Separação de direito: análise crítica do posicionamento adotado pelo STJ acerca da manutenção do instituto na ordem jurídica pátria

AutorJosiane Araújo Gomes/Sanyla Araújo Gomes
Páginas413-433

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Ver Nota12

O Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua Quarta Turma, no mês de março do ano de 2017, em julgamento de Recurso Especial interposto por um casal que, em ação de separação, buscava a homologação pelo Juízo das condições pactuadas (recebimento de pensão, regulação de visitas ao filho, partilha de bens e alteração de sobrenome), firmou entendimento no sentido de que a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 66, que modificou o art. 226 da Constituição Federal, para deixar de condicionar o divórcio à prévia separação judicial ou de fato, não aboliu a figura da separação judicial do ordenamento jurídico brasileiro, mas apenas facilitou aos cônjuges o exercício pleno de sua autonomia privada. A ementa do julgado restou assim redigida, in verbis:

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RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N° 66/10. DIVÓRCIO DIRETO. SEPARAÇÃO JUDICIAL. SUBSISTÊNCIA. 1. A separação é modalidade de extinção da sociedade conjugal, pondo fim aos deveres de coabitação e fidelidade, bem como ao regime de bens, podendo, todavia, ser revertida a qualquer momento pelos cônjuges (Código Civil, arts. 1571, III e 1.577). O divórcio, por outro lado, é forma de dissolução do vínculo conjugal e extingue o casamento, permitindo que os ex-cônjuges celebrem novo matrimônio (Código Civil, arts. 1571, IV e 1.580). São institutos diversos, com consequências e regramentos jurídicos distintos. 2. A Emenda Constitucional n° 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. 3. Recurso especial provido. (REsp nº 1.247.098/ MS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 14/03/2017, DJe 16/05/2017).

Segundo divulgado pelo Superior Tribunal de Justiça em seu sítio eletrônico, o Juízo de primeiro grau, por entender que a Emenda Constitucional nº 66 aboliu a figura da separação, determinou a adequação do pedido, decisão esta mantida pelo Tribunal de Justiça. Em Recurso Especial, a Relatora, Ministra Isabel Gallotti, entendeu pela reforma do acórdão, sob o fundamento de que a única alteração ocorrida com a emenda constitucional foi a supressão do requisito temporal e do sistema bifásico para que o casamento possa ser dissolvido pelo divórcio. Com efeito, afirmou que “O texto constitucional dispõe que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, imprimindo faculdade aos cônjuges, e não extinguindo a possibilidade de separação judicial. Ademais, sendo o divórcio permitido sem qualquer restrição, forçoso concluir pela possibilidade da separação ainda subsistente no Código Civil, pois quem pode o mais, pode o menos também”.3Entendimento semelhante foi adotado, em agosto do mesmo ano, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento de Recurso Especial de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, cuja ementa restou assim redigida, in verbis:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N° 66/2010. DIVÓRCIO DIRETO. REQUISITO

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TEMPORAL. EXTINÇÃO. SEPARAÇÃO JUDICIAL OU EXTRAJUDICIAL. COEXISTÊNCIA. INSTITUTOS DISTINTOS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE. PRESERVAÇÃO. LEGISLAÇÃO INFRA-CONSTITUCIONAL. OBSERVÂNCIA. 1. A dissolução da sociedade conjugal pela separação não se confunde com a dissolução definitiva do casamento pelo divórcio, pois versam acerca de institutos autônomos e distintos. 2. A Emenda à Constituição nº 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. 3. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei nº 13.105/2015). 4. A opção pela separação faculta às partes uma futura reconciliação e permite discussões subjacentes e laterais ao rompimento da relação. 5. A possibilidade de eventual arrependimento durante o período de separação preserva, indubitavelmente, a autonomia da vontade das partes, princípio basilar do direito privado. 6. O atual sistema brasileiro se amolda ao sistema dualista opcional que não condiciona o divórcio à prévia separação judicial ou de fato. 7. Recurso especial não provido. (REsp 1431370/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 15/08/2017, DJe 22/08/2017).

Referido entendimento adotado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao privilegiar, de certo modo, a autonomia dos então cônjuges, possibilitando-lhes a escolha entre obter, primeiramente, a extinção da sociedade conjugal ou, de outra forma, obter a imediata extinção do vínculo matrimonial, traz em seu bojo perigosa consequência, qual seja, o renascimento da discussão sobre a culpa pelo término da união conjugal, questão esta sempre aviventada nos processos de separação judicial, além de se traduzir em posicionamento que contraria a força normativa da Constituição, impedindo, em última análise, a máxima efetividade do texto constitucional.

