Sociedade em recuperação judicial. Assembleia-geral de credores

AutorFrancisco Satiro
Páginas212-221

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Proposta de aditamento de plano apresentada para venda de Unidade Produtiva Independente/UPI por pregão - Única proposta, inferior ao "lance mínimo" - Deliberação assemblear pela aceitação, contra manifestação expressa da devedora - Nulidade - Falta de cumprimento de pressupostos formais do edital - preço mínimo - impedindo aplicação do art. 142 da Lei 11.101/2005 - Ausência de manifestação favorável do devedor impedindo aplicação do art. 145 - Sucessão caracterizada na alienação de bens na recuperação judicial quando não se pode incluí-la numa das modalidades do art. 142 - Interpretação dos arts. 141 e 60 da Lei 11.101/2005.

I - RESUMO DOS FATOS COMO NARRADOS PELOS CONSULENTES

1. Em 8.12.2009 a Cia. Açucareira "A" distribuiu pedido de recuperação judicial nos termos dos arts. 47 e ss. da Lei 11.101/2005. O processamento foi deferido pelo Juiz da 1ª Vara Judicial de Penápolis em 14 de dezembro do mesmo ano. A devedora possui significativos débitos fiscais que, por conta da lei, não foram incluídos no plano.

2. Aprovado o plano de recuperação judicial, e afastados os devedores nos termos do art. 65 da Lei 11.101/2005, o gestor não logrou cumpri-lo, o que levou à realização de novas assembleias e à aprovação de aditamentos.

3. Em 7.8.2013 a Assembleia-Geral de Credores/AGC decidiu pela alienação da planta industrial e seus equipamentos, único ativo efetivamente relevante da devedora, para pagamento dos credores submetidos.

4. Conforme edital publicado no DJ de 27.9.2013 (fls. 165-166), a alienação da UPI se daria por pregão (modalidade prevista no art. 142, III, da Lei 11.101/2005) com lance mínimo R$ 315 milhões, conforme avaliação aprovada em AGC pelos próprios credores em 23.9.2013.

5. A única proposta recebida na data estabelecida pelo edital foi de "B" Açúcar e Álcool S/A, no valor de R$ 187 milhões, conforme descrito abaixo. A proposta foi aprovada pela AGC de 5.11.2013, mesmo contra a expressa manifestação dos devedores.1Houve discussões acerca da possível inclusão de credores extraconcursais no plano de pagamentos.2Ao final, a AGC aprovou, com adaptações, a proposta de compra da "B" para pagamento de R$ 187 milhões, R$ 128 milhões a menos que o valor de lance mínimo do edital, a ser pago da seguinte forma: R$ 97 milhões di-

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vididos em 14 parcelas;3e R$ 90 milhões através de assunção da dívida do PESA junto ao Banco do Brasil, que era proprietária fiduciária da UPI.

6. Em face destes fatos pergunta-se:

(a) É lícita a venda de UPI na forma como estabelecida no edital?

(b) A venda cumpriu as exigências do edital?

(c) Poderia a venda dar-se contra a manifestação de vontade do devedor?

(d) Quais as consequências de suposta venda?

7. Estas as perguntas que passo a responder.

II - DESENVOLVIMENTO DAS QUESTÕES

8. A logica do sistema de tratamento da insolvência no Brasil é muito clara desde a entrada em vigor da Lei 11.101/2005: aplicam-se suas disposições às empresas em crise, cabendo o procedimento de liquidação (falência) em caso de inviabilidade econômico-financeira da continuidade do negócio, e de reorganização sob o comando do devedor (recuperação extrajudicial e judicial) se o devedor conseguir demonstrar que a continuidade da atividade, também chamada on going concern, preserva utilidade não só para a empresa, mas para as pessoas a ela ligadas.

9. É esse o inequívoco conteúdo do art. 47, que traz em si o âmago dos objetivos da recuperação judicial: "A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

10. Portanto, a preservação da empresa nas mãos do devedor (DIP - debtor in possession) e, por consequência, dos interesses subjacentes à manutenção da atividade empresarial (credores, funcionários, fornecedores etc.) é razão de ser de garantia de tratamento especial em caso de crise. Como a recuperação judicial pressupõe continui-dade, dois aspectos são inafastáveis para sua aplicação.

11. Primeiro, é importante notar que, diferentemente da falência, a recuperação judicial não abrange todos os credores do devedor.

