O silêncio dos 'litigantes-sombra' e a vitória da eficiência sobre o contraditório no julgamento de casos repetitivos

AutorMaria Cecília de Araujo Asperti
Páginas567-582
O SILÊNCIO DOS “LITIGANTES-SOMBRA”
E A VITÓRIA DA EFICIÊNCIA SOBRE O
CONTRADITÓRIO NO JULGAMENTO DE
CASOS REPETITIVOS
Maria Cecília de Araujo Asperti
Doutora e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo. Profes-
sora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV Direito SP.
Sumário: 1. Introdução – 2. O processo e as ausências – 3. Técnicas de julgamento de casos
repetitivos – 4. Participação e efeitos da tese jurídica – 5. Comparação com a ecácia da
sentença e limites da coisa julgada coletiva – 6. Consequências do décit de participação e
de representatividade – 7. Conclusão – 8. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Em 31 agosto de 2017, pouco mais de um ano após a entrada em vigor do
CPC/2015, foi realizado o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Re-
petitivas (IRDR) em que foram decididos nove temas relacionados aos requisitos e
efeitos do atraso de entrega de unidades autônomas de imóveis em construção, tais
como a cláusula de tolerância e parâmetros indenizatórios1. As questões a serem então
julgadas revestiam-se de inegável importância não somente jurídica (mas também,
até mesmo em razão do considerável volume de ações jurídicas pendentes sobre a
matéria), mas certamente econômica e social.
Nessa oportunidade, o Professor Piva, enquanto membro da Turma Especial de
Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, integrava o corpo de julgadores
que iria def‌inir as teses jurídicas acerca das questões afetadas. A despeito da indiscu-
tível repercussão dos temas, estavam presentes apenas representantes dos interesses
1. IRDR 0023203-35.2016.8.26.0000, Desembargador Francisco Eduardo Loureiro, julgamento em 31 ago.
2017. Temas decididos: “I. Alegação de nulidade da cláusula de tolerância de 180 dias para além do termo
f‌inal previsto no contrato; II. Alegação de nulidade de previsão de prazo alternativo de tolerância para a en-
trega de determinado número de meses (em regra 24 meses) após a assinatura do contrato de f‌inanciamento;
III. Alegação de que a multa contratual, prevista em desfavor do promissário comprador, deve ser aplicada
por reciprocidade e isonomia, à hipótese de inadimplemento da promitente vendedora; IV. Indenização
por danos morais em virtude do atraso da entrega das unidades autônomas aos promitentes compradores;
V. Indenização por perdas e danos, representada pelo valor locativo que o comprador poderia ter auferido
durante o período de atraso; VI. Ilicitude da taxa de evolução de obra; VII. Restituição dos valores pagos
em excesso de forma simples ou em dobro; VIII. Congelamento do saldo devedor enquanto a unidade au-
tônoma não for entregue aos adquirentes; e IX. Aplicação da multa do art. 35, parágrafo 5º, da L. 4.591/64
ao incorporador inadimplente”.
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das incorporadoras e construtoras na sessão, que realizaram suas sustentações orais
em defesa da interpretação das cláusulas contratuais em benefício de seus interesses.
Não havia um representante sequer dos compradores e consumidores, tampouco
os patronos das partes do caso a partir do qual o incidente fora instaurado estavam
presentes. Estes também não se manifestaram por escrito no processo, que transcor-
reu sem qualquer participação signif‌icativa por parte de consumidores ou entidades
representativas de seus interesses.
Essa ausência foi comentada pelo Professor na sessão, que era acompanha-
da por poucos interessados presentes na imponente sala do Órgão Especial do
Tribunal.
O que representa para o nosso processo civil, calcado nos princípios do con-
traditório e da participação, essa ausência? Parte-se aqui da compreensão de que o
contraditório efetivo se traduz em um princípio da participação do processo, como
elemento de legitimação da própria atividade jurisdicional2 para se questionar,
então, as consequências desse silêncio dos “litigantes-sombra”, em um cenário de
crescente um de técnicas de formação provocada de teses jurídicas para casos de
grande repercussão.
2. O PROCESSO E AS AUSÊNCIAS
Como af‌irma Marc Galanter, nós gostamos de acreditar que o sistema legal se-
ria um espaço de remédios e mecanismos que protegeriam os mais desfavorecidos,
assegurando uma mitigação de desequilíbrios de poder e, quiçá, uma redistribuição
de recursos de forma igualitária3.
No entanto, em seu mais conhecido artigo, “Why the haves come out ahead?:
Speculations on the limits of legal change”, de 1978, Galanter já questionava o po-
tencial redistributivo do processo judicial, ao especular que os atores que jogam
o “jogo da litigância” possuem capacidades diferentes, o que torna o jogo, muitas
vezes, essencialmente desequilibrado4. Nesse estudo, propõe a famosa tipologia dos
litigantes habituais, que se envolvem, tanto como autores quanto como réus, em
disputas similares com frequência, e dos litigantes ocasionais, que apenas recorrem
ao sistema de justiça pontualmente. Os primeiros, que geralmente são os atores que
possuem mais recursos, teriam signif‌icativas vantagens estratégias pelo simples fato
de se envolverem com frequência em casos similares, sendo capazes de angariar mais
2. Como propoe a importante def‌inição de Elio Fazzalari: “Il ‘processo’ è um procedimento in cui partecipano
(sono abilitati a partecipare) coloro nella cui sfera giuridica l’atto f‌inale à destinato a svolgere effetti: in
contraddittorio, e in modo che l’autore dell’atto non possa obliterar le loro attività” (Istituzioni di diritto
processuale. Padova: CEDAM, 1994, p. 82).
3. GALANTER, Marc. “Acesso à justiça em um mundo de capacidade em expansão”. Revista Brasileira de
Sociologia do Direito, Porto Alegre, ABraSD, v. 2, n. 1, p. 37-49, jan./jun., 2015, p. 46.
4. GALANTER, Marc. “Why the haves come out ahead? Speculations on the limits of legal change”. Law and
Society Review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.
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