Sociedade anônima: uma análise sobre a natureza do conflito de interesses dos membros do conselho de administração

AutorFernanda Aviz Santos
Páginas90-99

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1. Introdução

O Conselho de Administração é um dos órgãos de maior importância na vida social, eis que dita os rumos dos negócios da companhia, definindo suas diretrizes fundamentais. Assim, os conselheiros de administração, na qualidade de membros desse vital órgão, devem sempre expressar a vontade social, com a observância de deveres de natureza fiduciária, tais como os de diligência, lealdade e transparência, além do dever de agir visando aos fins e no interesse social.

Em diversas situações, entretanto, o que se nota é que aqueles que deveriam manifestar e zelar pelo interesse social têm, paralelamente, interesses particulares na deliberação ou operação - o que dá ensejo ao surgimento de conflito de interesses.

Dessa forma, tendo em vista a relevante função exercida pelos conselheiros de administração e a repercussão que seus atos podem gerar na vida social, é fundamental que se entenda corretamente a natureza do conflito de interesses, de acordo com a regra positivada no art. 156 da Lei 6.404/1976, pois a partir deste entendimento poderão ser adotadas diferentes medidas para preservar o interesse social.

2. Natureza do conflito de interesses no Conselho de Administração: súmula da controvérsia

A regra vigente relativa ao conflito de interesses por parte dos administradores dispõe ser "vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do Conselho de Administração ou da Diretoria, a natureza e extensão do seu interesse".

Diante de tal norma, a questão que se põe diz respeito à natureza do impedimento do administrador, se formal ou material.

Como se verá, a principal diferença entre essas duas formas de se entender o conflito de interesses reside no momento da sua verificação e na restrição ao direito do administrador de votar. A questão toda se resume, na realidade, a uma indagação bem simples: o legislador estabeleceu uma hipótese de proibição de voto, ou sua preocupação foi com o conteúdo do voto do administrador?

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Sobre o tema há divergências importantes na doutrina e na Comissão de Valores Mobiliários/CVM, ente regulador do mercado de capitais brasileiro, que, dependendo da composição de seu órgão cole-giado, tem apresentado entendimentos diametralmente opostos para casos semelhantes. Verifica-se, ainda, que no âmbito do Poder Judiciário não há, até o momento, uma linha de pensamento sobre o assunto, seja em instâncias ordinárias ou superiores, mas apenas casos isolados.

A ausência de posicionamento firme, seja na doutrina, na CVM ou no Poder Judiciário, reforça a importância de estudos nessa área.

3. A regra do conflito de interesses formal

Segundo a corrente que defende o conflito de interesses formal - minoria na doutrina -, a verificação do conflito deve se dar mediante a análise apriori e abstrata da situação, ou seja, antes mesmo de o administrador proferir seu voto em determinado conclave. Para essa corrente não importa o conteúdo do voto do administrador, mas sim a existência de possível interesse que se sobreponha ao da sociedade.

Haverá, portanto, conflito de interesses sempre que, em potencial, o administrador demonstrar interesse direto no negócio ou ato - ou seja, se ele for a contraparte da sociedade ou tiver de alguma forma interesse maior na contraparte.

Essa corrente, que valoriza a letra da lei, sustenta que o legislador estabeleceu verdadeiro impedimento de voto para o administrador interessado, como medida cautelar para evitar eventual prejuízo à sociedade.

Nada obstante, os formalistas não relacionam o impedimento de voto com a existência de um interesse pessoal que necessariamente importe o sacrifício do interesse social. Também não correlacionam a obrigação de não votar com a comprova-ção de que o benefício particular do administrador acarrete efetivo dano para a companhia.

Conforme assinala Modesto Carva-lhosa, principal defensor dessa corrente, o fundamento da norma não consiste no pressuposto de que o administrador pretenderia votar e contratar contra o interesse social, mas sim no fato de que "não pode o administrador que será parte contratual formar a vontade da outra parte, que é ou será a companhia".1 Ou seja, não pode o administrador estar nas duas pontas da negociação, pois, nesse caso, o administrador não estaria em condições de ser absolutamente imparcial na busca pelo atendimento do interesse social. Isso porque as partes antagônicas da contratação se confundiriam na mesma pessoa, configurando o que o Direito Norte-Americano define como self-dealing transaction.

