Smart contracts, -autotutela- e tutela jurisdicional

AutorEduardo Talamini e André Guskow Cardoso
Páginas163-211
SMART CONTRACTS, “AUTOTUTELA”
E TUTELA JURISDICIONAL
Eduardo Talamini
Livre-docente, Doutor e Mestre (USP). Professor Associado (UFPR). Advogado. Sócio
de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini – Soc. de Advogados.
André Guskow Cardoso
Mestre em direito do Estado pela UFPR. Advogado. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira &
Talamini – Soc. de Advogados. Membro da Comissão de Inovação e Gestão da OAB/PR.
1. INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica propicia novas formas de relacionamento entre as pes-
soas, organizações e entidades. O uso difundido de meios de comunicação instantâ-
neos, de intercâmbio de dados e o amplo acesso à infraestrutura de internet acarreta
mudanças nos paradigmas tradicionais das relações obrigacionais. Basta verif‌icar a
realidade das compras e contratações online. Antes relegadas à negociação de produ-
tos e serviços mais simples, essas contratações atualmente abarcam as mais diversas
categorias de produtos e serviços, independentemente de seu valor ou localização1.
Não há dúvida de que a tecnologia propicia alteração signif‌icativa nos modos
tradicionais de contratação e estabelecimento de obrigações. No atual estágio de
evolução tecnológica, que se costuma denominar de quarta revolução industrial, o
papel da tecnologia nas relações obrigacionais se amplia2. Além da ampliação da
virtualização das contratações, que passam a ser feitas com recurso a plataformas
tecnológicas, tem-se também a possibilidade de automação da execução contratual.
A automação das relações negociais e obrigacionais relaciona-se à temática dos
contratos inteligentes ou smart contracts. Os smart contracts envolvem a utilização
de código de programação que permite que um determinado arranjo obrigacional
seja executado de forma automatizada e sem intervenção humana. A utilização da
1. A pandemia de COVID-19 foi um catalisador dessa tendência. As medidas de afastamento social e de restri-
ções ao funcionamento físico e presencial da economia, propiciou a ampliação do uso das compras online e
do trabalho remoto em geral. As relações e contatos comerciais e prof‌issionais passam a ser feitas de modo
virtual, valendo-se de recursos tecnológicos que antes eram usados apenas para outras f‌inalidades.
2. Segundo Klaus Schwab, as novas tecnologias têm o potencial de transformar os modos atualmente utilizados
para medir, calcular, organizar, agir e entregar. Constituem novos meios de criar valor para organizações e
cidadãos. Segundo o autor, “These emerging technologies are not merely incremental advances on today’s
digital technologies. Fourth Industrial Revolution Technologies are truly disruptive – they upend existing
ways of sensing, calculation, organizing, acting and delivering. They represent entirely new ways of creating
value for organizations and citizens. They will, over time, transform all the systems we take for granted
today – from the way we produce and transport goods and services, to the way we communicate, the way
we collaborate, and the way we experience the world around us” (SCHWAB, Klaus. Shaping the Fourth
Industrial Revolution. Geneva: World Economic Forum, 2018. p. 106).
EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 163EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 163 04/11/2021 10:56:2204/11/2021 10:56:22
EDUARDO TALAMINI E ANDRÉ GUSKOW CARDOSO
164
tecnologia blockchain possibilita que esses contratos “traduzidos em código com-
putacional” agreguem, além da automatização da sua execução, as características
de imutabilidade e impossibilidade de impedir a execução do comando contido no
código obrigacional.
Esse novo panorama, ainda incipiente, tem o potencial de gerar vários questio-
namentos relativamente à estrutura jurídica das obrigações, bem como à tutela dos
direitos das partes envolvidas em tais arranjos automatizados.
O presente texto busca examinar e esclarecer algumas dessas questões. Serão
examinadas as principais características dos smart contracts e seu impacto sobre o
direito das obrigações estabelecidas nesses arranjos automatizados e sobre a respec-
tiva tutela material e jurisdicional.
2. OS SMART CONTRACTS
2.1 Origem
O conceito de smart contrats tem sua origem ainda na década de 1990. A noção
de que arranjos obrigacionais poderiam ser def‌inidos (escritos) em código com-
putacional, com a possibilidade de execução automática do previsto nesse código,
precede até mesmo o uso e desenvolvimento da tecnologia blockchain.
Nick Szabo é um dos precursores do estudo dos smart contracts. Para o autor a
ideia básica por trás dos smart contracts é a de que vários tipos de cláusula contratu-
al (como garantias, títulos, delimitação de direitos de propriedade etc.) podem ser
embutidas no hardware e software com os quais lidamos, de modo tal que o descum-
primento do contrato se torne muito custoso (às vezes de forma proibitiva) para a
parte que o descumprir. Szabo dá o exemplo de uma máquina automática de vendas
como uma espécie primitiva de smart contract3.
