Seletividade racial do sistema penal brasileiro: origem, mecanismos de manutenção e sua relação com a vulnerabilidade por culpabilidade

AutorThais Diniz Coelho de Souza
CargoGraduada em Direito pela Universidade de São Paulo, USP, Brasil. E-mail: thaisdcs@gmail.com
Páginas162-177
Seletividade racial do sistema penal brasileiro...
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Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 611-626, 2016.
SELETIVIDADE RACIAL DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO:
ORIGEM, MECANISMOS DE MANUTENÇÃO E SUA RELAÇÃO COM
A VULNERABILIDADE POR CULPABILIDADE
RACIAL SELECTIVITY OF BRAZILIAN PENAL SYSTEM ROOT,
MAINTENANCE MECHANISM AND ITS RELATION WITH CULPABILITY BY
VULNERABILITY
Resumo
O presente artigo, levando em consideração as
noções desenvolvidas principalmente por
Zaffaroni, relativas à deslegitimação do
sistema penal latino americano, busca verificar
de que forma se daria a seletividade racial do
sistema p enal brasileiro. Assim, analisamos
que o desenvolvimento histórico do sistema
penal se dá aliado ao racismo, não podendo ser
dele dissociado. Como consequência a
construção do estereótipo do negro como
criminoso, destacando-se o papel ideológico da
criminologia positivista. Verifica-se que, na
seletividade, destaca-se o papel das agências
executivas, como a polícia, ante a
arbitrariedade de sua atuação. Por fim,
voltamo-nos à adoção do conceito de
vulnerabilidade por culpabilidade como uma
possível resposta à deslegitimação decorrente
da s eletividade e da falácia do discurso penal.
Sustentamos que a noção de vulnerabilidade
por culpabilidade, no Brasil, deve,
necessariamente, ter em conta o elemento
racial como autônomo e preponderante em face
de outros fatores também vulneradores.
Palavras-chave: Sistema Penal Brasileiro.
Deslegitimação do Sistema Penal. Seletividade
do Sistema P enal. Seletividade Racial.
Culpabilidade. Vulnerabilidade por
Culpabilidade.
Thais Diniz Coelho de Souza
Graduada em Direito pela Universidade de São
Paulo, USP, Brasil. E-mail: thaisdcs@gmail.com
PONTOS DE PARTIDA E PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DESLEGITIMIDADE DO
SISTEMA PENAL
A deslegitimação, explicitada na teoria e na prática (observação empírica) constitui,
antes de mais nada a radical demonstração de que o sistema penal está nú, pelo
desvelamento de suas múltiplas incapacidades.(ANDRADE, 2006, p.170)
Realidade: perspectiva do sistema latino americano
Na América Latina, a deslegitimação decorre dos próprios fatos:
Na criminologia de nossos dias, tornou-se comum a descrição da operacionalidade
real dos sistemas penais e m termos que nada têm a ver pela forma pela qual os
discursos jurídicos supõe que eles atuem. Em outros t ermos, a programação
normativa que deveria levar a termo essa programação atua de forma completamente
diferente.
A verificação desta contradição requer demonstrações mais ou menos apuradas em
alguns países centrais, mas na América latina esta verificação requer apenas uma
observação superficial. A dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam estão
tão pedidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento
valendo-se de seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamo-nos, em
Seletividade racial do sistema penal brasileiro...
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Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 611-626, 2016.
verdade frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade.
(ZAFFARONI, 1991, p.12)
Temos configurada no Brasil a característica enunciada de um genocídio em curso1.
Sendo assim, enquanto nos países centrais a deslegitimação do sistema penal se dá por
motivos particulares, a deslegitimação pelos próprios fatos, característica particular dos
sistemas penais dos países latino-americanos, exige, para a compreensão do seu sistema
penal, uma nova perspectiva a ser elaborada com base em novos paradigmas. Trata-se da
“Necessidade da Resposta Marginal para conter o genocídio”. (ZAFFARONI, 1991, p. 118)
É impossível compreender esse fenômeno sem contextualizá-lo. Deve-se ter em
conta que o nível de violência assumido pelo sistema penal latino-americano está
“relacionado ao tipo de pacto social que deve dar sustentação. E em segundo lugar que sua
forma de agir está condicionada por seus destinatários” (FLAUZINA, 2006ano, p. 30).
Seletividades estrutural e qualitativa do sistema penal
Além desse fator fático deslegitimante, há, ainda, aquele que decorre da própria
estrutura do Direito Penal e que se manifesta em sua realidade operacional. Trata-se da
seletividade intrínseca do sistema penal que opera dentro da contradição criada entre a
legalidade penal e a legalidade processual penal.
A legalidade penal impõe situações específicas para a atuação do sistema penal,
trata-se da tipicidade-garantia, cujo comando de atuação impõe um “somente”. Por outro lado,
a legalidade processual exige que os órgãos do sistema processual exerçam seu poder para
criminalizar todos os atores de ações típicas, antijurídicas e culpáveis, impondo, assim, o
comando do “sempre” (ZAFFARONI, 1991, p. 21).
Assim, atribui-se enorme amplitude à persecução de limitadas situações, cabendo às
agências executivas realizar o enquadramento do “sempre” no “somente”. Contudo, ante a
1 Apenas a título ilustrativo, temos que, no Brasil, em 2014, houve 59.627 homicídios – o que equivale a uma
taxa de 29,1 homicídios por 100 mil habitantes. Isso corresponde a 10% dos homicídios registrados no mundo e
coloca o Brasil como o país com o maior número absoluto de homicídios (WAISELFISZ, 2015, 6). Em 2014:
utilizando dados, houve um total de 3.009 mortes decorrentes de intervenção policial das quais 2.669 causadas
por policiais durante o serviço. De 2004 a 2014, temos pelo menos 20.418 mortes em c onfronto com policiais
em serviço. (WAISELFISZ, 2015, 15). Por fim, diante desse quadro, destaca-se a seletividade dessas mortes.
Pretos e pardos possuem 147% mais de chances de ser vitimados por homicídios, em comparação aos não negros
(aos 21 anos de idade). Em 2014, para cada não negro que sofreu homicídio, 2,4 negros foram mortos.
(WAISELFISZ, 2015, 22-23)

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