Rivalidade entre Brasil e Argentina: construção de uma cooperação pacífico-nuclear

AutorCarla Maria da Silva Diaz/Paula Lou'Ane Matos Braga
CargoUniversidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
Páginas492-508

Carla Maria da Silva Diaz1

    Brazil-Argentina rivalry: construction of a pacific nuclear cooperation

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Histórico da rivalidade entre Brasil e Argentina

As áreas da Bacia Platina foram focos de tensão geopolítica durante muito tempo. Na época colonial, ela foi palco dos interesses geopolíticos antagônicos de portugueses e espanhóis. A questão mal resolvida da divisão das bacias hidrográficas amazônica e platina entre Portugal e Espanha, mesmo com o estabelecimento dos Tratados de Madri (1750) e Idelfonso (1777), levaram Brasil e Argentina a herdar essa secular disputa, que se acirrou com as respectivas independências e com o antagonismo entre o Império Brasileiro e a Confederação Argentina, cerne das guerras platinas do século XIX.

Vale ressaltar que, a partir das independências de ambos os Estados, estava em jogo a hegemonia sobre o continente sul-americano. Sobre isso, Spykman afirma que a Bacia do Prata é o epicentro de rivalidade brasileiro-argentina:

Mais importante entretanto para o futuro da América do Sul é a luta de poder entabulada na outra zona de conflito do continente meridional: a bacia do rio da Prata. Aqui os protagonistas são os dois Estados mais poderosos da América Latina e a recompensa seria a caudilhagem e o império do continente sul. De um lado está a Argentina, quase toda em zona temperada, com as mais ricas terras agrícolas do continente e uma população branca, energética, dinâmica e com sonhos imperiais; do outro lado está o Brasil, o maior estado da América Latina, com uma população superior em mais de três vezes à do vizinho sul, mas rica também em recursos minerais. Esta rivalidade tem para a constelação política do continente sul a mesma importância e sentido que a rivalidade França-Alemanha na Europa Ocidental ou a antiga rivalidade Áustria-Russa na Europa Oriental (SPYKMAN, 1944, p. 337).

A partir de meados da década de 60 do século XX, verifica-se que alguns fatores internos e externos enfraqueceram a Argentina. Na frente interna, o país apresentou três ordens de problemas: a concentração demográfica na "pampa húmeda", em decorrência do despovoamento do interior e

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das regiões fronteiriças e o desmantelamento de sua base industrial; a ruína financeira resultante da política monetarista recessiva da ditadura militar; e a regressão da economia argentina tangente a seu tradicional papel de exportadora de carnes e grãos, em conseqüência do excessivo privilégio do setor agropecuário. Na frente externa, a Argentina foi atingida por três derrotas sucessivas: para o Brasil, com o "fato consumado" da hidrelétrica de Itaipu; para o Chile, na disputa pela soberania sobre o estratégico canal de Beagle; e para a Inglaterra, com a aventura da ocupação das Ilhas Malvinas seguida do fiasco militar na Guerra das Malvinas (MELLO, 1997, p.212-213).

Nessa mesma época, o autoritarismo militar brasileiro se fortaleceu, com os sucessos obtidos tanto em nível interno quanto no âmbito internacional. Internamente, a aliança entre o capital estatal, o nacional associado e o multinacional, auxiliada por uma conjuntura mundial favorável, promoveu a modernização conservadora da infra-estrutura industrial do país com o "milagre econômico". Externamente, o regime autoritário viabilizou sua política de aliado preferencial dos Estados Unidos, assim como a diplomacia de relações bilaterais com os pequenos países platinos, que elevou o Brasil ao status de potência regional sul-americana.

