Apropriações e representações sócio-históricas do trinômio leitura - texto - leitor

AutorCésar Augusto Castro - Samuel Luís Velázquez Castellanos
CargoDoutor em Educação Professor Associado II do Programa de Pós-graduação em Educação e do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal do Maranhão - Mestre em Educação Doutorando em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara
Páginas42-63

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César Augusto Castro

Doutor em Educação Professor Associado II do Programa de Pósgraduação em Educação e do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal doMaranhão ccampin@terra.com.br Samuel Luís Velázquez Castellanos

Mestre em Educação Doutorando em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara

Samuel.uema@hotmail.com

1 Introdução

Para falarmos de leitura fazse indispensável iniciar nosso caminho de exploração familiarizandonos com os atores e usuários da cultura letrada (CHARTIER, 2002) - sejam eles autores(as), livreiros, bibliófilos(as) -, sejam professores(as), escolares, bibliotecários, crianças, mulheres e homens que estiveram e continuam presentes na rota cultural do ato de ler e de escrever. Outros, não menos presentes, editores, tipógrafos, ambulantes que se bem

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determinam e desenham aparentemente a produção, circulação e distribuição dos livros, através do comércio livreiro e de estratégias editoriais – são intermediados constantemente por redes complexasque se interpenetram e se entrecruzam.

Essas redes sustentam nas suas interrelações os aspectos econômicos, políticos, religiosos, sociais e culturais que participam eficazmente tanto das decisões sobre a forma e os conteúdos dos impressos literários e nãoliterários, assim como das concepções pessoais de mundo e as maneiras de representação, transmissão e recepção dos textos. Formas e modalidades de leitura que construíram e constroem a nossa história (LACERDA, 1999), independentemente das evidentes interferências e mediações na definição dos espaços culturais.

A leitura pode ser substituída, na visão bourdieriana, por palavras que significam consumo cultural. Mas nossas posições tomadas como leitores nos fazem correr o risco de investir em nossas análises os pressupostos inerentes à posição do leitor, quer seja na compreensão dos seus atos de leitura e de seus usos sociais, quer seja na relação com a escrita e desta última com as práticas (BOURDIEU, 1996).

Conceber na prática leitora o produto das condições que nos produziram como leitor se constitui a chave para escapar dos condicionalismos impostos pela variabilidade das situações de leitura, tentando evitar a constante tentação da posição universalizante dos leitores que somos; ao identificarmos face ao livro a existência de leituras diversas, as diferentes competências e instrumentos de apropriação distribuídos desigualmente pelo próprio texto, pela idade e pela relação com o sistema escolar (CHARTIER, 1996), segundo o qual a dialética entre a imposição e a apropriação, entre os limites transgredidos e as liberdades refreadas não é nem será a mesma em toda parte, sempre e para todos (CERTEAU, 1982).

Por outro lado, ao considerarmos a leitura como consumo cultural diferente da produção racionalizada e expansionista de uma ordem econômica dominante teria que ser definido como outra produção que, evidentemente, não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca serão idênticas àquelas que o produtor, o autor ou artista investiram na sua obra:

[...] a leitura de um texto pode escapar à passividade que tradicionalmente lhe foi atribuída. Ler, olhar ou escutar são efetivamente, uma série de atividades intelectuais que longe de submeterem ao consumidor [...], permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou resistência (CHARTIER, 1988, p. 59).

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A leitura eficaz que através da existência do livro, tenha aspirado a instauração de uma ordem de decifração do texto – uma ordem interna para ser compreendido, imposta pelo autor, pelo editor, ou por qualquer outro ator, implícito no processo de edição, produção, manipulação do controle ou da censura – não funcionou na íntegra de suas intenções. Essa ordem de múltipla fisionomia pessoal e coletiva não obteve a onipotência de anular a liberdade do leitor limitada em certa medida pela suas competências adquiridas ou pelas convenções das quais ele é partícipe, pois “[...] essa liberdade sabe como se desviar e reformular as significações que a reduziram” (CHARTIER, 1994, p. 8).

O reconhecimento dessas modalidades diversas e dessas variações múltiplas, capturando nas diferenças as identidades entre os leitores e a arte de ler, é o que nos faz refletir sobre o sentido não estático, universal e fixo das obras, as quais, originadas nos eus individuais, são investidas de significações plurais e movéis, dependendo das expectativas e das estratégias de leituras dos diferentes públicos que delas se apropriam.

