Os riscos labor-ambientais nos frigoríficos e a reparação dos danos ocasionados aos trabalhadores

AutorPaulo Roberto Lemgruber Ebert
Páginas223-236

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Paulo Roberto Lemgruber Ebert1

Introdução

De todos os setores da economia brasileira, poucos experimentaram crescimento tão significativo na última década quanto os frigoríficos. De fato, as fusões ocorridas entre os líderes nacionais de tal mercado e a aquisição de unidades de negócios no exterior culminaram com a criação de gigantes corporativas de abrangência global cujos lucros líquidos anuais são contados na casa dos bilhões de reais.

A título exemplificativo, os relatórios de mercado publicados em 2015 pelas duas maiores empresas brasileiras do setor (JBS e BRF) indicam a obtenção, naquele ano, de lucros líquidos na ordem de R$ 4,6 bilhões e de R$ 3,1 bilhões, respectivamente.2

Tais resultados, no entanto, vêm sendo obtidos com a exposição dos quinhentos mil trabalhadores empregados no setor a condições penosas de trabalho, materializadas em inúmeros riscos de ordem física, quí-mica, biológica e ergonômica que, naquele mesmo ano de 2015, foram responsáveis por situar os frigoríficos entre as dez atividades com maiores registros de acidentes de trabalho, segundo dados compilados no Anuário Estatístico do INSS.3

Com efeito, no período em referência, os frigoríficos dedicados ao abate de bovinos, suínos e aves e à fabricação de alimentos à base de proteína animal, ali indicados por seus respectivos códigos nacionais de atividade econômica (CNAE), registraram o espantoso número de 16.609 (dezesseis mil, seiscentos e nove) acidentes de trabalho, a colocar o setor na frente de atividades com incidência acidentária tradicionalmente reconhecida, tal como a construção civil e a indústria sucroalcooleira.

Diante de tal quadro a desaguar no adoecimento e no comprometimento da integridade psicofísica de um número cada vez maior de indivíduos, em prejuízo último aos serviços públicos de saúde e de previdência e à própria sociedade, faz-se mister compreender de modo mais detalhado a origem dos riscos labor-ambientais a que estão submetidos os trabalhadores do setor frigorífico, a nature-za dos danos individuais e coletivos por eles experimentados e o regime reparatório aplicável às empresas.

Breve descrição dos riscos labor-ambientais existentes nos frigoríficos a configuração de poluição labor-ambiental

A análise das estatísticas acidentárias do setor frigorífico compiladas no anuário do INSS, a abarcarem,

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em grande parte, doenças ocupacionais dotadas de nexo de causalidade presumido com as condições de trabalho existentes nas respectivas unidades produtivas, conduz à conclusão de que as lesões experimentadas pelos trabalhadores em sua integridade psicofísica é resultado da organização inadequada do meio ambiente laboral por parte das empresas.

E tal organização deficiente do meio ambiente de trabalho nos frigoríficos se perfaz em concreto por intermédio da subsistência, em suas unidades produtivas, de uma série de riscos de ordem física, química, biológica e ergonômica que, muito embora sejam objeto de normatização específica e sejam por elas próprias conhecidos e assumidos como inerentes às suas atividades, vêm sendo sucessivamente negligenciados.

Tem-se, nesses casos, típica situação a denotar a poluição labor-ambiental, caracterizada, a teor do art. 3º, III, da Lei n. 6.938, de 31.8.1981 como “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente (...) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas” ou que “afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente”.4

Ao tolerar e negligenciar aqueles riscos labor-ambientais previstos e combatidos expressamente pelo ordenamento jurídico, as indústrias frigoríficas acabam por se enquadrar na figura jurídica do poluidor, descrita no art. 3º, IV, da Lei n. 6.938/81 como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.”

Diante do enquadramento dos frigoríficos no conceito legal de poluidor, bem como da existência de inequívoco desequilíbrio labor-ambiental a afetar a organização produtiva de suas unidades, cumpre analisar mais detidamente os riscos a que estão submetidos os trabalhadores do setor ora analisado e em que medida tais ameaças conferem concretude às preocupantes estatísticas acidentárias compiladas pelo INSS.

2.1. Riscos físicos Ruído e frio

Por estarem inseridos em ambientes fechados onde animais (bovinos, suínos e aves, em sua grande maioria) são abatidos e processados em temperaturas artificialmente reduzidas e mediante a utilização de maquinário de grande porte, os trabalhadores dos frigoríficos encontram-se submetidos, de modo ininterrupto, ao ruído e ao frio.

