Sociologia juridica e historica, historia do direito e, no brasil, "antropofagia juridica"/Sociologia giuridica e storica, storia del diritto e, in brasile, "antropofagia giuridica".

AutorLosano, Mario G.

SUMARIO: 1. DISCIPLINAS DE CONFINS INCERTOS; 2. BREVE HISTORIA DA HISTORIA DO DIREITO NO BRASIL; 3. A "ANTROPOFAGIA" NA CULTURA BRASILEIRA; 4. O LIVRO DE GUSTAVO SIQUEIRA; 5. A ANALISE HISTORICO-JURIDICA DA GREVE FERROVIARIA DE 1906.

[section]1. DISCIPLINAS DE CONFINS INCERTOS

No florescer dos estudos sobre a historia do direito no Brasil, um titulo recente analisa, entre movimentos sociais e magistrados envolvidos, a percepcao do direito de greve no inicio do seculo XX. Em relacao as historias juridicas tradicionais, fundadas sobretudo no direito positivo, essa pesquisa ensaia uma metodologia nova para construir uma "historia do direito [produzido] pelos movimentos sociais": declaracao de principio a conferir titulo ao proprio volume (1).

O caso concreto com base no qual se ensaia essa historia-naoformalista do direito - ou se trata de uma historia do direito-nao-formalista? - e a greve ferroviaria ocorrida em 1906 no Estado de Sao Paulo. Seu desenrolar e as polemicas juridicas que o acompanharam sao descritos no ultimo capitulo do livro, ao passo que os tres capitulos precedentes aprofundam os aspectos metodologicos da pesquisa. Sobre o conteudo de todo o volume, retorna em detalhe o [section]4, enquanto o [section]5 analisa os problemas metodologicos inerentes a escolha do autor. Preliminarmente, porem, ilustram-se alguns aspectos culturais - tipicamente brasileiros - que compoem o fundamento do livro mencionado. De inicio, o [section]2 situa a proposta metodologica em questao no contexto da historia do direito brasileira, cujo desenrolar e radicalmente diverso nao apenas do europeu, mas tambem daquele de outros paises da America Latina. O [section]3 delineia brevemente os contornos da ideia que inspira a citada proposta, isto e, da "antropofagia juridica", conceito aparentemente estranho ao leitor europeu (2), mas com raizes precisas e profundas na cultura modernista brasileira: por isso, o [section]3 trata do movimento modernista e da Semana de Arte Moderna de Sao Paulo, de 1922. A tais raizes se refere Siqueira: em 1928, "Oswald de Andrade deu, no Manifesto antropofagico, uma conotacao politica e ideologica a antropofagia", na tentativa "de construir uma tradicao nacional que pudesse dialogar com as vanguardas europeias" (p. 97), particularmente com o Futurismo italiano, uma das fontes do modernismo brasileiro. O nome de Oswald de Andrade sera citado por extenso nas paginas seguintes, pois, no mesmo ambiente e movimento, atuava Mario de Andrade, que nao era parente de Oswald, mas amigo, ao menos ate romperem relacoes. Assim, apos terem sido Castor e Polux, ou Orestes e Pilades do modernismo brasileiro, tornaram-se Castor e Pilades, ou Orestes e Polux: herois associados mas heterogeneos.

A obra de Siqueira retoma, com formulacao original, o problema dos confins entre historia contemporanea do direito, sociologia do direito e sociologia historica do direito (3): problema irresolvido porque provavelmente insoluvel.

[section]2. Breve historia da historia do direito no Brasil

No Brasil, a historia do direito, como disciplina universitaria, e muito recente - a diferenca do que ocorreu em outros paises da America Latina, sobretudo Mexico, Argentina e Chile -, pois se desenvolve a partir de 1990 e encontra fundamento normativo num decreto ministerial de 1994 (Portaria/MEC 1886 de 1994).

Pesquisada na historia geral do Brasil, essa peculiaridade foi ilustrada em detalhado artigo de Ricardo Fonseca, atual presidente do Instituto Brasileiro de Historia do Direito (IBHD) (4). No texto, recorda-se como as faculdades brasileiras sao fundadas apenas a partir da independencia, em 1822. Antes dela, a formacao dos juristas se dava em Portugal e, sobretudo, em Coimbra. "Implementa-se um curriculo em Olinda e Sao Paulo [as duas primeiras faculdades de direito brasileiras] sem historia do direito e tambem sem o Direito Romano. O perfil pratico - voltado a formacao de quadros burocraticos proprios, e nao de intelectuais - fica claro desde o inicio": "aparelhar o jovem Estado recem-independente com pessoal especializado" (cpv. 8).

Na verdade, alguns decretos tentaram introduzir o ensino da historia do direito ja entre 1885 e 1891, mas a disciplina foi suprimida em 1901: passados 15 anos, a historia do direito desapareceu das faculdades de direito brasileiras, ainda que nao tenham faltado estudos historico-juridicos, devidos, porem, apenas ao interesse de alguns estudiosos, dentre os quais Isidoro Martins Jr., autor de uma historia juridica publicada em 1895 (5), ou, no curso de seculo XX, Miguel Reale, Nelson Saldanha e Machado Neto. Martins reflete a atmosfera evolucionista dominante em Recife (que teve sua figura mais relevante em Tobias Barreto (6)), enquanto os restantes provinham da filosofia do direito e, assim, praticavam a pesquisa historica "dentro dos marcos e das preocupacoes teoricas da propria filosofia do direito (uma filosofia antenta a temporalidade, sobretudo a temporalidade das ideias). Historia do direito - tal como ocorria neste mesmo periodo na Europa e em muitos lugares da America Latina - ainda nao era feita no Brasil." (cpv. 13).

