Seguro de responsabilidade civil

AutorGustavo de Medeiros Melo
Páginas37-74
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CAPÍTULO III
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
1. INTRODUÇÃO
No plano dogmático, o Direito do Seguro congrega dois grandes
grupos: o seguro de danos e o seguro de pessoas (seguro de vida e aci-
dentes pessoais). O seguro de responsabilidade civil é um ramo do pri-
meiro grupo.21
A história do seguro de responsabilidade faz parte da história da
responsabilidade civil.22 A literatura registra que, até meados do século
XIX, era comum haver forte resistência à ideia de que alguém poderia
ter um seguro para cobrir a “negligência” de seus próprios atos. Tal era
fruto ainda da primitiva suposição de que o seguro seria algo capaz de
“isentar” o segurado de responsabilidade perante terceiros, ou torná-lo
imune à prática da ilicitude.23
21 VITERBO, Camilo. El seguro de la responsabilidad civil. Buenos Aires: Depalma, 1944, p. 61.
22 COUTO E SILVA, Clóvis do. “O seguro no Brasil e a situação das seguradoras”.
In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (Org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis
do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 97.
23 Como se verá mais à frente, a garantia do seguro, particularmente desse de que estamos
a tratar, não isenta ninguém de responsabilidade. O seguro pode apenas evitar, no todo
ou em parte, que o segurado sofra as consequências econômico-financeiras de um sinistro.
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GUSTAVO DE MEDEIROS MELO
No Brasil, a doutrina clássica noticia essa visão preconceituosa
que, no fundo, foi influenciada pela própria linguagem do Código de
1916.24 Ali, o legislador dizia ser nulo o contrato quando o risco esti-
vesse ligado a atos ilícitos do segurado, beneficiário, seus representantes
ou prepostos (CC/16, art. 1.436).25 Com essa redação, o mentor do
velho estatuto civil não teve dúvida em afirmar que, frente àquele dis-
positivo, era impossível o “seguro da culpa” no Direito brasileiro.26
O seguro de responsabilidade se desenvolveu como instrumento
de proteção do segurado em relação aos atos lesivos que ele viesse a
causar na vida de terceiros. Mas qual era a função dessa espécie securi-
tária? Para saber o que move o segurado ao procurar um seguro dessa
espécie, é necessário responder à seguinte pergunta: o interesse do se-
gurado consiste em se reembolsar dos prejuízos que venha a ter com o
pagamento de indenizações? Ou seria – antes – evitar o desfalque do seu
patrimônio com o pagamento de indenizações?
As questões acima constituem uma provocação necessária para
definir os rumos que a presente tese pretende tomar. Passemos a examinar
o escopo do seguro de responsabilidade na sociedade contemporânea.
Duas correntes se formaram ao longo do tempo, a primeira delas cons-
truída com base na teoria do reembolso.
2. TEORIA DO REEMBOLSO NA FILOSOFIA DO CÓDIGO CIVIL
DE 1916
No Brasil, o velho Código Civil de 1916 não dispunha de uma
disciplina própria para o seguro de responsabilidade.27 Diante dessa
24 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado: parte Especial. 3ª ed.
Tomo XLVI, § 4970. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 47.
25 Hoje, em versão moderna, o Código Civil de 2002 vincula o vício de nulidade ao
ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro” (art. 762).
Abordagem interessante sobre a evolução desses conceitos: DIAS, José de Aguiar. Da
Responsabilidade Civil. 5ª ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 495 e seguintes.
26 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 3ª ed. Vol. 5. Tomo.
2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1934, p. 198.
27 A literatura registra que o Código Civil de 1916 teve como principal fonte, no capítulo
do contrato de seguro, o Código Civil do Cantão de Zurique: PONTES DE
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CAPÍTULO III – SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
lacuna, o mesmo foi estudado a partir da disposição genérica do art. 1.432,
que dizia: “considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se
obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do pre-
juízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato”.
A filosofia do Código Civil de 1916 era de cunho individualista,
focada exclusivamente na figura do contrato entre duas partes, típica de
uma sociedade cuja estrutura econômica era predominantemente colonial
e agrária, onde o desenvolvimento industrial ainda não havia começado.28
No seguro de responsabilidade, o segurador, mediante a contra-
prestação do prêmio, se obrigava a pagar uma indenização ao segurado
se porventura este viesse a ser condenado por decisão judicial definitiva.
Mas não basta a condenação do segurado. É necessária a prova do de-
sembolso efetuado por ele. A partir daí, na via regressiva, o segurado po-
derá requerer o reembolso da despesa, a título de quantia gasta em bene-
fício do terceiro, nos termos, condições e limites da apólice.
Com essa fisionomia, o seguro foi concebido como instrumento
de reembolso, representando para a seguradora uma simples obrigação de
recomposição patrimonial do segurado. O compromisso da companhia
seria somente o de repor os valores que o segurado despendeu junto à
MIRANDA, F. C. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1981, p. 324.
28 Um retrato da República Velha pode ser visto na seguinte passagem de Orlando Gomes:
“A esse tempo não se iniciara o processo de transformação da economia brasileira, que a
guerra mundial de 14 viria desencadear. A estrutura agrária mantinha no país o sistema
colonial, que reduzia a sua vida econômica ao binômio da exportação de matérias-primas
e gêneros alimentares e da importação de artigos fabricados. A indústria nacional não
ensaiara os primeiros passos. Predominavam os interesses dos fazendeiros e dos
comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes importando para
o comércio interno. Esses interesses eram coincidentes. Não havia, em consequência,
descontentamentos que suscitassem grandes agitações sociais”. (Raízes históricas e sociológicas
do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 25). Para uma visão mais
profunda da sociedade patriarcal da época, o coronelismo arraigado, a política dos
governadores, o patrimonialismo e o estamento burocrático do Estado: FAORO,
Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo:
Globo, 2001, p. 444; COMPARATO, Fábio Konder. “Obstáculos Históricos à
Democracia em Portugal e no Brasil”. Rumo à Justiça. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 389.

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