Segundo Diálogo

AutorPiero Calamandrei
Ocupação do AutorJornalista, Jurista, Político e Docente universitário italiano
Páginas83-159

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No qual se discorre acerca das formas pelas quais o novo processo civil se propõe a favorecer as boas relações entre juízes e advogados “de plano et sine strepitu”.

Primeiro AdvogAdo. — Eis-nos aqui novamente, caros amigos, dispostos a discorrer acerca do processo civil e a sua reforma. Esperamos que desta vez não erremos o caminho com digressões, como nos aconteceu na nossa primeira reunião. Hoje, precisamente, não gostaria de sair daqui sem ter aprendido do professor alguma coisa concreta acerca da sorte que aos advogados nos reserva o novo Código...
primeiro juiz. — Também, os juízes, temos igual curiosidade, no que a nós se re-

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fere. Procura, pois, satisfazê-la, querido professor; estamos pendentes de seus doutos lábios.

O teórico. — Fazem-me muita honra em supor que eu possa lhes ensinar algo: no fundo, o melhor sistema para aprender o novo Código seria (perdoai-me) o de lê-lo atentamente de ponta a ponta, duas ou três vezes, prescindindo absolutamente dos comentários dos professores.

Primeiro AdvogAdo. — Sabem muito bem que a divisa sacrossanta de nós, os advogados, é esta: não fazer nunca hoje aquilo que se pode deixar para amanhã. Eu, pela minha parte, lerei o novo Código a primeira vez que tenha de colocá-lo em prática em um processo...
o teórico. — Pois então, se querem que, até que isso ocorra, os poupe um pouco de trabalho, chamando desde agora sua atenção acerca das disposições mais interessantes, estou absolutamente à dis-

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posição. Reiniciemos, pois, o discurso no ponto em que o havíamos deixado... O ingênuo. — Ou seja, se não me engano, no ponto da “defasagem”. Esta é, com efeito, de tudo o que se falou na anterior conversação, a única ideia clara que me ficou na cabeça: os advogados, válvulas que não acompanham os êmbolos, que são os juízes...
o teórico. — Pois partamos deste ponto que tanto te chamou a atenção. Digamos, então, para não sair da imagem, que o objeto fundamental do novo Código de Processo Civil é, precisamente, este: pôr “em prática ” o mecanismo da justiça, fazendo tomar, aos advogados e aos juízes, a simultaneidade de ritmo que é indispensável para obter o máximo rendimento dos mecanismos processuais...
segundo juiz. — Meu Deus, que alegria para nós, os juízes, esta redução da nossa justiça a uma questão de êmbolos e de engrenagens!

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Primeiro juiz. — Não te alegres tão logo, colega: o amigo professor fala em termos de mecânica para se fazer en-tender pelo mecânico que o escuta, e também, um pouco, para estar de acordo com o estilo dinâmico de nosso tempo. Mas, no fundo, também ele está convencido de que há uma certa diferença entre os homens e as rodas, entre os motores de explosão e a humanidade...
o teórico. — Tão convencido estou disso que, para falar do novo Código, sinto a necessidade de apresentar, em primeiro lugar, um homem esperto, de sensibilidade e instinto aguçados do qual dependerá, em grande parte, o sucesso da reforma.
primeiro AdvogAdo. —De quem se trata?

O teórico. — Do juiz instrutor.
segundo AdvogAdo. — Você disse o “juiz instrutor?” Terá, pois, no novo processo civil, um juiz chamado assim?
o teórico. — Precisamente.

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Segundo AdvogAdo. — Ai! Parece-me que isto começa mal: esse nome, para nós, os advogados, não anuncia bom presságio... tem algo de áspero e de azedo, que nos põe em alerta. No processo penal, vocês sabem, como eu, que as investigações do juiz instrutor se desenvolvem no sigilo do seu escritório, e os pobres advogados não podem atravessar o limiar, devendo esperar até que a instrução se encerre. Querem, pois, introduzir também, no processo civil, junto com a instituição do juiz instrutor, esta fundamental desconfiança contra os advogados que inspira o processo penal?
o teórico. — Não te alarmes, amigo. O juiz instrutor do novo processo civil se chama assim porque não tem sido possível encontrar, no vocabulário, uma palavra mais apropriada para indicar as suas funções; mas, em realidade, entre o juiz instrutor do processo penal e o do processo civil não há nada

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em comum, apenas o nome. No penal, o juiz instrutor é um órgão permanente, o mesmo para todas as causas; e estas, antes de tomar o seu caminho à luz do sol, devem passar perante ele por uma série de secretas indagações preliminares, das quais estão rigorosamente excluídos os advogados; no civil, no entanto, o juiz instrutor é nomeado, caso por caso, para cada processo que se inicia, e desde o primeiro momento, sua função mais importante é a de manter-se em estreito contato com os advogados das partes. Pode-se dizer, pois, que no processo civil o juiz instrutor representaria, frente aos advogados, o expoente de uma tendência perfeitamente oposta à que se encarna no instrutor penal: se com respeito à fase instrutória do processo penal pode-se estimar que o defensor foi considerado como um perigoso perturbador da justiça, o novo processo civil instituiu o juiz instrutor precisamente com o objetivo oposto, que é o de assegurar,