Com efeito, na ordem constitucional ora em vigor, a sociedade familiar é merecedora de tutela enquanto promova, efetivamente, o desenvolvimento digno das potencialidades de seus membros. Deixando de existir o afeto e a confiança mútua que uniam o casal e, portanto, perdendo a unidade familiar a capacidade de promoção da felicidade de seus integrantes, impõe-se a dissolução da entidade familiar, independentemente da atribuição de responsabilidade pelo seu término a qualquer dos consortes, solução esta, contudo, que se mostra inviabilizada com a manutenção do instituto da separação judicial na ordem jurídica pátria, conforme se passará a expor.

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Conforme é sabido, o Estado, visando estabelecer padrões de moralidade, a fim de promover a harmonia social, impôs diretrizes e proibições a serem observadas na formação da família ? unidade primária de associação dos indivíduos e, portanto, unidade fundamental da sociedade. Houve, assim, a institucionalização da entidade familiar, a qual passou a ser identificada apenas com o instituto do casamento.4Dessa forma, a partir do intervencionismo estatal, “os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e o reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio”.5A identificação da família à união de pessoas pelo casamento esteve presente na legislação pátria desde a instituição da República. De fato, a Constituição Federal de 1891, em seu art. 72, §4º, dispunha que “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. Já a Constituição Federal de 1934, em seu art. 144, previa que “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado”. Assim, o casamento era reconhecido como exclusiva entidade familiar e, como tal, a única idônea a receber proteção do Estado.

Por casamento – e, portanto, por família – entende-se, nesse contexto, a união legal entre homem e mulher, celebrado perante o Estado, em observância a normas de ordem pública, que cria família e estabelece comunhão plena de vida com base na imposição de direitos e deveres conjugais. Assim, corresponde à instituição jurídica e social originária das justas núpcias, contraídas por duas pessoas de

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sexos distintos. “Abrange necessariamente os cônjuges, mas para sua configuração não é essencial a existência de prole”.6O Código Civil de 1916 adotou a ideia de identificação da família ao casamento e, por isso, vedava o reconhecimento de quaisquer direitos às relações consideradas espúrias, adulterinas ou concubinárias. Apenas a entidade familiar tida por legítima merecia reconhecimento, o que implicava efeitos à filiação, na medida em que só se admitia o reconhecimento dos filhos nascidos na constância do casamento. E, nesse contexto, referida legislação impunha a preservação da família matrimonial, na medida em que não se restringia apenas a atribuir responsabilidades aos cônjuges, mas sim interferia na vida íntima do casal, impondo deveres e assegurando direitos de observância obrigatória na constância da união conjugal. Por isso, o casamento era indissolúvel, sendo desconstituído somente em caso de anulação, para a qual era indispensável a ocorrência de erro essencial ou erro quanto à identidade e/ou personalidade do outro.

Nesse passo, os atos de infração aos deveres conjugais, dentre eles o de fidelidade recíproca, davam causa à dissolução da sociedade conjugal pelo desquite, aplicando-se sanções ao cônjuge culpado. Com a decretação do desquite, cessavam-se os deveres conjugais, contudo não se dissolvia o vínculo matrimonial, “o que impedia os desquitados de buscarem reconstruir suas vidas mediante novo casamento”.78

Em 1977, com o advento da Lei nº 6.515Lei do Divórcio – houve a instituição da dissolubilidade do vínculo matrimonial, a qual era possível desde que houvesse prévia separação judicial – nova designação atribuída ao desquite – por

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mais de três anos ou separação de fato pelo prazo de cinco anos, se iniciada antes de 1977. Outrossim, a separação judicial consensual só poderia ser requerida pelo casal após dois anos de casados, e o divórcio só viria três anos após o trânsito em julgado da homologação da separação. Ressalte-se que, em sua redação original, a lei previa que o pedido de divórcio, em qualquer de seus casos, somente poderia ser formulado uma única vez (art. 38, da Lei nº 6.515/77).9Pelo exposto, verifica-se que, até o advento da Constituição Federal de 1988, a legislação dedicava especial atenção à proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, em detrimento da realização pessoal dos seus integrantes. Buscava-se a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, de essencialidade inquestionável. Acreditava-se que as imposições sociais e os mandamentos legais eram capazes de manter os consortes unidos, desconsiderando, pois...

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