12. Na recuperação judicial existirão credores não submetidos cujos interesses estão preservados pela estrutura dos institutos e pela regular continuação dos negócios da recuperanda. Esse é o caso das Fazendas Nacional, Estadual e Municipal e dos credores de créditos posteriores ao pedido. Apesar de terem seus créditos privilegiados na falência (arts. 83, III, e 84, V, respectivamente), não participam da recuperação judicial. Isso só não representa um prejuízo porque o objetivo principal da recuperação judicial não é a liquidação dos ativos, mas, sim, a reorganização societária. A venda de ativo na recuperação judicial deve servir à consecução dos objetivos de garantia da continuidade empresarial, mas sempre sem prejuízo dos credores não submetidos.

13. Aos credores não submetidos, nesse caso, resta a perspectiva de que a geração de receitas e a manutenção de bens de produção pela recuperanda após a venda das filiais ou UPIs serão suficientes para oferecer-lhes uma contrapartida à diminuição do patrimônio do devedor em benefício de credores que muitas vezes sequer possuem privilégio concursal. O mesmo ocorre quanto aos credores como aqueles por restituição (ACC e alienação fiduciária, por exemplo).

14. Só se justifica a ausência da participação desses credores no processo de recuperação judicial - e, portanto, na formação do quórum de aprovação de uma modalidade de alienação de ativo em AGC - não ocorrendo

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uma liquidação completa nesse âmbito.4Não se pode esquecer que na liquidação (falência) o princípio que vige é o da par conditio creditorum, ou do pari passu, como preferem os ingleses. Todos os credores concorrem ao resultado da liquidação do ativo em igual-dade de condições, resguardada a ordem de privilégios do art. 83 (como mencionado no art. 141, I), que, como norma cogente, só é excepcionada em dispositivos legais como os arts 84, 86, 151 e 152.

15. Reforce-se que o art. 84, aplicável só em caso de falência, contempla com privilégio sobre todos os demais credores concursais aqueles cujo crédito tenha sido constituído durante a recuperação judicial. Trata-se de forma de incentivo à manutenção do fornecimento que garantirá a continuidade da atividade empresarial. Esses credores extraconcursais também não estarão submetidos à recuperação judicial e ao plano. Seu risco, em caso de insucesso do procedimento de reorganização, é menor que o dos credores submetidos, porque eles mantêm seu direito à execução do crédito e os bens do devedor continuarão passíveis de realização na liquidação, quando, então, receberão antes que os demais credores concursais do art. 83.

16. Esse fato não era desconhecido de "B", que em sua proposta de compra da UPI de 20.10.2013 (proposta, essa, que resultou na negociação e aprovação da alienação da UPI pelos credores em AGC) ressalvou o interesse dos credores extraconcursais: "3.1.3 Do valor total bruto ofertado os recursos devem ser usados, na forma da lei, primeiramente para pagamento de dívidas extraconcursais apresentadas pelos administradores da recuperação, atualmente conhecida pela proponente em diligência na UPI durante o prazo do edital como tendo um valor de R$ 84.368 milhões atualizadas até dia 30.9.2013" (proposta "B", p. 7, fls. 13.164) (grifamos).

17. Se a recuperação tiver como objetivo a venda dos ativos relevantes da empresa para pagamento dos credores submetidos, será sob esse ponto similar a uma liquidação. Ora, nenhuma regra válida de hermenêutica possibilitaria a interpretação de dispositivos aplicáveis à recuperação judicial que permitissem uma liquidação completa sem o respeito à ordem cogente de privilégios da falência. Mais grave ainda: ao se entender livre a possibilidade de realização dos ativos relevantes do devedor na recuperação judicial se estará alijando os credores extraconcursais (justamente os privilegiados) do processo decisório acerca do bem que, em ultima aná-lise, seria a garantia da sua prioridade. Em outras palavras: a AGC, formada somente por alguns credores concursais, teria autonomia para alijar os credores privilegiados (como, por exemplo, os relacionados no art. 84) do processo de decisão sobre o destino dos bens que lhes asseguram o privilégio. Há, nesse caso, disposição sobre direitos de terceiros em interesse próprio.

18. Não é a toa que a Lei 11.101/2005, ao tratar de recuperação judicial, não se refere à "alienação da empresa", como o faz na disposição do art. 140 quanto à falência, mas à venda de filiais e UPIs (art. 60).

19. Em segundo lugar, a falência é, mais...

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