Embora o Brasil contasse com o apoio de Washington nessa época, isso não bastou para construir seu status hegemônico de potência regional. Ações brasileiras, como o avanço sobre os países menores, a busca por caminhos para o Pacífico, a cooperação no desenvolvimento destes em setores requeridos por sua própria economia, o bloqueio à cooperação ou projetos da Argentina, o ganho na iniciativa de construção de grandes obras hidrelétricas, a prestação de ajuda técnica e financeira ao Paraguai, na construção da hidrelétrica de Itaipu, a abertura de seu litoral marítimo em Santos, Paranaguá e Rio Grande, para atrair a esses portos, por meio de caminhos, ferrovia e canais, o oriente boliviano, o Paraguai, o Uruguai e a Mesopotâmia Argentina, em aberto desafio ao sistema portuário do rio da Prata e concorrência com ele, conforme destacou o general argentino Juan Enrique Guglialmelli (GUGLIALMELLI, 1979), ajudaram o Brasil na disputa pela hegemonia da América do Sul.

Assim, em termos gerais, o clima de confronto dos anos 70, centrado na polêmica de Itaipu, cedeu lugar, na década de 90, a uma nova fase de cooperação entre os dois países em questão. No decorrer dessas três décadas, as relações entre Brasil e Argentina passaram por três etapas sucessivas:

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competência, distensão e integração. Em 1979, ao solucionar o conflito diplomático geopolítico na região do Prata e assegurar o espaço para a manutenção da tradicional perdularidade paraguaia, a solução da chamada "questão de Itaipu" propiciou a normalização das relações brasileiro-argentinas e reempreendeu a cooperação bilateral no início da década de 80.

Essa preponderante aproximação cooperativa, na década de 90, entre os então adversários, teve por base não só os motivos supra-enumerados, mas também a crise econômica dos anos 80 - denominada "década perdida" da América Latina - e a globalização da economia mundial, que condicionaram mudanças nas posturas diplomáticas dos dois países.

Não há dúvida, também, de que a redemocratização dos dois Estados - expressas nas eleições presidenciais de 1983, na Argentina, e pela volta dos civis ao poder no Brasil, em 1985 - foi mais um fator a impulsionar esse processo.

As teorias geopolíticas brasileiras

Deve ser lembrado que, nos anos 70, Argentina e Brasil começaram a adquirir a infra-estrutura necessária para produzir armas nucleares. O Brasil firmou "o convênio do século" com a Alemanha Ocidental, em 1975, pelo qual se comprometia a comprar oito reatores nucleares e material para enriquecimento de urânio e reprocessamento do plutônio. Já a Argentina começava, na mesma época, a construção de suas próprias instalações nucleares.

Dessa forma, houve uma disputa tecnológica nuclear entre os dois países durante seus regimes militares, a fim de liderar como potência regional na América do Sul. Não foi só uma disputa tecnológica que ocorreu, pois suspeitas brasileiras apontavam para o fato de que a Argentina poderia construir uma bomba atômica. Dessa maneira, o receio do governo brasileiro em relação a seu vizinho como detentor de armas nucleares levou a um debate público sobre as intenções nucleares da Argentina. Essa mera possibilidade ajudou a criar o clima de insegurança para justificar um programa nuclear brasileiro próprio.

Os dois países eram cautelosamente assistidos pela comunidade internacional, que desconfiava que seus programas nucleares não eram direcionados para fins pacíficos, devido ao atraso na ratificação dos tratados de

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não-proliferação nuclear e impossibilidade de inspeção das instalações nucleares pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Contudo, no período de redemocratização desses países, ambos se colocaram à disposição para verificação das instalações nucleares e somaram esforços diplomáticos para criar uma agência de cooperação nuclear para fins pacíficos.

Do ponto de vista militar brasileiro, a iniciativa era importante para o país, visto que o programa nuclear argentino se apresentava mais avançado do que o brasileiro. O medo de provocar uma corrida armamentista nuclear na América Latina é a principal razão para evitar uma força nuclear regional. Além do mais, a Argentina, provavelmente, venceria essa corrida, pois desestabilizaria a economia brasileira com sua significativa liderança no desenvolvimento e uso de tecnologia nuclear. O receio de provocar esses resultados e a falta de estímulo preponderante para o Brasil avançar nesse terreno são importantes motivos para deter seu programa nuclear. Sendo assim, a aliança entre os dois países permitiria uma troca de tecnologia nuclear e afastaria as suspeitas da comunidade internacional de que esses Estados sul-americanos desenvolveriam um programa nuclear belicoso.

A aproximação...

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