A transformação da sociedade internacional clássica e a crescente jurisdicionalização do direito internacional

AutorGilmar Antonio Bedin - Mardjele da Silva Barcellos - Cristiane Schunemann
CargoDoutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de Direitos Humanos, Relações Internacionais e Eqüidade no Curso de Mestrado em Desenvolvimento da UNIJUÍ - Estudante do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ e bolsista de iniciação científica do PIBIC/CNPq - Estudante do Curso de Graduação em Direito da UNIJ...
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1. O estado e a sociedade internacional clássica

A sociedade internacional se constituiu como uma estrutura política alicerçada no poder do Estado soberano. Este poder surgiu e se consolidou entre o século XIII e o século XVII, em especial no continente europeu. Esta consolidação ocorreu tanto em relação aos entes políticos menores como em relação aos entes políticos maiores. Isto é, tanto interna como externamente.

Internamente, o Estado se consolidou ao superar todos os seus concorrentes menores, em especial os poderes dos senhores feudais. Isto permitiu sua afirmação como a unidade política com força e poder suficientes para fazer valer - com êxito - a sua vontade e suas decisões sobre um território e sobre um determinado agrupamento humano específico. Externamente, por ter afastado a supremacia do Sacro Império Romano-Germânico e as pretensões universalistas da Igreja Católica. Isto viabilizou sua consolidação como entidade soberana, dotada do monopólio da coação física legítima e livre para tomar decisões políticas independentes de qualquer outro Estado.

Ao se consolidar como entidade soberana, o Estado se tornou a principal referência do mundo moderno. Com isto, foi inaugurada uma nova etapa da história humana, que tem sido denominado de forma específica pelos estudiosos do direito internacional de sociedade internacional clássica (1648-1948). Isto é, a etapa da sociedade internacional tipicamente interestatal e marcada pela ausência de qualquer instância superior ao do Estado soberano moderno.

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Assim conformada, a sociedade internacional adquiriu a forma de uma estrutura anárquica, dependente do interesse nacional de cada Estado específico. Em consequência, se tornou hegemônica a compreensão de que nas relações entre Estados o que prevalece são as relações de poder, com destaque para a busca da preservação do Estado e de seus objetivos estratégicos.

Por isso, se tornou comum a afirmação de que nesta sociedade apenas o poder pode frear o poder e que é impossível alguém escapar do denominado mal do poder, independentemente do entendimento que cada um tem sobre sua natureza, suas virtudes e seus defeitos. De fato, não há como fugir do imperativo de que, nas relações políticas entre os Estados, prevalece, independentemente das convicções pessoais de cada governante, as razões do Estado.6

Assim sendo, a sociedade internacional clássica é caracterizada por ser uma sociedade relacional, marcada pela vigilância mútua constante dos Estados e pela possibilidade de paz apenas negativa (Bobbio, 2009). O seu centro aglutinador não é, portanto, o respeito às instâncias institucionais ou a preceitos jurídicos comuns, e sim o sistema de equilíbrio de poder. Por isso, é importante perguntar quais são suas instituições mais importantes e seus princípios fundamentais.

2. A sociedade internacional clássica e suas principais instituições

As principais instituições da sociedade internacional clássica são a diplomacia (para o diálogo), as alianças (para a defesa dos interesses comuns) e a guerra (para o caso de conflito extremo).7

2. 1 A Diplomacia

A primeira e uma das mais importantes instituições da sociedade internacional clássica é a diplomacia. Neste sentido, não se pode esquecer que os Estados nem sempre se encontram em guerra ou que seus conflitos encontrem na guerra, como regra, a sua forma específica de solução. Ao contrário, é normal que os Estados busquem saídas diplomáticas para seus conflitos e que somente em situações muito excepcionais a guerra seja a alternativa a ser adotada.

Por isso, "a diplomacia é o sistema e a arte da comunicação por excelência entre os Estados. O sistema diplomático é a instituição-mestra das relações internacionais" (Wight, 1995, p. 91). Ou, dito de outra forma, "o mais importante instrumento da política internacional é, ainda hoje, a diplomacia, que pode ser definida como uma arte

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da negociação ou o conjunto das técnicas e processos pacíficos de conduzir as relações entre os Estados" (Moreira, 1996, p. 53).

Essa instituição foi utilizada em, praticamente, toda a trajetória histórica da humanidade. Contudo, foi somente no período moderno que ela adquiriu maior relevância e regularidade. De fato, foi somente com o estabelecimento de embaixadas permanentes que essa instituição passou a desempenhar um papel fundamental nas negociações entre os principais atores internacionais. Essa iniciativa de estabelecer embaixadas permanentes "surgiu na Itália do século XV, onde rapidamente provou ser um método incomparável de comunicação em um intrincado mundo político de alianças instáveis [e de muitos conflitos permanentes]" (Wight, 1985, p. 91).