Portanto, o administrador interessado deve, nessas situações, cientificar o impedimento aos seus pares, fazer consignar em ata de reunião do Conselho a natureza e extensão do seu interesse e simplesmente abster-se de votar. Não há espaço, pois, para que o administrador sequer delibere, segundo a corrente formal.

Dessa forma, não há que se perquirir se o voto do administrador efetivamente privilegiaria seu interesse pessoal em detrimento do interesse da sociedade, ou não. Em outras palavras, a conseqüência da in-fração à proibição de voto é, para a corrente formal, a anulação da deliberação, ainda que o interesse social tenha, ao final, preponderado.

A 4a Turma do STJ, ao julgar o REsp 156.076-PR, de relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar, acolheu a interpretação formal do conflito de interesses, tendo decidido que este decorre "da simples exis-

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tência de prestações contrapostas, contratualmente ajustadas".2

No plano da CVM a defesa da corrente formal se deu no julgamento do Processo CVM/RJ-2004/5.494, quando se entendeu haver conflito de interesses em operação de permuta de ações do controle de duas sociedades a qual foi aprovada com o voto de um administrador que também era controlador de uma das sociedades e que, assim, era um dos principais beneficiários da operação.

O colegiado da CVM, naquela ocasião, concluiu que o conflito de interesses "é presumido, isto é, independe da análise do caso concreto a sua aplicação, restando o administrador da companhia impedido de participar de qualquer tratativa ou deliberação referente a uma determinada operação em que figure como contraparte da companhia ou pela qual seja beneficiado, independentemente se está a se perseguir o interesse social ou não".3

No mesmo sentido foi o posicionamento daquele órgão no julgamento do Inquérito Administrativo 2001/4.977.4

4. A regra do conflito de interesses material

Apesar dos precedentes da CVM acima citados, a doutrina francamente majoritária é no sentido de que a natureza do conflito de interesses é material, ou seja, como questão de fato, ele deve ser analisado, ca-suisticamente, após a prolação do voto pelo administrador.

O conflito, portanto, se confirmará quando, após a análise do voto do administrador, se concluir que o interesse extra-social que o conduziu é estridente, coliden-te, efetivo, inconciliável com o interesse social. Isto é, para o atendimento do interesse de uma das partes necessariamente deverá haver o efetivo sacrifício do interesse da outra. Não basta que haja apenas um duplo interesse por parte do administrador, como defende a corrente formal.

Nesse sentido, J. X. Carvalho de Mendonça afirma que "muitas vezes é difícil precisar os interesses opostos entre o administrador e a sociedade. Só a apreciação do caso concreto oferece ajusta solução".5 Trajano de Miranda Valverde, da mesma forma, sustenta que "a existência ou não de interesses opostos é uma questão de fato, a ser, portanto, apreciada e julgada em cada caso".6

Ratificando essas lições, um dos co-autores do Anteprojeto da Lei 6.404/1976, José Luiz Bulhões Pedreira, ensina que "interesse conflitante significa interesse oposto, contrário, incompatível ou coli-dente. Não é apenas interesse diferente, ou distinto, que pode ser, inclusive, coincidente com o da companhia, ou complementar a este".7

Socorre a tese ora analisada a definição de "conflito" dada pelos léxicos Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, para quem, respectivamente, conflito significa "choque, embate, peleja"8 e "convergência de direitos antagônicos de dois ou mais indivíduos, que obriga a que nenhum deles

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tenha exercício pleno ou exerça gozo exclusivo do direito do qual se arroga titular: colisão de direitos".9

A corrente material defende, ainda, que a regra do conflito de interesses formal seria insuficiente para a identificação de todos os possíveis casos de interesses conflitantes, haja vista que ela circunscreveria as hipóteses de conflito àquelas em que o administrador contratasse com a sociedade, quando, na verdade, podem ser verificados conflitos...

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