Uma reflexão acerca dos direitos fundamentais do portador de sofrimento ou transtorno mental em conflito com a lei como expressão da dinâmica complexa dos princípios em uma comunidade constitucional - os influxos e as repercussões constitucionais da lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001.

AutorMenelick De Carvalho Netto
CargoDoutor em Direito pela UFMG, Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UnB.
Páginas1-13

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Este artigo é, antes de tudo, um tributo àqueles que demonstraram e demonstram saber empreender o bom combate em prol da cidadania, dirigido mais específica e concretamente, contudo, aos que se afirmaram como sujeitos da luta pelo reconhecimento do direito fundamental à igualdade dos portadores de sofrimento ou transtorno mental.

Apenas a título de exemplo de inspiração, não posso deixar de, com admiração, recordar na atuação decisiva do Movimento da Luta Antimanicomial, o Fórum Mineiro de Saúde Mental e a firme convicção e competência profissionais de Miriam Abou-Yd, de Rosemeire Aparecida Silva, de Marta Elizabeth de Souza, de Marta Soares, de Mark Nápoli e de Ana Marta Lobosque, dentre tantos outros; na experiência corajosa e absolutamente pioneira do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário - PAI-PJ- a força de espírito de pessoas como Fernanda Otoni de Barros; no Conselho Federal de Psicologia, em especial o trabalho de sua Comissão de Direitos Humanos; bem como a contribuição do Programa Pólos de Cidadania da UFMG, sob a firme, dedicada e consistente coordenação e orientação da Prof. Doutora Miracy Barbosa de Sousa Gustin, com a sua Frente de Saúde Mental.

É preciso coragem até mesmo para falar da exclusão, quanto mais para lutar contra ela. Há, no mais das vezes, uma crença absolutizada como "saber científico" a servir-lhe de Page 2 pretenso fundamento, que precisa ser descontruída e desautorizada. A abertura de novos horizontes para os direitos fundamentais não se dá sem a contribuição efetiva de profissionais das mais diversas áreas dispostos a enfrentar o saber instalado, com o risco da sua própria credibilidade profissional.

As reflexões aqui apresentadas já aplicadas ao Direito Constitucional e à Teoria da Constituição, são também devidas ao trabalho científico desenvolvido pelo Prof. Virgílio de Mattos, que, sem perder o vínculo com o combate militante, foi capaz de exigir que a sua sensibilidade teórica e prática se refinasse com a vivência adquirida na difícil tarefa de produzir decisões bem fundamentadas e de formar novos profissionais do Direito, da pesquisa e do ensino jurídicos no árduo campo do Direito Penal e da Criminologia.

Se não é fácil tematizar o direito à igualdade do excluído - ou seja, o direito de o excluído ter a sua diferença específica reconhecida como liberdade, como diferença que não somente não impede, mas que requer mesmo a afirmação de sua igualdade como cidadão; impondo aos demais o respeito a essa diferença enquanto igualdade na diversidade e complexidade sociais juridicamente protegidas - bem mais difícil é falar da igualdade daquele que no grupo dos excluídos ainda sofre mais uma exclusão, daquele que é duplamente segregado. É o caso dos portadores de sofrimento mental em conflito com a lei, temática temida até, e talvez sobretudo, pelos próprios defensores do direito à igualdade dos portadores de sofrimento mental.

Essa a temática a que se dedicou Virgílio de Mattos desde antes da conclusão de seu Mestrado em Ciências Penais pela UFMG, com a elaboração e a publicação da sua contundente obra "Trem de Doido - O Direito Penal e a Psiquiatria de Mãos Dadas"1, em que inicia a tarefa de desconstrução da doutrina penal da periculosidade e da inadmissibilidade da recepção constitucional da "medida de segurança". Desse modo é que a sua tese "Sem Saída - Entre periculosidade e risco: prolegômenos para a desconstrução das medidas de segurança" é o resultado não somente das pesquisas desenvolvidas no Centro di Studi sul Rischi na realização do Dottorato di Ricerca su Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti da Università degli Studi di Lecce, Itália, mas o coroamento de todo um longo processo de atuação concreta contra essa exclusão e de maturação intelectual, pois que sempre se fez acompanhar da reflexão teorética, o que o conduziu à escolha por aprofundar e concluir suas pesquisas em Lecce, sob a segura orientação do Prof. Doutor Rafaelle De Giorgi. Page 3

