A sociedade civil contra a popula

AutorHolmes, Pablo
  1. Introdução

    Neste artigo, aponto, de forma esquemática, três jovens tradições interpretativas acerca da Constituição de 1988 e realizo uma reflexão crítica sobre as teorias hegemônicas no debate constitucional brasileiro. A primeira dessas tradições, dominante na academia jurídica, é a Teoria Constitucional da Efetividade (TCE); a segunda é a Teoria da Constituição Dirigente (TCD); e uma terceira, de inspiração sociológica e com formulação um pouco mais plural, chamo de Teoria Crítica da Constituição (TCC), a partir da qual proponho um debate construtivo.

    Depois de apresentá-las, eu apresento um olhar desconstrutivo para a forma como as teorias constitucionais brasileiras dão prosseguimento à tradição política europeia sobre o direito e o Estado. Com isso, penso que é possível observar um ponto cego em nossa tradição constitucional: uma relativa incapacidade das distinções teóricas utilizadas em relação ao caráter estruturalmente assimétrico da ordem constitucional em um contexto pós-colonial como o brasileiro. Nesse sentido, uso a ideia de desconstrução como Luhmann, ou seja, como uma forma de observação de segunda ordem: uma observação das distinções usadas por um observador (uma teoria, por exemplo), para observar a realidade (LUHMANN, 1993). No nosso caso, observo a observação da realidade constitucional pelas teorias constitucionais de 1988.

    Para tanto, proponho que observemos o sistema político a partir de uma distinção diferente da distinção entre Estado e Sociedade Civil, que é estruturante para o pensamento político moderno e central nas teorias constitucionais hegemônicas no Brasil. Acompanhando a reflexão do teórico político indiano Partha Chatterjee (1993, 1997, 2004, 2011), proponho que compreendamos o complexo constitucional (Estado+Sociedade Civil) como um mesmo corpo político ao qual deve ser acrescentada uma outra distinção: Estado+Sociedade Civil/População. As implicações teóricas dessa proposta não são desprezíveis. De acordo com Chatterjee, em contextos pós-coloniais, o corpo político constitucional (Estado+Sociedade Civil) funciona como uma estrutura oposta à figura política da população, a qual funciona apenas como objeto passivo de processos de modernização: como um corpo político que serve de matéria prima para o "desenvolvimento" e se organiza como uma "sociedade política".

    O exercício desconstrutivo que proponho não consiste em uma tentativa de superar as três interpretações dominantes tampouco se trata de um trabalho de história constitucional, mas de um exercício de teoria constitucional e teoria política. A partir de uma teoria constitucional informada criticamente, iremos dialogar com a tradição da teoria constitucional brasileira, tal como elaborada por juristas. Nesse sentido, esse texto se coloca na tradição das teorias críticas da constituição (TCC).

  2. Três teorias da Constituição Federal de 1988

    Teorias constitucionais não são apenas o resultado de exercício acadêmico sem importância prática. Em um primeiro nível, a teoria constitucional é uma forma de autodescrição profissional das formas de organização do sistema jurídico e do sistema político (HOLMES, 2011). Nesse sentido, ela é um artefato do sistema científico construído por teóricos do direito e por cientistas políticos em sua compreensão de como funciona objetivamente a relação entre poder, direito, dinheiro e conhecimento em uma determinada sociedade (HOLMES, 2011).

    Contudo, ao realizar esse tipo de descrição, teorias constitucionais têm implicações que vão além da comunidade científica e de seu papel de artefato do sistema científico. Ao descrever o estado de coisas das formas de comunicação entre poder, direito, dinheiro e conhecimento em um determinado sistema político, as teorias constitucionais constituem uma epistemologia política que tem consequências práticas relevantes para os atores sociais que operam e tomam decisões no interior do próprio sistema. Em outras palavras, as teorias constitucionais servem não só para que a ciência compreenda o funcionamento da relação entre política e direito, mas, ao fazê-lo, elas orientam também a compreensão que têm os atores sociais de seus respectivos campos de ação. A descrição teórica opera não apenas na cognição de cientistas sociais, mas também na de atores políticos e jurídicos quando eles vão agir em relação às instituições. Como epistemologia política, as teorias constitucionais auxiliam os atores em diversos níveis a compreender as condições e consequências de suas próprias ações. (1) Por exemplo, possibilitando com que eles antecipem como outros atores tendem a se comportar em determinadas situações e diante de suas próprias decisões.

    Não é difícil perceber que os governos brasileiros desde 1988 usaram todo o tempo alguma teoria constitucional para tomar decisões políticas, ao atuar frente ao parlamento ou ao Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, não seria contraintuitivo pensar que a teoria do "presidencialismo de coalizão" orienta a atuação da Presidência da República ao longo das últimas décadas, fazendo com que presidentes não só intuitivamente formem seus gabinetes para satisfazer a base de apoio, mas tentem antecipar, com base na própria teoria, qual formação de gabinetes é necessária para a governabilidade. O mesmo ocorre em relação aos quadros das teorias neoconstitucionalistas sobre o papel das Cortes supremas e constitucionais. A alteração da compreensão do papel que devem ter as cortes passou a orientar o conjunto de expectativas dos atores no sistema jurídico e no sistema político, estimulando em parte o recurso às cortes como forma de resolução de conflitos políticos e a forma de deliberação dessas cortes. Pode-se argumentar, com razão, que a teoria apenas descreve alterações reais que tiveram lugar nas estruturas sociais e aumentaram a complexidade das demandas levadas às cortes (NOBRE; RODRIGUEZ, 2011). Ainda assim, descrições distintas do problema no nível das teorias constitucionais têm efeitos sobre a atuação desses atores (STÄHELI, 1998; HOLMES, 2011). Como aponta, entre outros, Stäheli, as semânticas descritivas de sistemas sociais têm impacto na forma como eles operam (STÄHELI, 1998; STICHWEH, 2000; HOLMES, 2018), algo que ele verificou empiricamente no caso do sistema econômico(STÄHELI, 2007). (2)

    Para compreender o modo de funcionamento de um determinado sistema político é fundamental saber como esse sistema político é descrito e compreendido por suas principais teorias constitucionais. Em outras palavras, é crucial entender como uma constituição é observada, por quem ela é observada, desde que pontos de vista, a partir de qual gramática institucional. Em suma: quais são as distinções que a observadora utiliza para observar o que ela observa?

    O que faço nesse artigo é observar as principais teorias da ordem constitucional brasileira de 1988. E, para isso, meu objeto de análise são apenas teorias constitucionais formuladas basicamente por constitucionalistas e juristas. Pois são essas as teorias que orientam simbolicamente os atores do sistema de justiça, com grande impacto nos processos legislativos e constitucionais em vários níveis de nosso sistema. Poderia ter ampliado meu escopo de observação para outras disciplinas, como a teoria política ou mesmo a ciência econômica. Certamente haveria algumas diferenças importantes, em termos de vocabulário e forma de exposição, mas acredito que, em seu cerne, as teorias constitucionais no interior dessas disciplinas trabalham com um conjunto de distinções parecidas.

    2.1. A teoria constitucional da efetividade (TCE)

    A teoria constitucional da efetividade (TCE) é sem dúvida a leitura hegemônica sobre a constituição de 1988 no universo simbólico do direito brasileiro. E a força de sua gramática pode ser identificada no campo jurídico, na semântica dos meios de comunicação de massas e em outras disciplinas, como a ciência política. Segundo a TCE, a constituição de 1988 teria um caráter de ruptura histórica e institucional quase total com o passado político brasileiro. Nas palavras de um dos representantes mais importantes dessa tradição, "a constituição de 1988 foi o marco zero de um recomeço, da perspectiva de uma nova história" (BARROSO, 2008a, p. 329). Ela seria "o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito" (BARROSO, 2008b). A constituinte de 1988 teria estabelecido, um amplo catálogo de direitos fundamentais e, agora, a ordem democrática precisaria apenas se afirmar de forma definitiva. Ela precisaria ser "efetivada".

    Claro, para a TCE, a CF de 1988 não resolveu os problemas brasileiros como num passe de mágica. O Brasil ainda apresentaria um crônico "déficit de modernização", uma sociedade atrasada, pouco educada e clientelista; uma política corrupta, dominada por partidos oligárquicos e pouco ideológicos. O Estado também seria ineficiente e patrimonialista, controlado por corporações familistas e pré-modernas (BARROSO, 2008a, p. 327). As instituições públicas seriam em grande medida dominadas pelos donos do poder, herdeiros do patrimonialismo ibérico (LYNCH & MENDONÇA, 2017), e portanto um entrave à efetivação da Constituição. Ao mesmo tempo, a sociedade civil, que deveria ser o fundamento da ordem constitucional liberal, seria frágil e desestruturada.

    Essa ambiguidade entre modernidade e atraso, típicas do Brasil do século XX, teriam na constituição de 1988 um ponto de possível ruptura. A CF88 seria a expressão de uma sociedade civil nascente, que se expressou na Constituinte, e estabeleceu as fundações do que seriam as condições de superação do atraso: um marco modernizante na direção da afirmação do direito e da estabilização democrática. E a diferença estrutural entre a sociedade atrasada e a constituição liberal moderna deveria ser preenchida por uma incansável "promoção de efetividade".

    O impacto da TCE no universo profissional do direito e no imaginário de seus...

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