Sobrejornada e meio ambiente do trabalho: princípio da insignificância ou bagatela?

AutorGisele Santos Fernandes Góes
Páginas189-196

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Gisele Santos Fernandes Góes *

Introdução

O Poder Judiciário se afirma na crescente realização dos direitos fundamentais e mais especificamente, a seara trabalhista deve cumprir esse papel de efetivação dos direitos sociais.

A Justiça do Trabalho lida diariamente com a dimensão jusfundamental do direito ao trabalho digno que somente pode ser exercitado num meio ambiente hígido e saudável.

Portanto, não existe espaço interpretativo na relação capital e trabalho em prol da propriedade privada e/ou pública em detrimento do ser humano que labora, tornando-o “coisificado” e como alvo de uma mera relação quantitativa, de porte estatístico voltada ao lucro empresarial. Impõe-se, nesse direcionamento, definição de meio ambiente do trabalho na judicialização das demandas, sejam individuais, sejam coletivas, norteada por visão interdisciplinar, levando em consideração aspectos psicológicos, antropológicos, sociológicos etc. , e não somente os de alcance técnico-jurídico para se galgar verdadeiramente a inteireza dos problemas que desafiam os magistrados nas demandas judiciais. Não existe bagatela em se tratando de meio ambiente de trabalho.

Função jurisdicional laboral e tutela individual de projeção coletiva e tutela coletiva — necessidade de proteção

Hodiernamente, clama-se do Poder Judiciário o enfrentamento das questões atinentes aos direitos fundamentais. O exercício da função jurisdicional adquiriu um novel contorno.1

A jurisdição estava assentada sob o conceito clássico de juris + dictio, dizer o direito no caso concreto, segundo os moldes da teoria clássica de caráter declaratório, com esteio no magistério de Giuseppe Chiovenda.2

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Sob esse modelo, sempre predominou a tutela cognitiva, cuja ratio era conhecer e julgar e não logo efetivar — realizar. O conflito restaria solucionado com o manuseio do processo como instrumento para se atingir a paz social.3

O paradigma desenhado foi estruturado num contexto histórico totalmente definido e de roupagem liberal-individualista.

Com as relações sociais a cada dia mais complexas, inovações tecnológicas, especializações de empresas e funções, repartição de atribuições, terceirização, quarteirização, segmentos de multinacionais fortes no cenário econômico pá-trio, emergiram novas necessidades sociais. Esses anseios não se centralizam em um indivíduo, e sim transbordam comunidades inteiras, cidades, grupos, categorias, estados, países, podendo-se afirmar drasticamente que a escala não é mais simplesmente aritmética, mas de porte geométrico.

Do paradigma liberal, focado no indivíduo, buscamos algo maior, dimensionado no coletivo ou no indivíduo, porém, analisando a sua projeção coletiva como parte de um todo, numa visão de sistema.4

A função jurisdicional laboral atual está numa tríade inseparável, qual seja, conhecer — assegurar — efetivar no âmbito do paradigma de proteção social, no balanceamento dos interesses em jogo, decidindo no sopesamento pelos direitos fundamentais, especialmente os que envolvem o meio ambiente laboral digno e saudável.

O trinômio citado para a Justiça do Trabalho se condensa e irradia na perspectiva do neoprocessualismo que nada mais é do que a exteriorização do neoconstitucionalismo como face de concreção dos direitos fundamentais pelo processo que tenha resultados justos.5

Os problemas existem no mundo do trabalho e precisam ser avaliados, primordialmente, sob a tutela do garantismo6, nos níveis de segurança e saúde do trabalhador e, na ótica da primazia do acertamento7, portanto, como uma técnica normativa direcionada a assegurar a máxima correspondência entre texto — regras e realização dos direitos fundamentais.

O trabalhador corre riscos de doenças psicológicas e orgânicas, muitas vezes perde a sua vida e não há o que se fazer no Judiciário? Basta a ameaça, que se deve agir via tutela preventiva no Judiciário trabalhista, dentro desse novo contexto que se apresenta a tutela jurisdicional no meio ambiente laboral.

O obreiro só tem seu salário como saldo positivo e, do outro lado, como parcela negativa, pode sofrer todo e qualquer risco na empresa, numa insegurança social total.8

Por isso, é imprescindível o Poder Judiciário trabalhista na compreensão do meio ambiente laboral e no ideal de efetivação dos direitos fundamentais sociais, exponencialmente, o do trabalho decente e em condições de dignidade.

Meio ambiente: alguns apontamentos e meio ambiente do trabalho: dimensões

O termo meio ambiente é um macrobem (bem público de uso comum). E, como acentua Antonio Herman V. Benjamin, “tal bem, sem seu sentido macro, tem um grande conteúdo de abstração, ao contrário dos elementos que o compõem que, via de regra, são bastante concretos (uma floresta, uma espécie rara, um manancial).”9

Desse modo, o primeiro obstáculo a ser encarado pelo operador do direito no tratamento do meio ambiente reside na circunstância de nos depararmos com um conceito ou termo jurídico indeterminado, exteriorizando uma definição fluida, carregada de múltiplos valores e experiências.10

O texto normativo matriz para se explorar a proteção ambiental é, inquestionavelmente, a Constituição de 1988 (art. 225). Dela provêm as balizas para competência, níveis de responsabilidade por dano ao meio ambiente e, com efeito, auxilia na penosa tarefa do intérprete.

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Todavia, não basta a Constituição, sendo necessários outros textos normativos como as Declarações de Estocolmo 1972, do Rio de Janeiro de 1992 à guisa de ilustração, e a própria legislação interna (Lei n. 6.938/81), posto que enfatizam o rol de normas-princípio, os quais serão os vetores de toda compreensão do fenômeno ambiental.

Os princípios que devem ser destacados são: prevenção ou precaução; poluidor-pagador ou da responsabilização; e os da cooperação e desenvolvimento sustentado. Pode-se com segurança infirmar que a prevenção é o guia maior de todos os outros raciocínios, em virtude de que, se o agente poluidor toma medidas “antes” de qualquer evento danoso ou com potencial de lesão, não haverá responsabilidade de cunho reparatório e/ou indenizatório e estará exercendo a cooperação e desenvolvimento dentro de perspectiva de equilíbrio.

A tutela do meio ambiente veio de modo tardio na Constituição brasileira de 1988, posto que, por exemplo, na Espanha, desde a Constituição que data de 1978 (art. 45) já se encontrava prescrita a conservação, uso racional e indispensável solidariedade coletiva em matéria de meio ambiente.11

A tendência, sem sombra de dúvida, é mundial no caminho do meio ambiente preservado para as gerações presentes e futuras.12

Logicamente, não se pode alijar o meio ambiente do trabalho dessa realidade. A relação jurídica laboral está assentada em um local “sadio”, onde os trabalhadores prestam seus serviços com dignidade, em que os detentores da força econômica fornecem os meios de produção e infraestrutura. Não pode haver dano à saúde física e psicológica do trabalhador.

É vital frisar que o local da prestação dos serviços não constitui o único critério de avaliação do meio ambiente de trabalho, pois existem outros, tais como a remuneração, jornada de trabalho e seus turnos, possibilidade de ascensão na carreira etc.

Abona-se o conceito amplo de meio ambiente do trabalho com Monica Maria Lauzid de Moraes, para quem “é a interação do local de trabalho ou onde quer que o empregado esteja em função da atividade e/ou à disposição do empregador, com os elementos físicos, químicos e biológicos nele presentes, incluindo toda sua infraestrutura (instrumentos de trabalho), bem como o complexo de relações humanas na empresa e todo o processo produtivo que caracteriza a atividade econômica de fins lucrativos.”13

Meio ambiente do trabalho e a questão da sobrejornada

Pelos contornos apresentados, o meio ambiente do trabalho é um dos fatores de configuração do trabalho decente, pois como define a Organização Internacional do Trabalho é “aquele desenvolvido em ocupação produtiva, justamente remunerada e que se exerce em condições de liberdade, equidade, seguridade e respeito à dignidade humana.”

Nesse panorama, a Organização Internacional do Trabalho editou as Convenções n. 155 sobre seguridade e saúde dos trabalhadores e a 161 sobre serviços de saúde no trabalho. E, por meio do programa safework de 2003, a citada entidade promoveu um debate de trabalho sustentável, sendo que as linhas mestras da Convenção n. 187 sobre saúde e segurança no trabalho (SST) foram fomentadas a partir do programa mencionado e que tentaram disseminar a cultura da prevenção à adoção de práticas positivas no meio ambiente de trabalho.

No Brasil, a tendência a respeito da cultura de prevenção está concentrada no fenômeno do uso do epi/epc, para evitar o acidente do trabalho, no rumo da forma clássica de abordagem, ou seja, unicausal, no tratamento comporta-mental do ato inseguro, nas exclusivas visões da culpa e da inibição da conduta centralizadas no indivíduo. O acidente de trabalho, contemporaneamente, deve ser avaliado sob uma natureza multicausal, por conseguinte, numa cadeia de eventos, da distinção entre trabalho real e prescrito, prevenção com implementação de mecanismos de controle dos riscos organizacionais e na variabilidade do ambiente.14

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Elegeu-se a sobrejornada ou jornada excessiva/exaustiva, para se refletir sobre os aspectos do meio ambiente do trabalho, pois ela nunca esteve “sob as luzes da ribalta”. Devem ser feitos os seguintes questionamentos:

  1. A sobrejornada é prevista em lei e, por isso, pode ser habitual?

  2. A sobrejornada não gera...

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