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à justiça, desde o momento de iniciar-se o processo, a preciosa colaboração dos advogados.
primeiro AdvogAdo. — Explica-nos, pois, como pode ter lugar este milagre.
o teórico. — Naturalmente, eu não posso entrar aqui, em uma conversação que pretende ser amena, a fazer o comentário de todos os artigos do novo Código que se referem ao juiz instrutor; e devo limitar-me a algumas ideias fundamentais, para não correr o risco de ver adormecido todo o auditório...
segundo juiz. — (Que vingança, para nós, os juízes, ver também os advogados se deixarem vencer pelo sono...)

O teórico. — Já na nossa primeira reunião se disse que no procedimento sumário, até agora em vigor, a audiência servia somente de sala de entrevista para os advogados: somente quando estes, de prorrogação em prorrogação, haviam pouco a pouco enchido petições o processo, se abria a cortina e aparecia o

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colegiado para se fazer cargo solenemente. Assim, o trabalho preparatório, que consistia em examinar as petições de prova contidas nas petições juntadas e em dispor as investigações para chegar a conhecer a verdade, devia fazê-lo, todo ele, o colegiado devidamente reunido, pronunciando, para cada meio instrutor que admitisse, outras tantas decisões interlocutórias. Pois bem, no novo processo, todo este trabalho preparatório, consistente em dispor as provas necessárias para constatar os fatos e em recolhê-los, se realizará, sem esbanjamento de inúteis solenidades, pelo juiz instrutor: e o colegiado aparecerá somente no final, quando o material probatório tenha sido já recolhido e posto sobre a mesa, e ao colegiado não lhe fique outra coisa que colher os resultados... Dessa forma toda ação, assim que for proposta, encontrará, disposto para atendê-la, seu juiz instrutor...

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Segundo juiz. —Um juiz instrutor nomeado especialmente para cada ação?
o teórico. — Assim é. Também, o novo processo civil começará com uma citação, que guardará semelhança com a que agora se emprega; com esta só uma diferença importante: que as partes, em lugar de marcar uma audiência já fixada no ato de citação, deverão, primeiramente, protocolar na secretaria, dentro do prazo fixado pela lei, suas petições com os documentos anexos, de modo que seja possível, pela leitura destes, ter uma ideia exata a respeito da ação proposta. Neste momento, o presidente (falo do procedimento tal como se desenvolverá perante os órgãos colegiados) tomará vista do processo e designará, como juiz instrutor, para aquela causa qualquer um, à sua eleição, dos juízes do tribunal, fixando também a primeira audiência na qual os defen-sores deverão comparecer perante ele. Assim, o primeiro contato entre o juiz

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e os advogados não terá lugar na sala destinada às solenes audiências do colegiado, mas no gabinete do juiz instrutor, em uma atmosfera de confiança e de entendimento.

Segundo AdvogAdo. — Mas então, se entendi bem, toda a novidade se reduz a uma mudança de lugar: antes, com o velho processo, se devia, desde a primeira audiência, ascender ao piso alto, para encontrar-se perante o presidente que assinala as ações na sala grande; agora, com o novo processo, começaremos por ir a uma pequena sala do andar inferior, onde o juiz instrutor nos fará as sinalizações...

O teórico. — Parece-me que você não entendeu uma palavra (a culpa, naturalmente, é minha por não ter me expressado melhor...). A diferença será, na realidade, muito mais profunda do que você imagina. No velho processo, a audiência presidencial servia somente para a sinalização das ações: e o

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presidente, perante o qual desfilavam no curso de uma hora todas as ações apregoadas pelo empregado (em certos tribunais podiam ser até duzentas ou trezentas por audiência), não podia fazer outra coisa que deixá-las passar sem dar-se o prazer de conhecê-las... No novo processo, no entanto, o juiz instrutor será nomeado com o encargo pessoal de seguir de perto a marcha daquela causa singular que se lhe tenha confiado; não terão lugar já, perante ele, audiências “em massa”, mas cada audiência instrutória terá o caráter de uma reunião particular, fixada especialmente para aquela ação e não para outra. O juiz instrutor, em suma, não será já uma pessoa “fungível”, que possa, durante o curso do mesmo processo, trocar dez vezes de cara e de nome: será um magistrado esperto e identificado, chamado José ou Caetano, perante o qual as partes, em qualquer momento do processo, poderão voltar com a certeza de reencontrar

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um rosto conhecido... Em suma, toda causa, assim que for proposta, encontrará no juiz instrutor...

Segundo AdvogAdo. — ... sua parteira e sua ama-de-leite...
o teórico. — Prescindamos das comparações irreverentes: em todo caso, se poderia falar de um tutor, que toma a ação nos primeiros passos e não a deixa até que lhe parece tê-la educado e instruído...
primeiro AdvogAdo. — Esta comparação me traz à memória um discurso que me fez, uma vez, um cliente. Era um agricultor toscano, desses...

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