A sociedade de risco e o Direito Penal do Risco: contextualização da tutela jurídico-penal (ambiental) na contemporaneidade

AutorMatheus Almeida Caetano
Ocupação do AutorDoutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra
Páginas33-114

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Neste primeiro capítulo, será apresentada uma das mais difundidas análises de cunho sociológico da atualidade, presente em várias formulações jurídicas ambientais e penais voltadas à compreensão dos problemas socioambientais contemporâneos: a teoria da sociedade de risco de Beck (1.1). Em um segundo momento, analisar-se-á o que se convencionou chamar de Direito Penal do Risco (1.2 e 1.2.1), apontando as suas prováveis características e manifestações em diversas teorias e políticas criminais hodiernas (1.2.3), sendo, inclusive, um reflexo da disseminação de ideias do sociólogo alemão mencionado, conforme já se nota por sua nomenclatura (embora os pontos de contato entre ambos superem a mera questão terminológica). Nesse heterogêneo grupo, estão localizados os delitos de acumulação (1.2.3.6), objeto de estudo da presente investigação, que também não ficaram imunes ao contágio da teoria da sociedade de risco, conforme se pretende demonstrar.

Diante de incontestes ataques sofridos pelo meio ambiente, executados por diversas formas e provenientes de incomensuráveis fontes poluidoras e degradantes, propôs-se uma construção dogmática a partir do crime de contaminação das águas previsto no Código Penal Alemão (§324 do StGB), ganhando ela cada vez mais espaço no Direito Penal Ambiental. Trata-se de uma modalidade de justificação típica, proposta por Kuhlen desde 1986, voltada às ações individuais irrisórias que, isoladamente consideradas, não são suficientes para lesionar nem colocar em perigo (sequer) abstrato o bem jurídico-penal, mas, quando praticadas reiteradamente, levam a um quadro incontrolável de degradação ambiental.

A título exemplificativo, mencionam-se aqui alguns dos problemas ambientais mais comuns relacionados com a figura acumulativa: o despejo de óleos (seja de origem doméstica ou industrial) por várias pessoas (naturais ou jurídicas) nos recursos hídricos leva à posterior verificação de que, mesmo diante de quotas de poluição individuais mínimas, sérios danos ocorrem em rios, em lagos e em demais fontes de água devido ao montante de agentes que praticam a mesma ação poluente; a pesca e a caça de animais realizadas de forma descontrolada por inúmeros indiví-

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duos também podem acarretar um processo de ameaça às espécies e até mesmo extinção; a superexploração de recursos naturais, cuja ausência de parâmetros pode levar ao seu esgotamento; outras formas de poluição, como as do solo e do ar, também conduzem a problemas ambientais derivados da repetição de condutas aditivas de várias pessoas, haja vista, por exemplo, a emissão de gases de efeito estufa pelos usuários de automóveis, pelas indústrias e pelas demais atividades humanas indispensáveis, mas que poluem significativamente o meio ambiente.

Inúmeras perplexidades e transformações sociais marcaram o século passado e o início do presente, levando intricados problemas às portas do Direito Penal, que se vê diante da instigante alternativa – traço marcante do Direito Penal Moderno, qual seja a de optar entre: (i) assumir incondicionalmente a solução dos problemas sociais por meio do Sistema Penal (doravante denominada nesta obra de “a ruptura”); ou (ii) nem sequer conhecê-los e já negar em absoluto uma contribuição de sua parte (aqui intitulada de “a petrificação”); ou (iii) conhecê-los e ponderar criticamente sobre as reais capacidades e os limites da tutela na resolução deles (nomeada de “a atualização”) – conforme o item 1.3.

Após uma explanação sobre o caminho a ser trilhado pelo Direito Penal entre os supramencionados, voltar-se-ão os olhos para a tutela penal do meio ambiente, de forma a se fazer uma reflexão mais profunda sobre a sua pertença ou não ao famigerado Direito Penal do Risco (1.4), em razão da significativa ressonância da abordagem sociológica de Beck nas teorias jurídicas7, nem sempre contextualizadas e refletidas com maior cuidado. Traçado o que se pretende com este capítulo inicial, a seguir, inicia-se a apresentação sobre a teoria da sociedade de risco com algumas de suas principais contribuições aos problemas ambientais da pós-modernidade.

