Sentença declaratória, título executivo e contraditório no CPC projetado

AutorIvanise Maria Tratz Martins/Sandro Gilbert Martins
Páginas74-86

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1. Introdução

Atribuir eficácia executiva a pronunciamento com natureza diversa da condenatória é posição já conhecida na doutrina. Mesmo assim, a redação do art. 475-N, I, do atual Código de Processo Civil trouxe inúmeras dúvidas e manifestações contrárias ante a possibilidade de se reconhecer a sentença declaratória como título executivo judicial.

Não obstante o Superior Tribunal de Justiça tenha se encaminhado para aceitar a interpretação de que a sentença declaratória, positiva ou negativa, possa servir de fundamento para dar início à fase executiva do cumprimento de sentença, o tema suscita novas reflexões, uma vez que o código projetado formulou redação diferente para o mesmo dispositivo e, principalmente, por ter como um de seus fundamentos o respeito ao princípio do contraditório.

2. Sentenças em crise e a reforma da execução

À medida que transformações da sociedade motivaram modificações no direito material, naturalmente se exigiu o aprimoramento do processo civil, em especial porque é insuficiente proteger no plano do direito material se inexistirem formas de viabilizar essa proteção3.

Como reflexo da evolução do direito material e do anseio da sociedade por um processo civil de resultados, constatou-se que o processo não tinha

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instrumentos adequados para atender às novas exigências, sobretudo em relação à execução, que se mostrou em crise por não proporcionar a satisfação plena da obrigação carente de tutela.Com efeito, a aproximação da tutela jurisdicional à ideia de plena proteção do direito material desencadeou uma reformulação dos instrumentos processuais, daí surgindo controvérsia acerca da classificação das sentenças.

Muito embora a doutrina reconhecesse que a atribuição da eficácia executiva não era exclusividade da sentença condenatória4, passou a se reconhecer a falência do conceito da sentença condenatória5 e da autonomia estrutural do binômio condenatória-execução forçada. Sugeriu-se dotar a sentença condenatória de força suficiente para, por si só, satisfazer concretamente o direito6.

Além disso, baseando-se nas noções de economia, celeridade e simplici-dade que deveria apresentar a técnica processual, passou-se a entender que a sentença declaratória que reconhece a existência de obrigação líquida, certa e exigível tem a mesma eficácia de título executivo, antes apenas atribuída às sentenças condenatórias7.

Essas orientações doutrinárias, que encontraram eco na jurisprudência8, inspiraram a reforma da legislação processual pátria relativa à execução de sentença e, assim, a Lei 11.232/05 introduziu no CPC o art. 475-N, I, que tipifica entre os títulos executivos judiciais: “a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”.

Diante da novel redação legal, houve quem dela extraiu que a sentença declaratória poderia constituir título executivo judicial9, enquanto houve quem assim negou10.

A despeito da celeuma criada no âmbito doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça continuou firme no entendimento de que as sentenças de cunho declaratório podem ter força executiva quando presentes os elementos indispensáveis para a execução. E, se num primeiro momento falava-se apenas na sentença declaratória positiva11, não demorou o pensamento evoluir e também alcançar a sentença declaratória negativa12, isto é, reconheceu-se ao réu o direito de promover execução de sentença declaratória de improcedência, independentemente de reconvenção.

Nessa mesma esteira, doutrina13 e jurisprudência14 já passaram, também, a reconhecer efeito executivo à sentença constitutiva, positiva ou negativa.

Seja como for, parece que o verdadeiro intuito da reforma operada pela Lei 11.232/05 era consolidar uma contribuição significativa de um movimen-

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to evolutivo gradual, o de generalizar a possibilidade de execução de sentenças cujo comando não fosse, apenas, o de cumprimento de uma obrigação de pagar quantia certa15. Ou seja, o objetivo era propiciar que o processo assegure ao cidadão uma tutela jurisdicional capaz de realizar o seu direito conforme as peculiaridades que esse mesmo direito exige (princípio da efetividade), não importando seu status na classificação doutrinária, pois enquanto sentença, esta espelha apenas o modo (a técnica) através do qual o processo tutela os diversos casos conflitantes (crises jurídicas).

