Vinculação da sociedade: Análise crítica do art. 1.015 Do código civil

AutorMarcelo Vieira Von Adamek - Erasmo Valladão A. E N. França
Páginas30-45

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1. Introdução

O tema da vinculação da sociedade envolve, essencialmente, a análise do modo pelo qual a sociedade se vincula ou se obriga negocialmente perante terceiros; consiste em definir por atos negociais de quem fica a sociedade obrigada perante terceiros e que requisitos devem esses atos satisfazer, para que sejam então imputados à sociedade.1 Conquanto aparentemente simples, o tema apresenta sutilezas, geradoras de problemas teóricos e práticos delicados. Além disso, a sua atualidade é incontestável, na medida em que o vigente Código Civil inaugurou, em seu art. 1.015, regime bastante diverso daquele outrora vigente entre nós e, o que é mais lamentável, positivou autêntico retrocesso em comparação àquilo que, de há muito, prevalece noutros sistemas jurídicos.

Diz-se que, numa primeira abordagem, o problema parece ser simples, pois, à pergunta sobre por atos de quem fica a sociedade obrigada, a resposta intuitiva parece ser a de que ela se vincula por atos de seus administradores (CC, art. 47). Sucede, porém, que uma resposta assim apresentada seria excessivamente ampla e imprecisa, pois, à toda evidência, não é qualquer órgão, mesmo de administração, que pode, de conformidade com a lei, vincular a sociedade perante terceiros: só os chamados órgãos representativos, isto é, órgãos com poderes de representação - com poderes para manifestar perante terceiros uma vontade juridicamente imputável à pessoa coletiva - é que podem vincular externamente a sociedade.2

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2. Órgãos representativos

O funcionamento eficiente e concatenado de qualquer ente coletivo tem, como pressuposto indeclinável, a distribuição, específica e ordenada, de diferentes funções, deveres, responsabilidades, direitos e poderes, dentre várias células ou núcleos, dotados, assim, de atribuições próprias e necessárias, tanto para a formação da vontade coletiva, como para a sua ulterior exteriorização e execução, bem como para a fiscalização de seu cumprimento.

Estas células ou centros de atribuições de poderes integrantes da sociedade são designados pela doutrina e, em alguns casos, pelo próprio legislador, órgãos sociais. Órgão é, portanto, o centro de imputação de poderes e deveres funcionais exercidos, por um ou mais indivíduos que nele estejam investidos, para formar e manifestar a vontade juridicamente imputável à pessoa jurídica; ou, ainda, "órgão é o indivíduo (ou grupo de indivíduos), enquanto age para o desenvolvimento de um interesse coletivo, ou seja, enquanto cumpre uma função de grupo".3 Em última análise, a noção de órgão é uma decorrência lógica do conceito de interesse coletivo, que explica a formação e a organização de qualquer grupo social, do mais simples ao mais complexo.

O órgão pode ser integrado por uma ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, mas ele não é a pessoa investida no cargo4 e sim, concretamente, é o próprio cargo ou centro de imputação de poderes funcionais. Note-se, todavia, que a vontade dos membros dos órgãos é juridicamente imputada à sociedade, mas a lei não deixa de reconhecer que tal vontade é simultaneamente imputada aos próprios membros dos órgãos, de tal modo a se poder responsabilizar estes pelos seus atos (CC, art. 1.016; e LSA, art. 158).5

O órgão é elemento integrante e necessário do ente coletivo; por isso, entre órgão e ente coletivo não se estabelecem relações jurídicas.6 Além disso, enquanto parte integrante, inseparável e necessária que é do ente coletivo, o órgão não tem personalidade jurídica própria nem capacidade para a prática de atos jurídicos; quem as tem, eventualmente (e não necessariamente7), será sempre o próprio ente coletivo. A repartição de competências entre órgãos tem caráter meramente instrumental, sem modificar a sua titularidade.

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Sob o prisma da competência, os órgãos podem ser divididos em órgãos externos (ou representativos), predispostos a exteriorizar a vontade coletiva a terceiros e a praticar os atos jurídicos e materiais que afetam as relações da sociedade perante terceiros, e órgãos internos, que agem no âmbito das relações entre a pessoa coletiva e os seus membros e/ou órgãos, sem entrar em contato com terceiros, estranhos à sociedade.8 Qualquer pessoa jurídica deve ter, ao menos, um órgão externo ou representativo.

Em cada um dos tipos societários, por isso, a lei estabeleceu a qual órgão cabe o poder de representação (CC, arts. 989, 991, parágrafo único, 1.022, 1.042, 1.047, 1.060; e 1.091; e LSA, art. 138, § 1o).