1. 1 A sociedade de risco

A Sociologia do risco de Beck – proposta ainda na década de 1980 e que se tem alastrado surpreendentemente por vários ramos das Ciências

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Humanas Aplicadas ou não, principalmente no Direito e na Sociologia8

– relata os inúmeros problemas enfrentados pelas sociedades contemporâneas, muitos deles iniciados ainda na modernidade. Consequentemente, apresentava-se o sociólogo alemão como um assumido crítico desse paradigma, ao destacar os retrocessos de algumas teorias defensoras de retornos aos valores iluministas. Por isso, ele advertia que as filosofias e as políticas decorrentes desse modelo estão fadadas ao insucesso na era do risco global, pois seguem presas aos pilares do progresso e do avanço tecnológico9.

Sua construção teórica volta-se, predominantemente, para o período histórico moderno, sendo a sociedade industrial o ponto de partida de suas incursões sociológicas. Considerando-se a Revolução Industrial como o marco da intervenção degenerativa do homem sobre o meio ambiente, alguns aspectos dessa fase foram responsáveis por inúmeras catástrofes ecológicas, em razão da rapidez das transformações socioambientais promovidas à época, conforme se pretende delinear adiante – 1.1.1 A modernidade simples (sociedade industrial).

Na sociedade de risco, verifica-se uma desenfreada produção social de riquezas, por conseguinte, acompanhada de uma infinidade de riscos. O elevado índice de produção-consumo correspondente à lógica capitalista fez com que a natureza fosse e continuasse a ser sacrificada insistentemente em prol do progresso, que, aliado ao mito do conhecimento científico inabalável (infalível), sempre poderia reverter qualquer situação ou dificuldade mundana. Portanto, esse culto cego à Ciência fez com que Beck voltasse as suas críticas de um modo geral aos pensamentos com arrimo na modernidade – 1.1.2 A modernidade reflexiva (sociedade de risco). Em breves palavras, a sociedade de risco global expõe os problemas enfrentados pelo mundo pós-industrial, explicando seu atual quadro de uma possível autodestruição real de todas as formas de vida existentes no planeta, decorrente dos persistentes padrões modernos de desenvolvimento que orientam as decisões humanas em relação ao meio

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ambiente10. Boff dá a esta possível tragédia a nomenclatura de “Princípio da Autodestruição”11, consequência do afastamento do homem da Terra, por tê-la reduzido a mera fonte inesgotável de recursos naturais12.

A atual sociedade de risco provoca uma série de inter-relações jamais vistas anteriormente e dissemina uma verdadeira sensação de insegurança nos indivíduos, sendo uma das nuanças das sociedades da era pós-industrial com mais reflexos sobre as instâncias de proteção individual e social. Inclusive é invocada tal peculiaridade como um dos sintomas do intitulado Direito Penal do Risco, classificação que engloba uma pluralidade de teorizações e de políticas criminais, na qual o Direito Penal Ambiental é tido (equivocadamente diga-se de forma antecipada) como exemplo primordial pela Escola de Frankfurt.

Beck pondera que a sociedade passou por três fases distintas: (i) a pré-modernidade (sociedade pré-industrial), (ii) a modernidade simples (sociedade industrial) e (iii) a modernidade reflexiva (sociedade de risco). Apesar de cada uma delas possuir peculiaridades específicas que auxiliam na compreensão da obra e dos argumentos do seu criador, para os fins desta obra será dado enfoque apenas às modernidades simples e reflexiva. Para tanto, duas advertências preliminares fazem-se necessárias: a primeira de que a passagem de uma fase a outra não é tão clara e repentina, ela acontece de maneira apolítica, nos subsolos do parlamento, do governo e da sociedade e só se torna perceptível em conta-gotas pela opinião pública13; e a segunda de que há, em alguns aspectos, uma sobreposição dessas modernidades, ou seja, são concomitantes em determinados contextos14.

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Concluída a introdução à teoria da sociedade de risco, convém aden-trar, a partir de agora, suas características, visando à sua análise pormenorizada e ao seu contraponto com a realidade ambiental atual. Destaca-se que, além de sua obra mais conhecida, intitulada “La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad15, a leitura de críticas embasadas nessa, assim como de outros trabalhos de Beck, mostraram-se imprescindíveis aos desideratos desta pesquisa. No subitem seguinte tem início a...

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