Como dito alhures, quanto aos provimentos judiciais, não há qualquer necessidade desse elemento normativo ou de catalogação legal de atribuição de eficácia executiva, porque, como visto, as decisões judiciais podem ensejar diversos efeitos, entre eles, o executivo, em maior ou menor escala. Melhor dizendo, a tutela jurisdicional plena – sob a ótica da relação direito material e processo –, sem dúvida, pode não terminar com a prolação da decisão judicial, podendo exigir a continuidade necessária para que o bem da vida em objeto realmente seja entregue ao cidadão que buscou no Estado a resolução de seu conflito. Nesses casos, o objeto final do processo não deve ser localizado no provimento judicial que define o direito, mas sim na execução, isto é, na sua realização.16

3. A sentença como título executivo no CPC projetado

O legislador, talvez influenciado pela discussão doutrinária, propõe no código projetado nova redação para o dispositivo em questão, estabelecendo como título executivo judicial “as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”.

Como se observa, à luz do art. 475-N, I, do CPC, é título executivo judicial a sentença que reconheça “a existência” de obrigação, enquanto que o art. 512, I, do novo CPC projetado estabelece ser título executivo judicial a sentença que reconheça “a exigibilidade” de obrigação.

Embora possa parecer que o conteúdo praticamente não tenha sido alterado, é valiosa a distinção entre existência e exigibilidade da obrigação contida no título executivo judicial. A existência abrange a certeza e a liquidez da obrigação, ou seja, seus elementos: natureza (fazer, abster-se, entregar ou pa-

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gar), sujeitos (credor e devedor) e objeto/quantum (determinação de valor ou coisa). A exigibilidade pressupõe essa existência, e vai além: importa a demonstração de que não há qualquer óbice (temporal, condicional etc.) para o cumprimento da obrigação existente.

O texto projetado reflete, agora, exatamente a lição de Teori Albino Zavascki:

Se tal sentença traz definição de certeza a respeito não apenas da existência da relação jurídica, mas também da exigibilidade da prestação devida, não há como negar-lhe categoricamente, eficácia executiva”, ou seja, “não é dado negar executividade a norma jurídica concreta, certificada por sentença, se nela estiverem presentes todos os elementos identificadores da obrigação (sujeitos, prestação, liquidez e exigibilidade), pois isso representaria atentado ao direito constitucional à tutela executiva, que é inerente e complemento necessário do direito de ação.17Portanto, quando se refere à exigibilidade, o texto do futuro CPC está indicando que a sentença, para poder ser executada, deve ser completa em relação à individualização da obrigação nela contida.

Neste particular, portanto, o novo texto legal se apresenta melhor elaborado, porque adotou definição muito mais técnica e adequada para a exata dimensão da hipótese.

4. O contraditório no CPC projetado

O vindouro CPC procurou ser mais cauteloso quanto à manutenção da segurança jurídica, razão pela qual, por exemplo, incluiu em seu texto, de forma expressa, o respeito aos princípios e garantias constitucionais.

Digna de destaque neste aspecto, tratando do princípio do contraditório, a regra prevista no art. 10 do futuro CPC estabelece que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”.

Assim, consagrou-se a noção já amplamente defendida em doutrina de que deve se evitar surpresas no processo, isto é, que as partes sejam surpreendidas, no momento da decisão judicial, com um fundamento sobre o qual não houve qualquer anterior manifestação e que, se tivesse havido tal

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oportunidade prévia, as partes poderiam debater e influir em sua não aplicação ao caso18.

É o que a doutrina tem chamado de contraditório como dever de consulta ou de diálogo judicial19.

A regra comporta flexibilização, isto é, poderá o juiz emitir pronunciamento mediante contraditório posterior (postecipado), tal como ocorre nas tutelas de urgência (art. 298, § 2º) e no caso de julgamento liminar de improcedência (art. 330), mas, na medida do possível, especialmente quando a atividade for de conhecimento, ela deverá ser observada.

Logo, seja uma questão de fato ou de direito, ainda que cognoscível de ofício pelo juiz ou tribunal, como por exemplo prescrição, intempestividade, ausência de preparo etc., somente dela poderá conhecer e julgar se, previamente, permitir o seu debate entre as partes.

O mesmo se diga quanto à aplicação do iura novit curia20, não apenas pelo disposto no art. 10, como também porque o CPC projetado mantém a proibição de o juiz ou tribunal julgar fora dos limites do pedido...

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