Juntamente com Virgílio de Mattos, tive a oportunidade de, a pedido do Conselho Federal de Psicologia, elaborar um parecer acerca da inconstitucionalidade da aplicação da denominada Medida de Segurança, instituída pelo Código Penal Brasileiro, nos termos da Lei n 7.209/84, na ordem constitucional inaugurada em 1988, em especial, após a aprovação da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001.2

A possibilidade de participação ativa dos movimentos sociais no processo de elaboração das leis que nos regem, é imprescindível para o incremento da credibilidade e da legitimidade da própria democracia representativa. No entanto, no mais das vezes, essa participação se dá em concreto como lobby, visando a aprovação de textos específicos que, certamente, no processo, sofrerão muitas alterações em relação à redação original. O risco aqui é que os movimentos percam de vista que a conquista de um determinado texto legislativo é apenas um início. Que o que de imediato pode lhes parecer uma desastrosa derrota por alterações sofridas no texto inicialmente proposto, na verdade, pode e deve significar apenas, uma vez que o reconhecimento do princípio fundamental de igualdade pretendido tenha sido alcançado, a continuidade da luta por sua afirmação, agora no campo específico da aplicação do Direito, tomando como ponto de partida precisamente a positivação desse reconhecimento.

A validade da própria lei e de seus dispositivos específicos depende da sua coerência com os princípios que se encontram na base da (comunidade de princípios instituída pela) Constituição, ou seja, a validade da leitura do legislativamente aprovado deve ser condicionada pela melhor leitura dos princípios constitucionais em um amplo e contínuo debate público, difuso e institucional, que também leve em conta reflexivamente o nosso passado para melhor compreendermos os desafios presentes e não nos cegarmos quanto aos desafios futuros com que virá a se defrontar o nosso projeto comum. Desafios sempre postos de forma constitutiva a esse fluxo comunicativo que, hoje, em doutrina constitucional, denominamos "povo"3.

Desse modo, a Filosofia Política, a Teoria da Constituição e a Teoria e a Sociologia do Direito podem ver hoje que o Legislativo é somente a porta de entrada de argumentos no sistema jurídico; a leitura e as releituras, o desenvolvimento e a aplicação desses textos que expressam os argumentos ali aprovados, serão realizados, inclusive ao longo do tempo, pela própria sociedade em geral, pela Administração Pública de ofício e com poder império e, na Page 4 hipótese de controvérsia acerca do sentido ou da viabilidade constitucional das pretensões neles fundadas, mediante provocação, pelo judiciário a quem cabe dirimir de forma vinculante esses conflitos e dúvidas. Assim podemos ver que, ao contrário do que acreditavam os clássicos, dos poderes, o legislativo é o mais periférico na definição efetiva e cogente do Direito que nos rege, encontrando-se no cerne desse sistema, na verdade, em última instância, o Judiciário.

Sabemos hoje, portanto, que as leis gerais e abstratas não eliminam o problema do Direito, aliás, ao contrário do que igualmente puderam acreditar os iluministas com a sua confiança excessiva na razão, elas inauguram o problema do Direito moderno que é precisamente o da aplicação de normas gerais e abstratas a situações sempre particularizadas, determinadas e concretas.

É mais do que tempo de nos emanciparmos da crença ingênua de que uma boa lei nos redimiria da tarefa de aplicá-la de forma adequada à unicidade e irrepetibilidade características das situações da vida, sempre individualizadas e concretas . A fórmula da lei geral e...

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