Leituras decifradas por mediação dos esquemas mentais e dos esquemas afetivos que constituem a cultura das comunidades receptoras, construindo tanto um vínculo social, como a subjetividade individual. “Nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa no mundo préfabricado em que certas coisas são importantes e outras não [...] sabedoria que todos nós recebemos como uma prenda do mundo intersubjetivo da cultura” (BAUMAN, 1998, p. 17). Mundo intersubjetivo em que os leitores são viajantes e se objetivizam culturalmente. Leitores que na visão certeauriana:

[...] circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram [...]. A escritura acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido (CERTEAU, 1994, p.226).

Entre a leitura e o texto existe um duplo postulado. A leitura não está escrita no texto, não existindo uma distância pensável entre o sentido que lhe é imposto pelo autor, pelo seu uso e pela crítica e a interpretação feita pelos leitores.

Em relação ao texto, partilhamos a idéia de que este só existe com a existência do leitor que lhe pode dar significado. A página imprensa, não é uma letra morta: “[...] ela é o lugar onde se produz o encontro, sempre diferente, entre a palavra já escrita e os novos sentidos que os leitores lhe vão dando” (CERTEAU, 1994, p. 264). O leitor antecipa e salta as idéias, deturpa

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o sentido pretendido pelo autor, faz associações imprevistas e transporta para as páginas escritas suas memórias, reescrevendo, de certa maneira, o texto que lê no momento da leitura (CHARTIER, 2003). Prática encarada em gestos, espaços e hábitos que dependem de múltiplos determinantes do real concreto que se materializam nas diferentes maneiras de leitura do escrito e que se corporificam através da sua relação com a exterioridade do leitor, estabelecendose, assim, um jogo de expectativas entre a literalidade do texto e a tipologia do ato de ler. Materialidade cultural que ao ser lida, “[...] vaise desfazendo e desmoronando, ao mesmo tempo em que vamos articulando e construindo seu significado [...] Como se o sentido do texto, [...] não fosse outra coisa que uma hipótese imaginária que se dissolveria no movimento mesmo no qual tentamos capturálo” (LARROSA, 1999, p.119).

Sentido que, ao garantir a possibilidade da leitura, permite que esta se faça nãoausente e se permeie na captação e na apropriação desse sentido, ao se tonificar pela figura paradigmática do leitor no ato de ler (CHARTIER, 1994). Não se constituindo só uma operação abstrata de intelecção, mas um engajamento do corpo, uma inscrição num espaço e uma relação consigo e com o outro na qual “[...] todos os significados, são sugestões, permitindo convite ao estudo e demonstração, à interpretação e reinterpretação, [...] onde os signos flutuam em busca de significados e os significados em busca dos signos” (BAUMAN, 1998, p. 135), cimentando as formas de sociabilidade imbricadas em símbolos de privacidade, intimidade e convivência no triângulo analítico estabelecido entre o livro, o texto e o leitor.

Para o new criticism, assim como para a analitycal bibliografhy, a produção do sentido é atribuída a um funcionamento automático e impessoal de um sistema de signos que, por sua vez, constitui a linguagem do texto ou organiza a forma do objeto impresso. Postulados que supõem o texto como uma unidade autônoma, uma interpretação acentuada, única e autorizada através da observação do funcionamento da língua no impresso. Por uma parte, se tira a importância da maneira como uma obra é lida, recebida e interpretada, sem se ter em conta relações entre as pessoas envolvidas com o mundo da escrita, com as suas estratégias intelectuais e as diversas formas de ler. Pela outra, se proclama a morte do autor ao enfatizarem na fabricação do impresso as marcas que os objetos deixaram, o explicado pelas decisões editoriais, as práticas nas oficinas e os hábitos da profissão, caracterizando a visão da hegemonia semiótica, onde os leitores e as leituras podem não estar de modo nenhum com o pretendido em início pelo autor e cuja intenção não se investe de qualquer pertinência particular. Corrente que ignora a influência da tipografia ao considerar a obra importante em

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si mesma, sem a presença do leitor e na ausência do escritor desinteressandose pelo contexto histórico da sua circulação e pela sua recepção na forma de livro. Livros nos quais o escrito deixa de ser habitado pelos autores, por se constituírem escritores alheios a sua própria obra depois de estar materializada. Para R. E. Stoddard, representante desta vertente, “[...] os autores não escrevem livros. Os livros, não são de modo nenhum escritos. São manufaturados por escribas, e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressões e outras máquinas” (1984, apud CHARTIER, 1988, p. 126).

Em oposição a essas correntes, na Crítica Literária reescreveramse por meio de diversas vertentes as obras em sua própria história, reconhecendo a volta do autor. A Estética da...

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