Apenas com o ja recordado decreto de 1994, o curriculo das faculdades de direito se abriu oficialmente ao estudo das materias historicas. Com o seculo XXI, essa abertura foi acompanhada pelo incremento das citadas faculdades, sobretudo privadas, que hoje, no Brasil, sao cerca de 1100: segundo a figura de linguagem de Fonseca, apos decenios de deserto, finalmente surgiam as premissas para a explosao "vulcanica" das catedras de historia do direito.

Fonseca propoe duas explicacoes possiveis para esse percurso singular. A primeira segue a linha de Antonio Hespanha (7) (cpv. 16), que explica o afirmar-se da historia do direito em Portugal no seculo XIX como instrumento para explicar as moderadas reformas liberais e assinalar, assim, o abandono do absolutismo. O Brasil, na verdade, nao conheceu a ruptura institucional caracteristica dos Estados hispanofonos da America Latina: de fato, a ocupacao napoleonica rompeu as relacoes das colonias espanholas com a patria-mae, provocando as declaracoes de independencia acompanhadas por lutas entre os partidarios da independencia, de um lado, e os da realeza associados as tropas espanholas, de outro. A invasao napoleonica obrigou a corte de Portugal a embarcar rumo ao Brasil, que passou, assim, de colonia a Reino e, depois, a Imperio sem derramamento de sangue. Portanto, a "historia do direito no Brasil deste periodo, ao contrario de muitos lugares, ficou sem funcao": a historia institucional brasileira manifesta continuidade substancial tanto no momento da independencia quanto no da proclamacao da republica, de forma que nao se sentia "a necessidade do estabelecimento de formas de legitimacao" (cpv. 17).

A segunda explicacao oferecida por Fonseca se refere a peculiaridade do direito romano como era ensinado no Brasil de 1854 ate o codigo de civil de 1916: era um "direito romano atual" de matriz alema e servia nao tanto a "historicizar e localizar a riquissima experiencia juridica romana", quanto a ocupar a posicao de "'introducao' ao conhecimento da dogmatica do direito privado" (cpv. 19). Tambem o romanista alemao Gustav Hanel havia considerado util prestar atencao a permanencia, em Portugal, do direito romano ate inicios do seculo XIX (8).

"Assim como o direito romano parece ter barrado por muito tempo o 'renascimento' da historia do direito [...], a emergencia da historia do direito parece ter impactado [...] no ambito academico do direito romano", porque este passa a ser sempre menos ensinado, tanto que hoje, em muitas universidades novas, nao esta mais presente (cpv. 19, nota 11). Onde era estudado, ademais, o direito romano exauria a explicacao historica tambem dos codigos modernos, enquanto a historia do direito medieval e moderno era de todo menosprezada. Apenas com o seculo XXI "este deserto foi superado" e a disciplina, hoje, apresenta-se como "um vulcao em permanente erupcao", como uma explosao "metodologica, tematica, de estilos e de tendencias" (cpv. 22).

Nas correntes atuais da historia do direito brasileira, Fonseca distingue duas contraposicoes: primeiro, a entre uma visao dogmatica e outra critica do direito, e, depois, a entre uma visao sintetica e outra analitica do citado objeto.

Na primeira contraposicao, ao direito como "resultado inevitavel de todo um processo historico" (cpv. 27) se opoe uma visao "critica" do direito e de sua conformacao. A esta corrente tributam simpatia Fonseca e muitos autores brasileiros contemporaneos. Pode-se faze-la remontar a "forte influencia critica de alguns autores estrangeiros [...] como Michael Stolleis, Pietro Costa, Paolo Cappellini, Carlos Petit, etc. Mas dentre todos", continua Fonseca, "creio que a influencia de dois historiadores do direito europeus se sobressaia: Paolo Grossi e Antonio Manuel Hespanha. O primeiro, ja traduzido de modo significativo no Brasil, traz mensagem forte sobre o papel critico, relativizador e desmistificador do oficio do historiador do direito", enquanto o segundo "adverte para o papel nocivo que uma historiografia juridica mal informada do ponto de vista metodologico pode desempenhar", limitando-se a "mera historia das leis" ou "das grandes escolas juridicas", desconsiderando "os contextos complexos" e "as rupturas e continuidades que marcam o passado juridico" (cpv. 29).

A segunda contraposicao remonta a consolidacao de uma disciplina no contexto universitario brasileiro, que conta mais de mil faculdades de direito: esse vasto mercado precisa ser abastecido com produtos editoriais oportunos, adaptados a um publico estudantil tendo os primeiros contatos com o direito. Por essa razao comercial, "os livros em questao tendem ao maior esquematismo [...] que se possa imaginar" (cpv. 32). Fonseca, porem, nao e contra os manuais, mas contra os manuais ruins, aqueles de nivel elementar e orientados ao consumo, porque tentam uma sintese quando, no...

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