No que diz respeito especificamente ao ruído, a situação existente nas maiores plantas frigoríficas do País denota a presença contínua de tal fator físico em concentrações superiores aos limites previstos no Anexo 1 da NR-15 – a variarem entre 90 db(A) e 102 db(A) na maior parte de seus setores operacionais – sendo que tal vicissitude é reconhecida pelas próprias empresas nos laudos técnicos de condições ambientais de trabalho (LTCATs), cuja elaboração lhes é exigida pelo art. 58 da Lei n. 8.213, de 24.7.1991.

No intuito de mitigar tal intercorrência e de afastar a classificação dos setores em referência como insalubres para fins de percepção do respectivo adicional, as empresas frigoríficas vêm se limitando a oferecer protetores auriculares aos trabalhadores, sem buscar a redução dos níveis de ruído das máquinas, como se a utilização dos referidos equipamentos de proteção individual fosse capaz de elidir totalmente os riscos inerentes ao ruído em concentrações elevadas.5

Ocorre, todavia, que os impactos do ruído no organismo humano não são limitados àqueles decorrentes do volume dos sons emitidos pelas máquinas. Para além

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disso, os sons emanados destas últimas trazem consigo a produção de vibrações e pressões sonoras que, com o passar do tempo, ocasionam danos irreversíveis aos sistemas auditivo, nervoso, circulatório, gastrointestinal e reprodutor dos indivíduos, para além de concorrerem para a consolidação de lesões osteomusculares.

Nesse sentido, o engenheiro mecânico Luiz Felipe Silva, em estudo dedicado ao tema, atestou, com base em análises laboratoriais, que “a exposição combinada entre vibração segmentar e ruído pode apresentar um efeito sinérgico sobre a audição” e que “há uma forte evidência que sustenta a associação entre [os distúrbios osteomoleculares relacionados ao trabalho] e exposição a vibração localizada.”6

Para além disso, merece registro o fato de que a presença de ruído em altas concentrações impacta diretamente na própria segurança do trabalho desempenhado nas unidades frigoríficas, pois sua subsistência amplia consideravelmente os riscos de acidentes de trabalho em razão da quebra na comunicação indispensável para o desenvolvimento adequado de processo produtivo que depende da coordenação entre trabalhadores e destes com máquinas, facas, ganchos e outros instrumentos perfurocortantes.7

Vê-se, portanto, que a insalubridade inerente ao ruído transcende em muito a singela análise quantitativa a respeito do nível de decibéis existente em um certo ambiente de trabalho e a respeito do fornecimento ou não de protetores auriculares, pois os danos ocasionados pelo agente físico em comento – especialmente pela pressão sonora e pelas vibrações a ele inerentes –, não são minimizados ou elididos pelos referidos EPIs.

Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 664.335/SC em sede de repercussão geral, reconheceu que os riscos inerentes ao ruído não podem ser aferidos de maneira meramente quantitativa, de modo que o singelo fornecimento de equipamentos de proteção individual pelos empregadores não conduz, automaticamente, à eliminação efetiva daquela ameaça física no ambiente laboral.8

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Já no que concerne ao risco físico representado pelo frio, o desequilíbrio labor-ambiental constatado nos frigoríficos não se limita, nesse particular, àqueles setores das fábricas em que as temperaturas se situam em patamares muito inferiores ao ponto de fusão da água (zero graus celsius), tais como as câmaras frias, nas quais os trabalhadores recebem equipamentos individuais de proteção especificamente voltados para o enfrentamento de tais condições térmicas extremas e onde há medidas coletivas destinadas a reduzir o tempo de exposição às baixíssimas temperaturas.

Para além de tais locais, os riscos inerentes ao frio também se fazem presentes em diversos outros setores das unidades frigoríficas em que as temperaturas são artificialmente mantidas pelas empresas nos limiares que as desobrigam de conceder o direito à pausa de recuperação térmica prevista no art. 253 da CLT. Nestes espaços, as temperaturas situadas entre dez e quinze graus celsius causam perda da sensibilidade tátil e diminuem a destreza, acarretando dificuldades para a realização de movimentos finos com as mãos e dedos, conforme atestaram os pesquisadores finlandeses Tiina Mäkinen e Juhani Hassi no estudo intitulado Health problems in cold works.9

Os referidos autores atestaram, além disso, que a resistência dos produtos manuseados é maior quando estes se encontram sob baixas temperaturas, aumentando o esforço no trabalho e contribuindo para o aumento de acidentes e doenças, tais como a síndrome do túnel do carpo, a tenossinovite e a peritendinite, especialmente naqueles trabalhadores da...

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