O sistema juridico para aplicar o direito, segundo Canaris/The legal system to apply the law, according to Canaris.

AutorFrascati, Jacqueline Sophie P. Guhur

Introducao

Dentre os varios questionamentos possiveis de serem levantados quando em discussao a definicao ou obtencao do direito, estao: como o juiz compreende o fenomeno juridico ou como ele estabelece a verdade no ato de julgar? A pergunta e antiga e, em especial, a partir da visao juspositivista do direito (enquanto lei positivada pelo Estado) e da importancia do Poder Judiciario com a consolidacao do Estado Moderno, tem ganhado diferentes contornos. Como responde-la?

Tendo em consideracao as propostas, analisou-se aquela inserida no ambito do sistema juridico criado por Claus-Wilhen Canaris. Sua construcao nao e recente e e desenvolvida com esteio na Jurisprudencia dos Valores, corrente de pensamento que ganhou destaque na Alemanha no segundo pos-guerra, enquanto tentativa de resposta as consequencias do positivismo exegetico, mas sem pender para a ampla e irrestrita discricionariedade judicial.

Assim, a analise seguiu: inicialmente, a explicitacao do termo "sistema juridico", com o fim de revelar os significados possiveis. Sequencialmente, encontrado o significado de sistema interno, visado por Canaris, examinou-se a sua atualidade e relevancia, em especial, tendo em consideracao se tratar de um sistema que se presta tambem a aplicar o direito. Ainda, analisou-se a corrente de pensamento que serviu de base para a criacao do sistema de Canaris--a Jurisprudencia dos Valores -, com o fim de compreender melhor o seu pensamento. Finalmente passou-se para o exame do sistema de Canaris, tendo em consideracao especialmente seu escrito "pensamento sistematico e conceito de sistema na ciencia do direito". Ainda, sendo a pesquisa precipuamente bibliografica, foram utilizadas obras de autores que trabalharam, em especial, o conceito de sistema e o pensamento da Jurisprudencia dos Valores.

Como metodologia, realizou-se o exame do conceito de "sistema juridico" (a) a luz da historia (do sistema juridico externo e interno) e do contexto historico em que se deram as transformacoes quanto ao seu significado e tarefa/funcao; e (b) com recurso a hermeneutica, uma vez que a pesquisa se dirigiu a compreender o sentido do sistema, em especial, de Canaris, no intuito de revelar a sua funcao de servir para aplicacao do direito.

  1. Sistema juridico: acepcoes possiveis

    O primeiro passo da presente investigacao impoe a explicitacao do significado da expressao sistema juridico que se pretende seguir. Nao se trata, aqui, de sistema enquanto sinonimo de ordenamento juridico (LOSANO, 2008, p. XIX), sentido comumente utilizado pelos operadores do direito quando em estudo um conjunto de normas, como quando em consideracao o sistema juridico brasileiro ou portugues, ou, ainda, o sistema constitucional americano ou frances, ou os diferentes sistemas de direito civil. Outra e a acepcao em estudo. Tem-se, inicialmente, em consideracao o seu significado tecnico, comuns as diferentes areas do conhecimento, com origem na filosofia grega classica, tambem revelando uniao, conjunto ou todo, mas assim desdobrado e explicitado pelos teoricos: sistema externo ou extrinseco, enquanto "organizacao logica de exposicao de uma disciplina" (LOSANO, 2008, p. XIX) (1); e sistema interno ou intrinseco, enquanto "estrutura do objeto estudado" (LOSANO, 2008, p. XIX).

    No ambito juridico, e com a recepcao do direito romano (2), sobretudo pelos jusracionalistas, que tem surgimento o sistema externo, sendo este o sentido inicialmente empregado e difundido pelos teoricos europeus ate o seculo XIX. O discurso acerca do sistema interno, por sua vez, e proprio dos teoricos do seculo XX, sobretudo da doutrina alema (LOSANO, 2008, p. XXXV e XXXVI), e pretende sobrepor-se, em termos de relevancia, em relacao ao sistema externo. Na verdade, essa distincao, aplicada ao direito, revela dois diferentes modos de trata-lo: enquanto "construcao cientifica realizada pelo jurista" (LOSANO, 2008, p. 221); e enquanto "edificio de normas das quais o jurista parte" (LOSANO, 2008, p. 221) ou "enquanto sistema juridico extraido do objeto e nao artificialmente do conhecimento acerca do objeto" (BONAVIDES, 2004, p. 99), respectivamente.

    O modelo novecentista de sistema traz, em si, uma transformacao quanto a nocao classica de sistema: de sistema "para dizer" ou "descrever" o direito se passa ao sistema "para fazer" ou "aplicar" o direito, isto e, "para fazer sentencas" (LOSANO, 2008, p. XXXVI; LOSANO, 2010, p. XXX e XXXI), revelando a insuficiencia do primeiro diante dos problemas que se poem no momento da aplicacao do direito ao caso concreto, uma vez que o sistema externo, enquanto "discurso logico sobre determinado objeto" (LOSANO, 2008, p. 215), estaria voltado exclusivamente para o estudo e aprendizagem do direito. Como menciona Wieacker, o problema da aplicacao do direito, diluido no positivismo legal nas modernas codificacoes, volta a ser posto em discussao com o problema das lacunas e com o desajuste dos codigos as transformacoes sociais reveladas com a primeira Guerra Mundial. Assim e que neste ultimo seculo surgem novas tendencias metodologicas que tiveram em consideracao, sobretudo, a aplicacao do direito, como a Jurisprudencia dos Interesses, o Movimento do Direito Livre e a Jurisprudencia dos Valores. (WIEACKER, 1980, p. 664). E dai porque os modelos de sistema surgidos no seculo XX tambem tem essa preocupacao. Ainda, como afirma Larenz, referindo-se ao sistema conceitual-abstrato (o ultimo modelo de sistema externo do sec. XIX), "ninguem espera hoje deste sistema um contributo para a solucao de problemas juridicos em aberto, mas, quando muito, um mais facil achamento das normas legais que sejam em cada caso decisivas" (LARENZ, 1997, p. 195).

    Mas esta diferenciacao de significados, ainda que possivel, nao e de todo perceptivel e defensavel quando se fala em sistema no direito. Presume-se que o significado tecnico, ainda que constatado por meio da analise historica das diferentes areas do conhecimento, inclusive do direito (como o faz Losano e Canaris, entre outros), deve levar em conta as particularidades do objeto estudado. Em sendo o direito um fenomeno de criacao humana, uma sua ordenacao exterior sofre os influxos de sua concatenacao imanente, e vice-versa. E, de fato, em varios momentos do curso da evolucao do pensamento sistematico se colocou a questao de saber se a ordem esta na mente do estudioso, que a insere na materia, ou se esta na propria materia, lhe e imanente.

    Dai porque, por exemplo, Menezes Cordeiro entende ser necessaria uma sintese entre os sistemas externo e interno:

    A ordenacao exterior, imprimida a realidade juridica com puras preocupacoes de estudo e aprendizagem, vai moldar, em maior ou menor grau, seja as proprias proposicoes juridicas, seja o pensamento geral de que vai depender a sua concretizacao ulterior. Mas se o sistema externo interfere no interno, o inverso nao e menos verdadeiro. A partida, o sistema externo visa comunicar o interno, tornando-o acessivel ao estudo e a aprendizagem. Ele nasce, pois, com uma preocupacao de fidedignidade. As alteracoes evolutivas das conexoes juridicas materiais projectam-se nas exteriorizacoes do Direito, interferindo nelas de modo mais ou menos imediato. [...] Por isso, quando se fala em sistema, no Direito, tem-se em mente uma ordenacao de realidades juridicas, tomadas nas suas conexoes imanentes e nas suas formulas de exteriorizacao. (CORDEIRO in CANARIS, 2003, p. LXIX) Tambem Losano verifica que, embora haja uma importante mudanca de objetivo na passagem do sistema externo para interno (quando a busca passa a ser pela estrutura no interior do direito), o sistema externo reflete no sistema interno: "a ciencia juridica tem por objeto as normas juridicas, cuja genese e, por sua vez, influenciada pela ciencia juridica [...]"'. (LOSANO, 2008, p. 410). Essa inter-relacao aparece, especialmente, quando o autor trata da evolucao do sistema externo para o interno. Suas palavras dao conta de que existe uma circularidade na discussao acerca do sistema no direito. Como o autor aponta, no deslocamento da pesquisa do sistema externo para o sistema interno os juristas desta ultima sistematica partiram (ainda que nao exclusivamente) de um direito positivo--o Codigo Civil Frances de Napoleao e o Codigo Civil Alemao de 1900, que serviu de modelo para numerosas legislacoes--, elaborado pelos defensores do sistema externo e que, portanto, ja possuia uma forma sistematica (LOSANO, 2008, p. 421).

    Por fim, tambem Canaris se refere a uma conexao estreita entre estes dois prismas do sistema, aludindo que o sistema externo (mencionado como sistema de conhecimentos ou cientifico) devera ser o mais fiel possivel ao sistema interno (mencionado como sistema dos objetos do conhecimento), a fim de que "a elaboracao cientifica de um objeto nao desvirtue este, falseando, com isso, a sua finalidade" (CANARIS, 2003: p. 13).

  2. O sistema juridico interno de Canaris: seu objetivo e atualidade

    A partir da compreensao acerca da aspiracao de cada um dos diferentes significados tecnicos de sistema e de sua pressuposta inter-relacao no ambito do direito, contempla-se, em especial, o sistema interno construido por Canaris.

    O sistema de Canaris se afasta do sistema externo ao pressupor a existencia de outros modos de achamento da solucao juridica para alem, especialmente, da operacao logica-dedutiva de conceitos juridicos-abstratos, propria do formalismo cientifico (3) (o sistema conceitual-abstrato e o ultimo modelo de sistema externo); e se caracteriza como sistema interno enquanto nele sobressai a busca pela estrutura no interior do direito.

    Ainda, importa esclarecer que o sistema interno de Canaris surgiu da evolucao da sua teoria (do sistema interno), que se modificou, ainda na primeira metade do seculo XX, para incluir posicionamentos contrarios ao formalismo juridico--especialmente porque as reacoes sao abertas ao conteudo das normas e aos valores, consagrados por meio dos principios--e que estao fundamentados na corrente...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT