Sistema de garantias salariais

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas948-1042
CAPÍTULO XXII
SISTEMA DE GARANTIAS SALARIAIS
I. INTRODUÇÃO
A ordem justrabalhista estabelece um sistema largo de proteções ao
conjunto de parcelas devidas ao trabalhador no contexto da relação de em-
prego. Essa proteção larga, embora tenha se concentrado, inicialmente, em
especial em torno das parcelas salariais, em vista de seu caráter alimentício,
passou, entretanto, muitas vezes, a alcançar também, praticamente, as dis-
tintas verbas oriundas do contrato empregatício. O sistema de garantias
salariais, portanto, hoje, de maneira geral estende-se às distintas par-
celas trabalhistas, embora seu núcleo básico evidentemente concentre-se
ainda no salário.
Tal larga proteção manifesta-se nos princípios justrabalhistas, alguns
inclusive absorvidos pela legislação heterônoma estatal, conferindo, em seu
conjunto, a marca distintiva do Direito do Trabalho perante outros ramos
jurídicos privados próximos: trata-se dos princípios e normas que asseguram
a imperatividade de quase todas as normas juslaborais (art. 9º, CLT), que
asseguram a indisponibilidade dos direitos trabalhistas (arts. 9º, 444, caput
e 468, caput, CLT), e que vedam até mesmo transações bilaterais, quando
lesivas ao obreiro (art. 468, caput, CLT).
Em paralelo a essas garantias mais amplas, o Direito do Trabalho cons-
truiu um bloco so sticado de outras garantias salariais. Ilustrativamente, há
proteções no tocante ao valor do salário e no que tange também a eventuais
abusos do empregador; há proteções ainda quanto ao avanço dos credo-
res do empregador sobre o patrimônio deste, garantidor nal de suas dívidas
trabalhistas; nalmente, há proteções jurídicas contra os próprios credores
do empregado. À exceção do primeiro grupo de proteções (incidentes sobre o
valor do salário), entretanto, todas as demais tendem, hoje, a suplantar as
fronteiras das estritas verbas salariais, alcançando outras parcelas trabalhis-
tas de natureza diversa.
O Direito do Trabalho das últimas décadas, in uenciado pelo advento
da Constituição de 1988, tem ainda descortinado um novo largo campo de
proteções: as que se voltam contra discriminações no âmbito da relação de
emprego. Não se desconhece que normas justrabalhistas antigas já previam
o combate à discriminação de salários no contexto interno da empresa,
através do instituto da equiparação salarial. Contudo, no caso brasileiro, após
949C弼膝菱疋 尾微 D眉膝微眉肘疋 尾疋 T膝樋簸樋柊琵疋
a Constituição de 1988, alargaram-se signi cativamente os temas postos em
conexão com as ideias antidiscriminatórias, gerando um campo de estudo
novo e relevante no atual Direito do Trabalho(1).
É bem verdade que, com o advento da denominada reforma trabalhis-
ta (Lei n. 13.467, vigente desde 11.11.2017), várias dessas garantias foram
desreguladas, exibilizadas e/ou, pelo menos, atenuadas, conforme eviden-
ciado, ilustrativamente, pelo novo parágrafo único do art. 444 da CLT, pela
nova gura do contrato de trabalho intermitente (art. 443, caput e § 3º, c./c. art.
452-A, caput e §§ 1º até 9º, todos da CLT) e pelas novas regras da equipara-
ção salarial (art. 461, CLT). Mais do que isso: a Lei n. 13.467/2017 anqueou
período de incessante e profundo retrocesso no campo social da ordem jurí-
dica, abrindo espaço para diversas políticas públicas e diplomas normativos
subsequentes na mesma direção desregulamentadora, exibilizadora ou, até
mesmo, supressiva de direitos de seguridade social e trabalhistas.
As garantias salariais, em seus distintos aspectos, serão analisadas
neste capítulo.
II. PROTEÇÕES JURÍDICAS QUANTO AO VALOR DO SALÁRIO
A proteção que a ordem justrabalhista brasileira defere ao valor do salário
manifesta-se, essencialmente, por meio de três ideias e mecanismos combina-
dos: a noção de irredutibilidade do valor salarial; os mecanismos de correção
salarial automática; a determinação de existência de um patamar mínimo de
valor salarial no conjunto do mercado, além de certas categorias e pro ssões
determinadas. Esses mecanismos e idéias serão, logo a seguir, examinados.
Deve-se ressaltar, porém, que a proteção estruturada pela ordem jurí-
dica não se estendeu, contudo, ainda, à ideia de su ciência real do salário
percebido pelo obreiro. É que a noção de su ciência tradicionalmente aca-
tada no Direito brasileiro é quase que meramente formal. O art. 76 da CLT a
ela reportava-se, ao tratar do salário mínimo (contraprestação mínima “capaz
de satisfazer...”, dizia a CLT). A Constituição de 1988 ampliou o rol de ne-
cessidades aventadas pelo texto celetista, ao estatuir que o salário mínimo
deveria ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do empregado
e de sua família “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuá-
rio, higiene, transporte e previdência social” (art. 7º, IV, CF/88).
A doutrina e jurisprudência dominantes, contudo, têm compreendido
que semelhantes regras (inclusive a constitucional vigorante) não ensejaram
direito subjetivo ao empregado no sentido de ver, efetivamente, seu salário
(1) O presente texto baseou-se, originalmente, no estudo publicado na 2ª edição da obra
deste autor, Salário — Teoria e Prática. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002 (Capítulos XII até
XVIII). Naturalmente, desde então, sofreu signi cativos acréscimos, atualizações e aperfeiço-
amentos, adquirindo corpo próprio.
950 M樋弼膝眉備眉疋 G疋尾眉匹琵疋 D微柊毘樋尾疋
mínimo lhe garantindo o atendimento àquelas necessidades básicas (como
já examinado no Capítulo XXI deste Curso). Noutras palavras, entre as ga-
rantias xadas pela ordem jurídica brasileira não se entende haver, ainda,
segundo a visão interpretativa até hoje dominante, a garantia da real su -
ciência do salário. Mas, pelo menos, existe, sim, de maneira expressa, a
garantia constitucional da percepção do salário mínimo mensal nas situações
contratuais que ensejam remuneração variável para o empregado (art. 7º, IV
e VII, da Constituição).
Não obstante o caráter abstrato e frágil, no plano do Direito, da ideia
da su ciência do salário, o legislador brasileiro do século XXI decidiu
conferir certa efetividade ao papel civilizatório do salário mínimo, como
patamar econômico básico de aferição do valor trabalho na economia e na
sociedade. Nesse contexto, passou a lhe conceder reajustamentos anuais
sequencialmente superiores aos índices in acionários — à diferença da linha
desvalorizadora da parcela que fora percebida no período anterior. Com
isso, passou a propiciar, em alguma medida, certa consistência econômica à
ideia da su ciência do salário, sem embargo do conteúdo ainda meramente
abstrato que essa ideia ostenta no plano jurídico.(2)
1. Irredutibilidade Salarial
A primeira linha de proteção ao valor do salário manifesta-se pela
garantia de irredutibilidade do salário. Essa garantia traduz, no plano salarial,
a incorporação, pelo Direito do Trabalho, do princípio geral da inalterabilidade
dos contratos (pacta sunt servanda), oriundo do tronco civilista primitivo.
É bem verdade que a CLT não estabelecia texto explícito nessa linha.
Contudo, a irredutibilidade sempre foi inferida não só do princípio geral pacta
sunt servanda, como também do critério normativo vedatório de alterações
prejudiciais ao empregado, insculpido no art. 468 da CLT. Mais do que isso,
o próprio Direito do Trabalho evoluiu na direção de emoldurar princípio espe-
co nesta área, o da inalterabilidade contratual lesiva(3).
A Constituição de 1988, nalmente, incorporou, de modo expresso,
o princípio da irredutibilidade (art. 7º, VI), atenuando-o com uma ressalva:
“salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.
(2) O Decreto n. 9.255, de 29.12.2017, reajustou o salário mínimo em 1,81% entre 2017 (valor
de R$ 937,00) e 2018 (valor de R$ 954,00), em crescimento de apenas R$ 17,00 entre um ano
e outro, afastando-se, dessa maneira, da tendência sedimentada em vários anos sequenciais
anteriores. Nos anos seguintes ao Decreto n. 9.255/2017, seria mantido esse desapreço à
importante política pública de elevação real signi cativa do salário mínimo.
(3) Sobre tal princípio justrabalhista especial, consultar DELGADO, Mauricio Godinho.
Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, em seu Capítulo
II (idem, 4. ed., 2013, Capítulo III). Neste Curso, ver Capítulo VI.

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