Com a experiência italiana foi comprovada a utilidade e a eficiência do recurso diplomático, o que incentivou a extensão da prática de se estabelecer embaixadas em todos os Estados europeus. A forma de concretização dessa ampliação foi o reconhecimento costumeiro do direito de legação (Stranger, 1998)8. Como nunca houve no direito internacional algum acordo formal9 que afirmasse existir um dever correspondente dos Estados independentes de receberem embaixadas de outras potências, as grandes potências europeias do século XIX "impuseram o sistema à força aos Estados relutantes da Ásia e, dessa forma, estenderam o sistema diplomático dos Estados da Europa para o resto do mundo" (Wight, 1985, p. 91).

No século XX, esse sistema foi aperfeiçoado, passando a instituição diplomática a ter uma regulamentação formal e bastante exaustiva. Atualmente, as relações diplomáticas, em sentido amplo, são regulamentadas pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares, criadas e aprovadas ambas pela Organização das Nações Unidas, na década de sessenta do século XX10. O objetivo dessa regulamentação é não proteger e beneficiar indivíduos específicos, mas sim garantir o eficaz desempenho das funções das missões oficiais, em seu caráter de representantes do respectivo Estado11.

Em relação à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, dois aspectos podem ser destacados: as funções da diplomacia e os direitos das missões diplomáticas. As funções da diplomacia estão previstas no artigo terceiro da Convenção e são, entre outras, as seguintes: a) representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado; b) proteger no Estado acreditado os interesses do Estado acreditante e de seus nacionais, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional; c) negociar com o Governo do Estado acreditado; d) inteirar-se por todos os meios lícitos das condições existentes e da evolução dos acontecimentos no Estado acreditado e informar a este respeito o Governo

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do Estado acreditante12; e) promover relações amistosas e desenvolver as relações econômicas, culturais e científicas entre o Estado acreditante e o Estado acreditado13.

No que se refere aos direitos das missões diplomáticas, podem ser destacados os seguintes: a) a Missão e seu Chefe têm direito à isenção de jurisdição do Estado acreditado e, em consequência, de todos os impostos e taxas nacionais, regionais e municipais; b) a Missão e seu Chefe têm direito de usar a bandeira e o escudo do Estado acreditante nos locais da Missão, inclusive na residência do Chefe da Missão e nos seus meios de transporte; c) a Missão tem direito à inviolabilidade de seus locais de funcionamento. Os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do Chefe da Missão; d) a Missão tem direito à proteção dos locais de funcionamento contra qualquer invasão ou dano, bem como contra perturbações à tranquilidade da Missão ou contra ofensa à sua dignidade; e) a Missão e seu Chefe têm direito ao sigilo de comunicações e a sua correspondência oficial é inviolável14.

Garantidas estas prerrogativas, a instituição diplomática terá condições de garantir o diálogo entre os Estados e, em consequência, evitar que os conflitos sejam ampliados e as negociações acabem predominando sobre as outras formas de relacionamento entre os Estados modernos.

2. 2 As Alianças

A segunda instituição fundamental da sociedade internacional clássica constitui-se nas alianças. O ponto de partida dessa instituição é a constatação de que os Estados adotam, apenas em situações muito específicas, posturas isolacionistas e autossuficientes na sociedade internacional. O normal é que os Estados procurarem manter relações associativas para a defesa de interesses comuns. As alianças cumprem este papel e buscam melhor posicionar o Estado no conjunto da sociedade internacional, com a finalidade de preservar seus interesses e garantir sua segurança.

As alianças se formam a partir da convergência consciente de interesses dos Estados envolvidos e têm, portanto, o objetivo estratégico de preservação do Estado. Neste sentido, as alianças não podem ser confundidas com as amizades entre as pessoas, pois estas são relações desinteressadas e baseadas, quando verdadeiras, em puro altruísmo dos envolvidos. Por isso, é importante ressaltar que "as alianças não são as amizades da política internacional - a menos que, como observou Aristóteles, utilizemos

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a palavra amizade para designar relações baseadas na utilidade" (Wight, 1985, p. 99). Este, contudo, não é o sentido predominante de amizade no mundo moderno15.

Além disso, não se pode esquecer que os Estados nunca são definitivamente amigos, apesar de poderem...

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