"Não basta, porém", segundo registrou Luís Brito Correia, "que a lei diga que certo tipo de sociedade é representada - ou pode ser representada - por certo órgão. É necessário que a estatuição legal seja completada pelo contrato de sociedade, no sentido de uma das alternativas possíveis; e, sobretudo, é necessário que sejam designadas, por um dos modos previstos na lei ou no contrato, as pessoas concretas que irão exercer a função de representação orgânica da sociedade".9

"O problema que verdadeiramente interessa abordar", prossegue ainda Luís Brito Correia, "é este: será que a sociedade fica negocialmente vinculada por quaisquer atos praticados pelas pessoas físicas designadas como titulares ou membros dos seus órgãos representativos? Ou só fica vinculada por atos com certos requisitos -e quais?"10 A estas questões, o art. 1.015, do Código Civil - que se situa dentro do capítulo reservado às sociedades simples, mas que, por via remissiva, se aplica às demais sociedades personificadas - pretendeu dar solução e, ao fazê-lo, criou regime jurídico anacrônico, como se verá da sua análise nas linhas seguintes.

3. Análise do art 1.015 do CC

O art. 1.015 do Código Civil possui vários comandos.11 Na cabeça, trata dos poderes dos administradores para a prática dos atos de gestão e, ainda, outros atos que, por serem extraordinários, dependem de autorização dos sócios. No parágrafo único, refere conjuntamente (e, portanto, com pouco apuro técnico) aos atos praticados em desacordo com as restrições convencionais aos poderes dos administradores (atos com excesso de poder em sentido es-

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trito12) e os atos praticados fora do objeto social (atos ultra vires societatis13). A confusão, aí incorrida pelo legislador e bastante freqüente na prática, de tratar conjunta-mente destas distintas categorias, tem contribuído largamente para a difusão de equívocos interpretativos. É que os atos de órgão da sociedade, agindo dentro dos limites do objeto social mas em infração a restrição, legal ou convencional de poderes, são atos praticados com excesso de poderes; já os atos praticados em nome da sociedade mas fora do âmbito de seu objeto social são atos praticados além das forças da sociedade, isto é, atos para os quais, de acordo com a doutrina tradicional, ela não teria capacidade.14 Na primeira situação, a falta é de poder do órgão (administrador); na segunda, de capacidade da própria so-ciedade.15 Por isso, e ainda quando o legislador lhes tenha reservado soluções jurídicas unitárias, não conviria misturá-los.

Dito isso, vejamos o alcance das regras do art. 1.015 do Código Civil.

3. 1 Atos de gestão (ou de execução do objeto social)

"No silêncio do contrato", preceitua o caput do art. 1.015 do CC, "os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir". Significa dizer que, salvo restrições previstas no pacto social (contrato ou estatuto social), os administradores estão legitimados a praticar todos os atos necessários à execução do objeto social (atividade econômica a cuja exploração se dedique a sociedade, segundo o disposto no art. 981 do Código Civil). Destarte, o objeto social, simultaneamente, limita a liberdade de gestão dos administradores epreordena a sua atuação.16

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O objeto social designa uma atividade e esta consiste sempre na prática coordenada de atos (englobando atos e negócios jurídicos, e simples atos materiais) imputáveis a uma mesma pessoa e organizados em vista de umobjetivo comum.17 Trata-se, porém, de elemento aberto, dependente de concreção à luz do caso específico, sem que seja possível pretender abstratamente circunscrever, por antecipação, quais atos se enquadram ou não no âmbito do objeto social, isto é, quais atos se consideram ou não atos regulares de gestão.18 Não há um critério apto a exprimir, a priori, um juízo de inerência ou não inerência de um determinado ato ao objeto social enunciado no pacto social19 e, justamente daí, resultam as dificuldades adiante tratadas sobre os atos ultra vires societatis.

Na mesma disposição, o legislador pátrio houve por bem apontar, no caput do art. 1.015 do CC, atos e operações extraordinários (de venda ou oneração de imóveis), para os quais exigiu a aprovação dos sócios ou do órgão deliberativo que os congregue, salvo se tais atos integrarem o próprio objeto social, hipótese em que, para a sua prática, os administradores pres-cindem de autorização adicional dos sócios.

O legislador se referiu apenas a "oneração ou venda de bens imóveis" e, à evidência, poderia ter se reportado a outros atos:20 trata-se de opção de política legislativa na definição de limitações legais. Nada impede, contudo, que, no pacto social (contrato ou estatuto social), outras restrições convencionais à prática de determinados atos sejam previstas, se assim o desejarem os sócios e desde que tais restrições e condicionamentos sejam compatíveis com a estrutura societária21 (com o que se pretende aqui assinalar não ser possível, através da inserção de restrições e condicionamentos convencionais, chegar ao ponto extremo de, em termos práticos,

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