O sistema constitucional de proteção dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil

AutorLuís Fernando Nigro Corrêa
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Integração Europeia pela - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Juiz de Direito no Estado de Minas Gerais
Páginas241-290
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O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO
DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA NO BRASIL
No Brasil, o cenário de preconceito com as pessoas com deficiência é
uma marca que acompanha tais indivíduos,153 desde as práticas do paradig-
ma de prescindibilidade, no submodelo de eliminação, outrora adotadas,
por exemplo, por algumas tribos indígenas e, no próprio submodelo de
marginalização, nas inúmeras instituições totais ou mesmo demais locais
em que as pessoas com deficiência foram excluídas do espaço comum em
sociedade, até as praticadas sob o modelo médico, que apenas fomentou
o estigma e a não aceitação de tais pessoas no seio da sociedade brasileira
com suas próprias singularidades.
Atualmente, depara-se com o desafio da implementação do modelo
social, também conhecido como de direitos humanos, agora insculpido no
arcabouço constitucional pátrio. A riqueza da especificação dos direitos
constantes da Convenção e, por consequência, da Constituição, é inédita
e, ainda que a Constituição da República de 1988 já trouxesse dispositivos
relativos às pessoas com deficiência, somente com a adoção da Convenção
com status de emenda constitucional é que se pôde vislumbrar um sistema
constitucional de proteção dos direitos das pessoas com deficiência.
Ao se observar as Constituições que precederam a de 1988, constata-se
a pouca atenção despendida às pessoas com deficiência pela própria prática
do isolamento a resultar em pouca participação delas em todas as áreas de
convívio social. Algumas das menções a tais indivíduos encontradas nos
153 Vide item 2.4.
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A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
diplomas constitucionais revestem-se de caráter depreciativo e reforçam o
estigma de incapacidade e de periculosidade.
A Constituição de 1824 fez alusão à igualdade formal, constando do
artigo 179, XIII, que “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer casti-
gue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”, sendo
que seu artigo 8o, I, estipulou como hipótese de suspensão do exercício dos
direitos políticos a “incapacidade physica, ou moral” (BRASIL, 1824).
Na verdade, o que prevalecia naquela época no Brasil era o paradig-
ma da prescindibilidade, não havendo espaço para as pessoas com defici-
ência no seio da sociedade. Portanto, estipular a mera igualdade formal no
diploma constitucional em nada alterou a situação fática de exclusão das
pessoas com deficiência.
No mesmo sentido, a Constituição de 1891 (BRASIL, 1891) fez alu-
são à igualdade formal em seu artigo 72, parágrafo 2o, mantendo-se a res-
trição ao exercício dos direitos políticos por “incapacidade física ou moral”,
nos moldes do artigo 71, parágrafo 1o (BRASIL, 1891).
Por seu turno, a Constituição de 1934, para além de fazer alusão à
mesma igualdade formal (artigo 113, 1), mencionada nos diplomas cons-
titucionais anteriores, trouxe em seu artigo 138, elementos que indicam a
influência da eugenia em uma política voltada para a higienização social.
Dispunha o aludido dispositivo:
Art. 138. Incumbe à União, aos Estados e aos Municipios, nos
termos das leis respectivas:
a) assegurar amparo aos desvalidos, creando serviços especializa-
dos e animando os serviços sociaes, cuja orientação procurarão
coordenar;
b) estimular a educação eugenica;
c) amparar a maternidade e a infancia;
d) soccorrer as familias de prole numerosa;
e) proteger a juventude contra toda exploração, bem como contra
o abandono physico, moral e intellectual;
f) adoptar medidas legislativas e administrativas tendentes a res-
tringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de hygiene social,
que impeçam a propagação das doenças transmissiveis;
g) cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os vene-
nos sociaes. (BRASIL, 1934)
O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS
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Ora, se profícua a menção das alíneas “a, “c”, “d” e “e”, no sentido de
que, em tese, haveria uma preocupação com temas sociais relevantes, nos
quais a assistência do Estado se faz necessária, as alíneas “b”, “f” e “g” des-
cortinam um estreito alinhamento com o movimento eugenista atrelado
à prática da época de isolamento dos indivíduos que não se amoldavam
aos padrões então estabelecidos pela sociedade em locais segregados do
convívio social.
Sobre a eugenia no aludido dispositivo constitucional, observou Ro-
cha que:
A mesma Constituição que estabeleceu a garantia de ensino pri-
mário e sua gratuidade em todo o estado nacional brasileiro, tam-
bém defendia através do Art. 138, o estímulo à educação eugênica
como necessária ao país, defendida pelo discurso inflamado de
parlamentares, médicos e políticos eugenistas que consideravam
que ações de ordem social, filantrópica ou educativas seriam ape-
nas paliativas e não resolveriam o problema da raça. (2018, p. 62)
Nesse sentido, o êxito do movimento eugenista em assentar a “edu-
cação eugênica” na Carta Maior, revela a força do referido movimento no
Brasil na primeira metade do século XX, o que apenas fomentou o precon-
ceito contra as pessoas com deficiência que estariam fora do plano de uma
raça melhor que seria obtida por uma seleção artificial, inclusive por meio
de reprodução seletiva.
Salienta-se que o artigo 110, “a” de tal diploma constitucional fazia
alusão, ainda, à suspensão dos direitos políticos por incapacidade civil ab-
soluta, observando que o rol de pessoas absolutamente incapazes estabele-
cido pelo Código Civil então vigente, incluía nos incisos II e III, do artigo
5o, os loucos de todo o gênero e os surdos-mudos, que não pudessem expri-
mir a sua vontade (BRASIL, 1916).
A Constituição de 1937 (BRASIL, 1937), por seu turno, não manteve
a alusão expressa à eugenia.154 O diploma reproduziu em caráter genérico o
154 Embora o diploma de 1937 não tenha expressamente mencionado a educação
eugênica, observa Simone Rocha que: “Os ideais de uma educação eugênica es-
tão presentes na Constituição de 1937 que foi outorgada por Getúlio Vargas no
dia 10 de novembro de 1937, no mesmo dia em que foi implantada a Ditadura
do Estado Novo. É importante mencionar que a educação física, considerada

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