2.2 Conceito e fundamentos
O conceito de smart contract relaciona-se à utilização de código computacional,
registrado em determinada plataforma tecnológica, para a def‌inição de hipóteses que,
3. “The basic idea behind smart contracts is that many kinds of contractual clauses (such as collateral, bonding,
delineation of property rights etc.) can be embedded in the hardware and software we deal with, in such
a way as to make breach of contract expensive (if desired, sometimes prohibitively so) for the breacher. A
canonical real-life example, which we might consider to be the primitive ancestor of smart contracts, is
the humble vending machine. Within a limited amount of potential loss (the amount in the till should be
less than the cost of breaching the mechanism), the machine takes in coins, and via a simple mechanism,
which makes a freshman computer science problem in design with f‌inite automata, dispense change and
product according to the displayed price. The vending machine is a contract with bearer: anybody with coins
can participate in an exchange with the vendor. The lockbox and other security mechanisms protect the
stored coins and contents from attackers, suff‌iciently to allow prof‌itable deployment of vending machines
in a wide variety of areas” (SZABO, Nick. Formalizing and Securing Relationships on Public Networks.
First Monday, v. 2, n. 9, Chicago, 1997. Disponível em: https://f‌irstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/
view/548/469. Acesso em: 29 abr. 2021).
EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 164EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 164 04/11/2021 10:56:2204/11/2021 10:56:22
165
SMART CONTRACTS, “AUTOTUTELA” E TUTELA JURISDICIONAL
uma vez verif‌icadas, acarretam a execução automática de determinadas consequências
previamente estabelecidas no código.
Isso permite que sejam utilizados para o estabelecimento de relações obriga-
cionais simples ou complexas (embora com relação a essas últimas, a utilização de
smart contracts possa ser mais problemática, como será examinado mais adiante).
Conforme Shermin Voshmgir, smart contract é um ajuste autoexecutável pre-
visto em código computacional e gerenciado por uma rede de blockchain. O código
contém um conjunto de regras sob as quais as partes daquele smart contract ajus-
taram interagir entre si. Se e quando as regras predef‌inidas são atingidas, o ajuste é
automaticamente executado4.
Como reconhecido pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 1.613/2020,
“contratos inteligentes, ou smart contracts, são código-fonte em linguagem de pro-
gramação (scripts), que podem ser def‌inidos e auto executados em uma infraestrutura
de blockchain ou DLT. A def‌inição e execução de um contrato inteligente nestes
ambientes se dá sem a necessidade de intermediários”5.
2.3 Não tão inteligentes assim
A automação e autoexecutoriedade propiciada pelos smart contracts não signi-
f‌ica que se esteja diante de contratos verdadeiramente inteligentes. Pelo contrário,
as condições e comandos estabelecidos em código envolvem lógica relativamente
simples e direta (“se verif‌icada essa condição, então executar este comando”). Os
comandos são executados de forma automática uma vez verif‌icadas as condições
estabelecidas para tanto pelo código computacional.
Não se pretende af‌irmar, com isso, que a utilização de algoritmos e códigos
complexos não seja possível no âmbito dos smart contracts. É viável, sob o ponto de
vista técnico, def‌inir smart contracts estruturados em códigos, algoritmos e def‌ini-
ções complexos.
A velocidade de execução dos comandos e a automação que são possíveis pelo
uso da tecnologia não se comparam com o ritmo humano de verif‌icação das con-
dições e execução de comandos obrigacionais6. Mas seu funcionamento sempre
remeterá a uma lógica própria dos sistemas informatizados, baseados na verif‌icação
4. “A smart contract is a self-enforcing agreement embedded in computer code managed by a blockchain. The
code contains a set of rules under which the parties of that smart contract agree to interact with each other.
If and when the predef‌ined rules are met, the agreement is automatically enforced” (VOSHMGIR, Shermin.
Token Economy. How Blockchains and smart contracts revolutionize the economy. Berlim: Amazon Media,
2019. p. 88).
5. TCU, Acórdão 1613/2020, Plenário, TC 031.044/2019-0, rel. Min. Aroldo Cedraz, j. 24.6.2020. Disponível
em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br. Acesso em: 16 jan. 2021.
6. Por isso mesmo, a utilização dos smart contracts em determinados setores e atividades, como no caso de
negociação de ações e valores mobiliários, no mercado f‌inanceiro, instrumento e meios de pagamento e no
âmbito da chamada DeFi – Decentralized Finance é uma das mais promissoras – e já vem sendo adotada há
algum tempo.
EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 165EBOOK COLETANEA EXECUCAO.indb 165 04/11/2021 10:56:2204/11/2021 10:56:22

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT