Saneamento e liquidação de instituições de crédito - novas pespectivas do direito comunitário

AutorArmindo Saraiva Matias
Páginas7-46

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Nota preliminar

No dia 8 de maio de 2000 foi aprovado pelo Conselho de União Europeia o texto de uma Directiva sobre Saneamento e Liquidação de Instituições de Crédito cuja preparação decorreu ao longo de vários anos, em face das dificuldades que foram surgindo.

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É nosso propósito proceder ao estudo desse importante documento legislativo, extraindo dele as conclusões que nos pareçam mais relevantes.

Os respectivos trabalhos foram iniciados em 1985, com várias e longas interrupções.

Nunca, todavia, deixou de fazer-se notar a enorme premência que todos os Es-tados-membros sentiam na criação de regulamentação sobre esta matéria.

A internacionalização da economia, o notável avanço do Mercado Comum, inicialmente, e da União Económica e Monetária, depois, impunham a criação de regras comuns, no espaço europeu, para o caso de colapso de uma instituição de crédito, sobretudo quando esta tenha sucursais em Es-tados-membros.

A adopção dos princípios de harmonização parcial e do mútuo reconhecimento, plenamente em execução na Comunidade, carecia, agora, de regulamentação a juzante, quando as instituições de crédito se extingam ou se encontrem em estado de insolvência.

Do que observámos, cada Estado-membro tem a sua própria legislação interna - na maioria dos casos, desactualizada - sobre o saneamento e liquidação daquelas instituições.

Sendo certo que os Estados-membros se encontram equipados com legislação moderna sobre a insolvência das empresas em geral, a verdade é que a não aplicam às instituições de crédito, em particular.

Aliás, é disso razão impediente a própria legislação comunitária sobre constituição e supervisão das instituições de crédito, na medida em que entrega uma e outra (a autorização de constituição e a supervisão) ao país de origem.

A regulamentação vertida na Directiva Comunitária constitui o resultado da reflexão conjunta dos muitos representantes dos Estados-membros que integraram o respectivo Grupo.de Trabalho: espelha, por isso mesmo, as hesitações, as contradições, as dificuldades, de todos e de cada um, no encontro das soluções que, apesar de tudo, são julgadas as melhores.

Tentaremos a definição daquelas soluções e do status quaestionis.

Não se trata de criar direito material. Trata-se, antes, de estabelecer normas de remissão, regras de direito internacional privado.

O ponto será, sempre, determinar qual a lei aplicável, no caso concreto. E a lei aplicável é, necessariamente, a de um Es-tado-membro que com aquele caso se encontre em conexão.

Naturalmente, a nova regulamentação está enquadrada por outras normas de direito comunitário, com elas se conformando, em atenção ao princípio da unidade da ordem jurídica comunitária.

E nosso objectivo:

- de um lado, proceder à análise da actual situação desta matéria face à regulamentação vigente;

- de outro lado, mostrar as novas perspectivas de evolução das regulamentações nacionais perante os imperativos emergentes desta Directiva que se encontra, de momento, a cumprir as passadas burocráticas que se seguem à aprovação técnica e política.

Dividimos o trabalho em duas partes. Na Primeira Parte gostaríamos de dar conta do estado actual das legislações nacionais; na impossibilidade de as percorrer todas, preferimos ilustrar a situação com o caso português, por ser o que conhecemos melhor e por configurar um paradigma de desactualização, a carecer de alteração urgente.

Na Segunda Parte daremos conta do que se passa no direito comunitário.

Introdução
1. O problema que se suscita

A insolvência das instituições de crédito constitui motivo de grande preocupa-

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ção para os Governos e para as autoridades dos Estados que superintendem aos sectores financeiros.1

É verdade que a tradição europeia não conhece muitos casos de grande expressão, o que se explica pela especial contextura dos seus sectores bancários;2 e, quando esses casos surgiram, foram os próprios Estados que, a maior parte das vezes, suportaram os custos das insolvências, através de mecanismos mais ou menos disfarçados, pretendendo sempre fazer acreditar na segurança e fiabilidade do sistema, capaz de manter salvaguardados os interesses dos investidores, dos depositantes.

De outro lado, e nos últimos anos, a euforia das concentrações bancárias3 tem constituido uma tábua de salvação para instituições mais frágeis, incapazes de se sustentarem.4

Acresce que os sectores bancários têm percorrido caminhos desobstruídos pelas facilidades que os Governos lhes propiciam, e pela enorme diferença entre as taxas de juros passivas e activas que lhes têm sido permitidas.

Não tem acontecido o mesmo noutras latitudes e crê-se que a situação de favor da actividade bancária não perdurará por muito tempo.

Observam-se, aliás, muitos sinais da preocupação sentida pelos responsáveis desses sectores de actividade: por exemplo, tem-se mostrado insistente a criação de sistemas de garantia de depósitos, tornados obrigatórios,5 através de uma legislação, cada vez mais apertada, dos sistemas de vigilância e supervisão.6

Na verdade, a insolvência de uma instituição de crédito arrasta volumoso número de depositantes e credores, pode arrasar sectores de actividades económicas, cria desconfiança no sistema, que o mesmo é dizer, fuga e exportação de capitais.

E, no entanto, ao que julgamos saber, não tem existido, sobretudo nos países europeus de civil law, um tratamento adequado do fenómeno, de consequências tão extensas.

E porque o fenómeno é específico, também o tratamento tem de ser especial. Não servem, por isso, para a resolução dos problemas da insolvência das instituições de crédito, os mecanismos concebidos para outros tipos de empresas.

Estes últimos, sim, existem em todos os países, mas são relativamente ineficazes no âmbito do sector bancário.

2. A questão da insolvência, em geral

A declaração da falência em consequência da insolvência é uma figura conhe-

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cida por todos os Direitos nacionais e é, também, por eles tratada de forma semelhante.7 Incorporada nos Códigos de Processo Civil e de direito privado ou vertida em legislação avulsa, a insolvência, entendida como incapacidade de cumprimento das obrigações de pagamento ou insuficiência de balanço,8 conduz, verificados determinados requisitos, legalmente previstos, à declaração da falência e à dissolução da pessoa jurídica, com liquidação do respectivo património, em benefício dos credores.

Ora, constitui, normalmente, preocupação do legislador criar, a montante, barreiras de protecção impeditivas da declaração de insolvência, ou, melhor, medidas de recuperação, que evitem a extinção da empresa e a liquidação do património, com dispersão deste e, consequentemente, com desaproveitamento económico dos bens.

Temos, assim, medidas de reestrutu-ração, preventivas da insolvência (e da falência), e, quando estas não sejam viáveis, normas de extinção das respectivas pessoas jurídicas e liquidação de patrimónios.

Convém, pois, distinguir o conceito de insolvência do conceito de situação económica difícil. Porque, tratando-se de insolvência, o caminho mais provável será o que conduz à declaração de falência; encontrando-se a empresa em situação económica difícil, mas não insolvente, poderá ser objecto de medidas de saneamento, de medidas preventivas da falência.

A insolvência traduz a situação da empresa que se encontra impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações em consequência de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível.9

Por situação económica difícil entende-se aquela que...

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