundamento
aparentemente unitário, no caso, o risco.
Daí que, por vezes, não será raro deparar-se com certo grau de artif‌icialidade em
algumas soluções9 – como já ocorria quando da tentativa de se utilizar a culpa para
tudo justif‌icar10 –, o que pode ser compreendido a partir da origem e do esforço de
ruptura que a alusão ao risco representou em um cenário que há pouco se estabilizara
justamente com a consagração da culpa promovida pela codif‌icação oitocentista.
1.1 A gênese dogmática do risco enquanto fundamento da responsabilidade
objetiva
A forma de desenvolvimento peculiar pela qual passou a imputação objetiva
de danos teve como inegável ponto de partida a responsabilidade de matriz delitu-
al, desenvolvendo-se, assim, como um ref‌lexo seu no que diz respeito à gestão dos
pressupostos11. E esta circunstância, se bem identif‌icada, auxilia na compreensão
de uma série de aparentes inconsistências, inclusive no que tange à unidade do seu
fundamento. Por isso é que este ponto de partida, em especial à vista das reminis-
cências que persistem em permear a estruturação do instituto, não raro levará a
construções pouco palatáveis, pois estruturadas justamente a partir de realidades
que, em essência, são diversas.
A culpa na sua acepção oitocentista era claramente identif‌icada como uma
barreira ao surgimento da obrigação de indenizar, barreira esta que, por questões de
justiça distributiva, precisou ser transposta em situações específ‌icas12. Ocorre que
nem sempre tão somente extirpá-la do rol de pressupostos a serem verif‌icados para
f‌ins de surgimento da obrigação de indenizar apresentou-se como a solução mais
adequada e correta do ponto de vista dogmático, revelando-se simplista em diversas
situações13.
8. CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 593.
9. TRIMARCHI, Pietro. Rischio..., cit., p. 12.
10. CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 594.
11. CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III, p. 594
12. Há alguma controvérsia entre os defensores e os críticos das teorias do risco acerca de uma genuína funda-
mentação em preceitos de justiça distributiva para f‌ins de justif‌icação da responsabilidade sem culpa. Isso
porque uma das críticas que lhe foi direcionada por aqueles que persistiam em defender a suf‌iciência da
culpa como fundamento da imputação de danos era justamente o seu suposto materialismo, porquanto,
consoante os seus detratores, a teoria do risco reduziria a problemática a ser enfrentada ao choque entre
dois patrimônios, esquecendo-se de que existem pessoas na base destas relações. Neste sentido, MAZEAUD,
Henri; MAZEAUD, León. Elementos..., cit., p. 88-89. A crítica, contudo, como adiante se verá, apresenta-se
indevida, pois não há dúvidas de que a preocupação em se buscar fundamento de justif‌icação para além da
culpa era exatamente ampliar as possibilidades de reparação, dando maior relevância à f‌igura da vítima e
reduzindo a incidência fortuita do prejuízo.
13. Tais constatações são importantes para bem se compreender algumas dif‌iculdades que se apresentarão,
sendo oportuno, pois, reconhecer que o ponto de partida para esta nova sistematização foi, como dito, não
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 4EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 4 02/12/2021 09:13:5002/12/2021 09:13:50
5
CAPÍTULO 1 • O RISCO E O SEU PAPEL NA LEGITIMAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Tanto que a perspectiva clássica segundo a qual o juízo de imputação decorre
da premissa de que o sujeito, por ser livre, responder pelos seus atos, permanece na
base das primeiras acepções desenvolvidas a partir da noção de risco, promovendo-se
apenas uma substituição da ideia de resposta ao ato culposo pela de responsabilidade
pelo agir arriscado.
Seguindo uma linha de sistematização dentre as diversas possíveis14, os primeiros
desenvolvimentos da teoria do risco podem ser divididos em dois grandes grupos
que merecem atenção para f‌ins de se compreender a sua estruturação dogmática:
um primeiro, de matriz negativa, que se limita a reconhecer a irrelevância da culpa
(extirpando-a do universo da responsabilidade civil) e, com isso, estabelecer que
qualquer fato – culpável ou não – que cause prejuízo obriga o seu autor a reparar o
lesado; um segundo, de matriz positiva, que af‌irma a insuf‌iciência da culpa enquanto
fundamento e, por isso, empreende esforços na estruturação de um elemento outro
que possa fazer as suas vezes na demarcação do prejuízo reparável a partir das diversas
linhas de fundamentação baseadas no risco15.
1.1.1 As teorias negativas
As teorias ditas negativas vêm embasadas em uma preponderância da causali-
dade como fonte do dever de reparar danos. Nestes termos, independentemente da
existência ou não da culpa, a obrigação exsurgiria do fato de uma determinada ação
ou omissão gerar um prejuízo não consentido a terceiro, não pressupondo, por isso,
qualquer juízo de desvalor acerca da sua fonte causadora16.
Note-se que a pretensão é ampla, pois não vinha restrita a situações específ‌i-
cas; diante dos questionamentos postos quanto à validade da teoria subjetiva então
largamente aceita como fundamento unitário do dever de reparar danos, isso em
decorrência das novas necessidades agravadas pelo processo de industrialização,
propunha-se a supressão da valoração da culpa de modo generalizado, a permitir a
assunção, pelo princípio da causalidade, do posto de critério adequado para explicar
só a ideia, mas especialmente a estrutura de responsabilidade fundada na concepção tradicional de resposta
(sanção) ao ato ilícito culposo. Neste sentido, COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo e responsabilità
civile. Napoli: Edizione Scientif‌iche Italiane, 2014, ristampa, p. 32.
14. Esta é a proposta por MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, León. Elementos..., cit., p. 88, que, pela sua relevância
na demarcação de um ponto de identidade entre os que se preocuparam em apresentar as suas construções
na busca da estruturação da responsabilidade civil para além da culpa, parece adequada ao presente estudo.
15. Antes de se partir ao exame propriamente dito de cada um dos grupos mencionados, cumpre registrar que
diversos foram os autores, nos mais variados sistemas jurídicos, que dedicaram a sua atenção ao tema, de
modo que uma abordagem exaustiva apresenta-se quase inviável. Até mesmo porque, em verdade, mostra-se
mais producente à investigação apresentar um quadro das estruturas desenvolvidas para, a partir disso,
delinear os ref‌lexos que tiveram nas alterações jurisprudenciais e legislativas promovidas e, bem assim, na
construção de um modelo atual de legitimidade da imputação de danos baseada no risco, ao invés de uma
mera recolha histórica que eventualmente se pretendesse exaustiva.
16. MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, León. Elementos..., cit., p. 88
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 5EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 5 02/12/2021 09:13:5102/12/2021 09:13:51

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT