O sistema de proteção jurídica do emprego frente às inovações tecnológicas: uma proposta de proteção sistêmica

AutorJouberto de Quadros Pessoa Cavalcante
Páginas99-124

Page 99

Os pilares do sistema de proteção jurídica do emprego contra o desemprego tecnológico

No direito brasileiro, a proteção do emprego perante as inovações tecnológicas, almejada pelo Constituinte (artigo 7º, XXVII), depende de regulamentação infraconstitucional.389

Em outras palavras, “a Constituição, neste ponto, não é autoaplicável, uma vez que transfere para a lei a adoção dos critérios através dos quais será cumprida a sua diretriz

Page 100

destinada a promover a proteção dos trabalhadores em face da automação”.390 Trata-se de uma norma391 de eficácia limitada.392

Apesar de um sistema normativo estatal omisso, a proteção jurídica do emprego diante das inovações tecnológicas no direito pátrio encontra amparo em três pilares: a) no princípio da função social da empresa (aspecto principiológico); b) na negociação coletiva de trabalho como instrumento de proteção jurídica do emprego (aspecto formal); e c) no direito de informação e de consulta dos representantes dos trabalhadores (aspecto material).

Acrescentem-se a esse princípio e direitos outros que compõem o sistema de garantia da dignidade do trabalhador, bem como a possibilidade de serem adotadas políticas públicas e propostas ações judiciais por parte do Ministério Público, da Defensoria Pública e entidades sindicais envolvendo a temática.

O princípio da função social: da função da propriedade à função social da empresa

Inicialmente, a concepção da função social surge relacionada à propriedade na doutrina social da Igreja Católica393 e na contribuição dos positivistas do século XIX.

Page 101

Em 1889, Otto Friedrich von Gierke foi o primeiro jurista a defender “a missão social do direito privado”.

Duas décadas depois (1911), Léon Duguit, inspirado nos postulados filosóficos do positivismo de Augusto Comte, lança as premissas da doutrina sobre a função social da propriedade em conferência realizada na Faculdade de Direito de Buenos Aires.394

Partindo do pressuposto de que a propriedade não é um direito subjetivo395, mas é a própria coisa, em que o direito objetivo (direito à coisa) é protegido pela regra social perante outrem, segundo sua finalidade, Léon Duguit396 passa a defender que o: “[...] direito positivo não protege mais o alegado direito subjetivo do proprietário, mas garante a liberdade do titular de uma riqueza cumprir a função social que lhe foi confiada pelo próprio fato de sua detenção, e assim eu posso dizer acima de tudo que a propriedade se socialize”.

Em outras palavras, “[...] o proprietário não tem o direito subjetivo de usar a coisa segundo seu arbítrio exclusivo de sua vontade, mas o dever de empregá-la de acordo com a finalidade assinalada pela norma de direito objetivo”.397

Com grande avanço social, a Constituição do México (1917) e a Constituição de Weimar (1919) foram as primeiras a impor limites à propriedade privada, em prol da coletividade.

Apesar dos antecedentes históricos, a concepção da função da propriedade se consolida no período entre as duas Grandes Guerras, na “tentativa de conciliar a tradição liberal e a inspiração socialista”.398

No sistema jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1934 garantiu o direito à propriedade privada, mas não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo (artigo 137, n. 17). No Texto Constitucional de 1946, previu-se que o uso da propriedade estava condicionado ao bem-estar social (artigo 147). A expressão “função social da propriedade” é adotada pelo legislador constitucional em 1967.

Com a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, José Diniz de Moraes399 afirma que houve o reconhecimento explícito do princípio da função social da propriedade na ordem constitucional.

Na Constituição Federal de 1988, no capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, o direito de propriedade está garantido, sendo que a propriedade deve atender sua

Page 102

função (artigo 5º, XXII e XXIII), e, entre os princípios gerais da atividade econômica, o constituinte elenca a propriedade privada e sua função social (artigo 170, II e III). Além disso, a função social relaciona-se com a desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária (artigo 184) e com a progressividade do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) (artigo 156).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) (1969)400 garante o uso e gozo da propriedade privada, admitindo a subordinação desse direito ao interesse social (artigo 21).401

Como enfatiza Celso Ribeiro Bastos402, “Atualmente o que se assegura é a proprie-dade simultaneamente propiciadora de gozo e fruição pelo seu titular e geradora de uma utilidade coletivamente fruível”.

Assim, existe uma vinculação social da propriedade, no estabelecimento da conformação ou limitação do direito.403 A base da subsistência e do poder de autodeterminação do homem moderno, segundo Konrad Hesse404, “não é mais a propriedade privada em sentido tradicional, mas o próprio trabalho e o sistema previdenciário e assistencial instituído e gerido pelo Estado”.

No sistema infraconstitucional, o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964) assegura a todos o acesso à propriedade, desde que atendida a sua função social (artigos 2º, 12 e 13).405

Page 103

O Código Civil de 2002 vai demonstrar a preocupação com a função social em vários momentos, relacionando-a com o exercício do direito (artigo 187), com os contratos (artigo 421) e com o direito de propriedade (artigos 1.228 e 2.035)

Durante a 1ª Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (2002), foi aprovado o Enunciado n. 53, o qual prevê: “deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa”.

A expressão “função social da propriedade”, para Celso Antônio Bandeira de Mello406, possui dois sentidos distintos. Em primeiro lugar, a propriedade deve ser economicamente útil, produtiva, de maneira a satisfazer as necessidades sociais. Além disso, o uso da propriedade está vinculado a objetivos de justiça social, com uma sociedade mais igualitária ou menos desequilibrada, na qual a propriedade (acesso e uso) vai no sentido de proporcionar novas oportunidades, independentemente da utilização produtiva que porventura já tenha.

Nas palavras de Paulo Guilherme de Almeida407, a função social da propriedade consiste “[...] na observância de determinadas condições no exercício do direito de propriedade, no sentido de que este exercício considere os interesses da coletividade, que não podem ser prejudicados pelo titular do domínio”. Em outras palavras, a propriedade privada se “justifica desde que cumpra sua função social”.408

De forma objetiva, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) dispõe que a propriedade urbana cumpre a função social, quando atende às “exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas” (artigo 39).

O princípio da função social da propriedade, nas lições de José Diniz de Moraes409, apresenta-se de três formas distintas: a) como princípio geral de direito; b) como princípio politicamente conformador (ou princípio fundamental); e c) como princípio-garantia.

Page 104

Na forma de princípio geral de direito, a função social da propriedade possui eficácia autônoma e incidência direta no direito de propriedade, prescindindo de indicação legislativa.410

Como princípio politicamente conformador, a função social tem como endereço a atividade econômica e produtiva, ou seja, “norma propulsora da atividade legislativa e administrativa”, devendo ser objeto de atenção constante do legislador.411

Por fim, como princípio-garantia, o princípio constitucional em estudo “deixa de ser conceito aberto e de propulsão, para se concretizar na norma de forma determinada e objetiva em relação aos bens afetados (norma de concreção)”.412

José Diniz de Moraes413 assevera ainda que, em suas diversas manifestações, o princípio constitucional é dirigido não só ao proprietário, mas também ao não proprietário, ao magistrado, ao administrador e ao legislador.

No início dos anos 1980, Eros Roberto Grau414 aduziu que o princípio da função social e o direito de propriedade são compatibilizados pela ordem constitucional vigente (artigo 160, III, Emenda Constitucional n. 1/1969), denominando-o de “propriedade-função social”. Ao relacionar princípio da função social com a propriedade dos bens de produção, Eros Grau415

colocou que se tem a disciplina jurídica da propriedade desses bens, implementada sob o compromisso de sua destinação (trata-se da “função social da empresa”).

Ao explicitar a “função social ativa”, Eros Grau416 sustentou existir uma fonte de imposição de comportamento positivo, isto é, prestação de fazer, e não apenas de não fazer.

Ao associar a função social de propriedade, com os bens de produção, Fábio Konder Comparato417 ensina que: “Constitui função legítima da propriedade privada, tradicionalmente, prover o indivíduo e sua família dos recursos necessários ao atendimento...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT