A 'Sociedade Comercial do Mercosul': um projeto em pauta, uma conexão jurídica a definir

AutorGustavo Vieria da Costa Cerqueira
Páginas72-110
REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 166/167
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A “SOCIEDADE COMERCIAL DO MERCOSUL”:
UM PROJETO EM PAUTA,
UMA CONEXÃO JURÍDICA A DEFINIR
Proposição de um sistema de conexão
à luz do direito europeu das sociedades*
G V  C C
Introdução. I – A unicidade da conexão jurídica: a escolha da ruptura metodo-
lógica: A) A escolha da pluralidade de conexões na Europa: 1. As hesitações
passadas entre pluralidade e unicidade; 2. A conexão plural em movimento:
a sociedade europeia; B) A escolha necessária da unicidade de conexão no
Mercosul: 1. A inadaptação do método da pluralidade de conexões na Europa:
lições para o Mercosul; 2. A pertinência do método da unicidade de conexão
no Mercosul. II – A unicidade da conexão jurídica: um método de construção
de um regime societário autônomo: A) A concepção de um sistema inovador
de conexão jurídica: 1. Uma subtração de princípio da sociedade do direito
nacional; 2. A ambivalência do recurso ao direito nacional; B) Aplicabilidade
de um sistema exigente de conexão jurídica: 1. Confrontação do sistema unitário
a seus próprios limites; 2. Confrontação do sistema unitário às especi cidades
do direito do Mercosul. Conclusão.
Resumo: A m de oferecer às empresas da região
meios mais efi cazes de ação em escala regio-
nal, a criação de uma “sociedade comercial
do Mercosul” é prevista desde 2003 pelas
autoridades mercosurenhas. Ela é igualmen-
te plebiscitada pela doutrina. Embora dife-
rentes, todas as proposições doutrinárias re-
correm à mesma ideia: a criação, pelo direito
do Mercosul, de uma forma de sociedade
comercial autônoma, dotada de um estatuto
de alcance geral que esteja à disposição do
maior número possível de atores econômi-
cos. Porém, nenhuma delas expressa uma
regra clara quanto ao método de conexão
jurídica preferível para esta sociedade. Em
* Resumo da Tese de Doutorado em Direito
defendida pelo autor em 3.9.2014 na Universidade de
Strasbourg. Intitulada Le rattachement juridique des
sociétés commerciales supranationales – Proposition
d’un système de rattachement pour une “société du
Mercosur” à la lumière du droit européen des socié-
tés (Paris, A. Pedone, no prelo), a Tese foi agraciada
com o prêmio de “Melhor Tese em Direito Privado”
pela Faculté de Droit, Sciences Politiques et Gestion
da Universidade de Strasbourg, em 2014. A banca de
defesa foi composta pelos Profs. Jean-Silvestre Bergé
(Université Lyon 3, Presidente e Relator), Véronique
Magnier (Université Paris-Sud, Relatora), Jochen
Bauerreis (Université de Strasbourg, Diretor de pesquisa
na França), João Grandino Rodas (Universidade de
São Paulo, Diretor de Pesquisa no Brasil), Luiz Olavo
Baptista (Universidade de São Paulo), José Gabriel Assis
de Almeida (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Este resumo encontra-se publicado em espanhol na obra
de A. Amaral Jr. e L. Klein Vieira (dirs.), El Derecho
Internacional Privado y sus Desafíos en la Actualidad,
Bogotá, Editorial Ibáñez, 2016 (no prelo).
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DOUTRINA & ATUALIDADES
matéria de sociedades supranacionais, o
nível de autonomia da lex societatis depende
da escolha entre o método da unicidade de
conexão à ordem jurídica supranacional e
o método da pluralidade de conexões, que
permite a ancoragem da sociedade no direito
do Estado onde ela estabelece sua sede ou
no qual ela desenvolve suas atividades, no
âmbito de uma relação de complementari-
dade entre a ordem jurídica que a institui e a
ordem jurídica estatal. Ao passo que a União
Europeia privilegia o método da pluralidade
de conexões das sociedades que ela instituiu
(societas europaea; sociedade cooperativa
europeia; agrupamento europeu de interesse
econômico), nós preconizamos o método
da unicidade para uma futura sociedade do
Mercosul. Trata-se do único método de co-
nexão jurídica apto a garantir a autonomia,
a unidade, a uniformidade e a coerência do
direito aplicável à sociedade. No contexto
do Mercosul, este método contribuirá, ou-
trossim, à construção de uma ordem jurídica
dotada de uma maior efi cácia nas suas rela-
ções com as ordens jurídicas nacionais. As
conclusões são apresentadas em anexo, em
um texto unifi cador, que poderá ser tomado
mais tarde sob a forma legislativa.
Résumé: Afi n d’o rir aux entreprises des moyens
plus e caces d’action à l’échelle régionale,
la création d’une “société commerciale
du Mercosur” est envisagée depuis 2003
par les autorités mercosuriennes. Elle est
également plébiscitée par la doctrine. Si
leurs propositions di èrent, elles recourent
toutes à la même idée: la création, par le
droit du Mercosur, d’une forme de société
commerciale autonome ayant un statut
de portée générale qui permettrait au plus
grand nombre d’acteurs économiques
d’en profi ter. Cependant, ces propositions
n’expriment aucune règle claire quant à la
méthode de rattachement juridique à retenir.
En matière de sociétés commerciales supra-
nationales, le niveau d’autonomie de la lex
societatis dépend du choix entre la méthode
de l’unicité du rattachement à l’ordre juri-
dique supranational et celle de la pluralité
de rattachements, qui permet l’ancrage de
la société dans le droit de l’État où elle
établit son siège, dans le cadre d’un rapport
de complémentarité entre l’ordre juridique
qui l’institue et l’ordre juridique étatique.
Alors que l’Union européenne a privilégié
la méthode de la pluralité dans les textes
régissant les sociétés de droit européen
(societas europaea; société coopérative
européenne; groupement européen d’intérêt
économique), nous préconisons la méthode
de l’unicité pour une future société com-
merciale du Mercosur. Il s’agit de la seule
méthode de rattachement juridique pouvant
assurer l’autonomie, l’unité, l’uniformité et
la cohérence du droit applicable à la société.
Dans le contexte du Mercosur, cette métho-
de contribuera de surcroît à bâtir un ordre
juridique doté d’une plus grande e cacité
dans ses rapports avec les ordres juridiques
de ses États membres. Les conclusions sont
présentées en annexe, sous la forme d’un
texte fédérateur, susceptible d’être repris par
la suite sous la forme législative.
Introdução**
1. O projeto de uma “sociedade co-
mercial do Mercosul”. A m de oferecer às
empresas da região meios mais efi cazes de
ação em escala regional, a criação de uma
sociedade comercial do Mercosul é pensada
desde 2003 pelas autoridades mercosurenhas.
Com efeito, pela Decisão n. 26/03, de 15 de
dezembro de 2003, o Conselho do Mercado
Comum (CMC) encarregou o Grupo Mer-
cado Comum (GMC) de “identifi car, antes
de julio de 2004, los instrumento necesarios
para facilitar la radicación y el desarrollo de
las actividades empresariales en el Mercosur,
en materia de instalación de sociedades, visas
empresariales, armonización de los montos
exigibles a inversionistas y constitución de
empresas Mercosur, entre otros, con el obje-
tivo de concretar instrumentos en estas ma-
terias, en el primer semestre del año 2005”.1
** As referências limitam-se ao necessário. A
palavra “estatuto” refere-se ao instrumento interna-
cional ou regional que institui uma nova forma social;
empregada no plural, refere-se às regras livremente
estabelecidas pelos associados. Os §§ indicados em
notas deste texto referem-se aos parágrafos da Tese, em
sua versão francesa.
1. Mercosur/CMC/Déc. n. 26/03, de 15.12.2003,
relativa ao “Programa de Trabalho para os anos 2004-
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2. A instituição de uma empresa Mer-
cosur seria assim uma das medidas de
facilitación empresaria” que poderia dar
um novo impulso à integração produtiva
regional, enquanto o quadro jurídico relativo
ao exercício das atividades comerciais dentro
do Mercosul permanecer essencialmente na-
cional. Trata-se de uma ferramenta opcional
que encarnaria o ideal de promoção da livre
circulação de bens, de serviços e de fatores
de produção em um espaço jurídico-eco-
nômico marcado por legislações nacionais
harmonizadas, em conformidade com o art.
1o do Tratado de Assunção de 1991.
3. Após a decisão n. 26/03, o CMC
aprovou um Programa de integração produ-
tiva do Mercosul em 2008. Para coordenar e
executar este Programa, o Conselho criou, no
mesmo ano, o Grupo de Integração Produtiva
(GIP) que, subordinado ao GMC, tem sob seu
encargo o estudo sobre a implementação das
empresas Mercosur.2 Em sua “Proposição
de orientações para a integração produtiva
do Mercosul”, de 2007, o Grupo preconi-
zou a realização de estudos para viabilizar
a instituição de empresas Mercosur e para
revisar, identifi car e analisar as eventuais
difi culdades de natureza jurídico-fi nanceira
à sua constituição. As empresas Mercosur
deveriam se benefi ciar de um tratamento
preferencial nos países-membros.3
4. Até o presente, nenhum projeto de
estatuto foi apresentado. O desrespeito aos
prazos fi xados para a elaboração desse esta-
tuto decorre, em primeiro lugar, da reticência
dos Estados-membros a um aprofundamento
do processo de integração. Em segundo
lugar, ele se explica pelo fato de que a cria-
ção de uma empresa Mercosul implica em
defi nir a forma desta futura entidade. Neste
momento, surge a escolha entre uma socie-
dade supranacional ou um label regional
pelo qual concede-se às sociedades de direito
nacional um conjunto de privilégios no seio
do mercado comum em construção.
5. O GMC parece privilegiar a escolha
de um “label” quando se refere ao “trata-
mento preferencial” para empresa Mercosur
em sua “Proposição de orientações para a
integração produtiva do Mercosul”, de 2007.
Com efeito, neste documento o GMC afi rma
sua preferência por um regime que trate das
questões de investimentos estrangeiros, de
circulação de capitais, de imposição fi scal e
de acesso a certas licitações públicas e setores
da economia dos espaços regionais de inte-
gração econômica. O recurso a um estatuto
de alcance geral não é, porém, descartado
expressamente.
6. A solução do “label” não é, contu-
do, pertinente. Além de contemplarem a
liberdade de estabelecimento da sociedade
“labelizada” apenas do ponto de vista do
estabelecimento secundário, os regimes
preferenciais não regulamentam as opera-
ções de concentração regional. O recurso
à fi lial comum “labelizada”, submetida a
uma lei estatal e caracterizada por restri-
ções importantes à participação no capital
social, constitui o único quadro jurídico
proposto para a aproximação das empresas
da re gião. Ele é insufi ciente para cumprir
os objetivos do Tratado de Assunção. O
fraco sucesso que conheceu o Estatuto das
empresas binacionais argentino-brasileiras4
atesta esta insufi ciência.
Além disso, a ausência de estruturas
supranacionais na ordem j urídica mer-
2006”: pt. 1.16 do Programa n. 1 – Mercosur Econômi-
co-comercial. Sublinhado pelo autor.
2. Mercosur/CMC/Déc. n. 12/08. O GIP tem por
objetivo coordenar o Programa de Integração Produtiva
(PIP) do Mercosul. Este programa visa reforçar a com-
plementaridade produtiva da região e, em particular, as
pequenas e médias empresas regionais e as empresas
dos países de menor dimensão no seio do Mercosul.
3. Mercosur/LXVIII GMC/DI n. 13/07, Anexo
XII da Ata Mercosur/GMC/ACTA 02/07.
4. Tratado para o estabelecimento de um estatuto
de empresas binacionais argentino-brasileiras, assinado
em Buenos Aires, em 6.7.1990, e ratifi cado pela Argen-
tina, em 18.4.1991 (Lei n. 23.935, BO de 22.5.1991),
e pelo Brasil em 26.5.1992 (DL n. 26, BO 28.5.1992 e
D. n. 619, de 29.7.1992).
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