A soberania usurpada e as ilusões de democracia
| Autor | Luis Manuel Fonseca Pires |
| Páginas | 53-101 |
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Capítulo II
A SOBERANIA USURPADA E AS ILUSÕES
DE DEMOCRACIA
O fim da Idade Moderna é definido pela historiografia com o
advento da Revolução Francesa, em 1789. De lá aos dias de hoje, para
a História, encontramo-nos na Idade Contemporânea. De tantas dife-
renças em todos os âmbitos da vida em culturas tão variadas que marcam
os séculos XIX, XX e início do XXI, o que há de comum e justifica o
encontro de formações sociais tão distintas sob a mesma identidade é o
modo de produção econômica que predominantemente se impôs, o capita-
lismo (i) e a forma sócio-jurídico-política com ele alinhada, o Estado de
Direito (ii).
O modo de produção que se desenvolveu acentuadamente no século
XIX é o capitalista. Se havia capitalismo comercial desde o Renascimento,
prevalecia o modo de produção servil (suseranos, vassalos e servos), próprio
do feudalismo, constituinte de uma sociedade estamental (dividida em
ordens: nobres, clero e povo), distinta da sociedade censitária típica do
capitalismo (dividida em classes), e ainda assim o capitalismo da Idade
Moderna era apenas o comercial, diverso do que se assomaria adiante,
também por influência da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra no
final do século XVIII, o capitalismo industrial – um dos fatores
determinantes à mudança de regime sócio-jurídico-político porque se
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LUIS MANUEL FONSECA PIRES
impôs a necessidade da igualdade formal ao desenvolvimento da burguesia.
A Revolução Francesa tornou-se referência simbólica do fim dos
privilégios (da nobreza e do clero), da sociedade estamental e do declínio
acelerado do modo de produção servil – o historiador inglês Richard
Evans lembra que, em diversos países, a servidão persistiu pelo século
XIX: nos reinos de Hanover e da Saxônia até os idos de 1830, na Áustria,
Croácia e Hungria até por volta de 1848, Rússia e Polônia até os anos
de 1860, Bulgária chegou em 1880, Islândia até 1894.58
Para dar conta do modo de produção capitalista (comercial e
industrial), que ocupava a cena das relações econômicas da sociedade, era
preciso uma nova organização sócio-jurídico-político, o que se apresentou
por um modelo que depois se reconheceria por Estado de Direito. A partir
de então, sob as mais distintas formas – Liberal, Social, Social Democrático,
Neoliberal –, tornou-se o horizonte do progresso das nações – mesmo os
regimes autoritários que surgiriam posteriormente em geral se afirmariam,
como se fosse um cartão de visitas, “Estados de Direito”. O Direito e a
narrativa do “império da lei” tornaram-se hegemônicos.
Estado de Direito (forma sócio-jurídico-político) e capitalismo
(modo de produção econômica) compõem a identidade da Idade
Contemporânea. A Revolução Francesa é uma referência simbólica porque
os Estados Unidos haviam se apresentado sob esse modelo treze anos antes,
em 1776, quando as colônias inglesas na América do Norte declararam
sua independência – mas as ideias eram europeias –, e a Inglaterra superou
o absolutismo ainda no fim do século XVII, com a coroação do rei
Guilherme III, após o término da Revolução Gloriosa e a Declaração de
Direitos (Bill of Rights) em 1689, início da monarquia parlamentar.
A própria França, em sua história, não se resume à Revolução de
1789. A efetiva superação do absolutismo apenas se concluiu em 1830.
Em 1789, após a queda da Bastilha em 14 de julho e entre a noite do dia
4 e o dia seguinte, 5 de agosto, na chamada “Noite do Grande Medo”,
os revolucionários anunciaram o fim dos privilégios – e a perseguição e
58 EVANS, Richard J. A luta pelo poder: Europa 1815-1914. Trad. Pedro Elói Duarte.
Lisboa: Edições 70, 2018, p. 137.
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CAPÍTULO II - A SOBERANIA USURPADA E AS ILUSÕES...
morte aos nobres. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
foi promulgada em 26 de agosto para reafirmar o fim das distinções de
nascimento (todos nascem livres e iguais em direito) – homens franceses,
não mulheres nem estrangeiros. Manteve-se o rei, bastava uma monarquia
constitucional – e parte da nobreza emigrou para outros países. Mas, por
causa da tentativa de fuga da família real para a Áustria, em 20 de junho
de 1791, e a consequente invasão Austro-Prussiana em abril de 1792,
em defesa do rei Luis XVI, os jacobinos declararam a “Comuna
Insurrecional de Paris”, um governo provisório contra os invasores, e
no desdobramento dos acontecimentos, em 20 de setembro, proclamou-
se a República. O rei e a rainha, Maria Antonieta, seriam executados
no ano seguinte. A reação girondina aconteceu em 1794 – após a morte
dos líderes jacobinos – para formar um novo governo, o Diretório
(1794-1799), que se manteve no poder até 10 de novembro de 1799,
quando Napoleão Bonaparte, por um golpe de Estado, passou a liderar
a França, até 1815 (apesar de um breve período exilado do poder em
1814). O Congresso de Viena, realizado em 1815, sob o comando do
Reino Unido, Rússia, Prússia, Áustria e Estados Pontifícios, reestabeleceu
as monarquias absolutistas existentes antes da Revolução Francesa, o que
significou a volta ao poder dos Bourbons na França, os Bragança em
Portugal – mas o Reino Unido manteve-se como uma monarquia
parlamentarista. Formou-se a “Santa Aliança”, uma aliança militar
liderada pela Rússia contra a expansão de ideias liberais na Europa. A
restauração da monarquia Bourbon restabeleceu o absolutismo. Primeiro
com Luís XVIII e, ao morrer, em 1824, continuou com o rei Carlos X
até 1830, quando se deu, entre 27 e 29 de julho, a Revolução de 1830
(também denominada de “Três Dias de Glória”, ou “Jornadas Gloriosas”,
ou “Revolução das Barricadas”). A burguesia novamente liderou a
revolução, tal como havia feito em 1789, e outra vez contou com o
apoio das camadas mais populares, e tornou a declarar o fim do princípio
da legitimidade das monarquias absolutistas. Apenas em 1830, portanto,
encerrou-se na França o Estado absolutista com o início da monarquia
constitucional liderada pelo rei Luís Felipe de Orleans, o “Rei burguês”.
Em 2 de julho de 1788, cerca de um ano antes do marco consi-
derado como deflagrada a Revolução Francesa (14 de julho de 1789),
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