Saneamento básico e participação da iniciativa privada: mão ou contramão? uma análise do novo marco do saneamento básico no Brasil à luz de casos internacionais em que houve desestatização e, posterior, reestatização do serviço público
Autor | Luiza Brumati |
Páginas | 131-187 |
SANEAMENTO BÁSICO E PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA
PRIVADA: MÃO OU CONTRAMÃO? UMA ANÁLISE DO
NOVO MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL
À LUZ DE CASOS INTERNACIONAIS EM QUE HOUVE
DESESTATIZAÇÃO E, POSTERIOR, REESTATIZAÇÃO DO
SERVIÇO PÚBLICO
luizA BruMAti
Resumo
O Novo Marco do Saneamento Básico, representado pelas alterações in-
troduzidas pela Lei nº 14.026, de 2020, abriu espaço para maior participa-
ção da iniciativa privada no setor. Chamou atenção a crítica ao Marco que
diz que o Brasil está indo na direção contrária a vários países do mundo
com a abertura. A partir disso, o presente trabalho se propôs a fornecer
elementos para essa discussão. Para isso, analisou-se qualitativamente
como iniciou e se deu a relação com a empresa privada e posterior re-
e em La Paz e El Alto, Bolívia. Os principais problemas estavam relacio-
problemas, tentou-se observar se o Novo Marco do Saneamento Básico
estabelece mecanismos que possibilitem contornar esses problemas ou se
o Brasil parece seguir caminho do fracasso da relação entre saneamento
básico e a iniciativa privada.
Palavras-chave
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Abstract
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lation, that drew attention, was that Brazil is going in the opposite direction
to several countries in the world. From this, the present work intends to
Coleção Jovem Jurista 2021
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El Alto, Bolivia. The main problems were related to the following points:
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problems, an attempt was made to see whether the New Basic Sanitation
Legal Framework establishes mechanisms that make it possible to work
around these problems or whether Brazil seems to be following the path of
failure in the relationship between basic sanitation and the private sector.
Keywords
.
Introdução
Situação problema e relevância
Segundo dados de 2016, cerca de 16,7% da população brasileira não ti-
nha acesso à água tratada e 48,1% da população não tinha acesso a ser-
(IBGE) apontou que 1.933 municípios, ou seja, 34,7% do total, registraram
básico em 2017.1 Além disso, segundo auditoria realizada, em 2015, pelo
Tribunal de Contas da União (TCU), o lançamento de esgotos é a principal
causa de poluição dos corpos hídricos, em especial em áreas urbanas.2
Esses dados demonstram-se consideravelmente preocupantes e
comprovam que o acesso ao saneamento básico envolve riscos à saúde da
população3 e ao meio ambiente,4 sendo ambos direitos garantidos cons-
1 IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pes-
quisa de Informações Básicas Municipais 2017.
2 Tribunal de Contas da União. Auditoria Operacional em Esgotamento Sanitário. TC
017.507/2015-4 Fiscalis 317/2015, Relator: André Luís de Carvalho.
3 O direito à saúde, entre outras menções na Constituição, aparece com especial aten-
ção no art. 196 da CRFB/88 que reconhece a saúde como direito de todos e dever
do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
4 A temática do meio ambiente é tratada em diversos títulos e capítulos, mas cabe
destaque ao Título VIII, Da Ordem Social, cujo art. 225, caput
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
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Saneamento báSico e participação da iniciativa privada 133
titucionalmente. Além do quadro atual ser alarmante e incompatível com
o estágio de desenvolvimento brasileiro,5 pesquisas apontam a impossi-
bilidade de universalizar o acesso ao saneamento básico dentro do prazo
estabelecido pelo Plano Nacional de Saneamento – até 2033,6 de modo
que o quadro de restrições de direitos tende a se prolongar pela falta de
investimentos.
O cenário atual de prestação de saneamento básico é o de que os
prestadores públicos são os principais responsáveis por esses serviços no
Brasil. Segundo dados divulgados pelo Centro de Estudos e Regulação em
Infraestrutura – Fundação Getúlio Vargas (CERI FGV), 25% dos Municípios
é atendido por meio de autarquias municipais, empresas públicas e/ou
administração pública direta, enquanto dos 75% que delegam a execução,
96% são atendidos por Companhias Estaduais de Saneamento Básico.7
Diante desse cenário precário de acesso ao serviço de saneamento da
população brasileira provido pela prestação, em sua maioria, estatal – dire-
ta ou indireta – o movimento de maior abertura à iniciativa privada surgiu
como alternativa ao status quo
na prestação do serviço.8 Esse movimento começou a se concretizar ins-
tar também que o art. 170 da CRFB/88 traz uma nova percepção sobre o direito ao
meio ambiente e descreve que a ordem econômica brasileira deve respeitá-lo.
5 Sobre isso, destaca Carlos Tieghi, presidente do Conselho do Instituto Trata Brasil: “Os
dados da última Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, divulgada recentemen-
te pelo IBGE, mais do que comprovam que o saneamento foi deixado de lado pelos
últimos governos: a sociedade hoje conta com mais acesso a tecnologia que a rede
coletora de esgotos. Dado o contraste dos indicadores do setor de saneamento com
os demais (rede elétrica, telefonia, internet, entre outros), cabe ao próximo governo
priorizar o saneamento básico e promover todas as alternativas de investimentos pre-
vistas na legislação para prover esses serviços básicos para a população”. Disponível
em: http://www.tratabrasil.org.br/por-que-a-universalizacao-do-saneamento-basi-
. Acesso em: out.
2020.
6 “Segundo o plano, o custo para universalizar os quatro serviços (água, esgoto, resí-
duos e drenagem) é de R$ 508 bilhões entre 2014 e 2033. Já para a universalização de
água e esgoto, o custo será de R$ 303 bilhões. Um estudo da Confederação Nacional
da Indústria (CNI) apontou que, com o ritmo atual de investimentos, o Brasil apenas
conseguirá universalizar o atendimento de água em 2043, e de esgoto, em 2054.”
In:
do Rio de Janeiro, CAO Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro: Ministé-
rio Público do Estado do Rio de Janeiro, 2020.
7 Disponível em: -
-reforma-saneamento_digital_28.07.2020.pdf. Acesso em: set. 2020.
8 Nesse sentido, manifestou-se o Ministro Luiz Fux na Medida Cautelar na ADI no 6.492
de demora na prestação jurisdicional, afasta-se desde logo pelo cenário lastimável em
que atualmente se encontra o acesso da população brasileira a esses serviços. A ma-
nutenção do status quo perpetua a violação à dignidade de milhares de brasileiros e
a fruição de diversos direitos fundamentais. É como reconhece o próprio Requerente,
ao aduzir que ‘quanto à irreparabilidade dos danos emergentes dos atos impugnados,
evidencie-se que a situação atual per se já está a causar um amplo espectro de danos
à população brasileira’”. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6.492-DF. Min. Relator Luiz Fux. Decisão Monocrática, julgado
em 03.08.2020. DJE 04.08.2020.
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