A solidariedade como critério legitimador da negociação coletiva dos direitos de transmissão televisiva futebolística

AutorFelipe Augusto Loschi Crisafulli e Leonardo Fernandes dos Anjos
Páginas13-36
A solidariedade como critério legitimador da negociação
coletiva dos direitos de transmissão televisiva futebolística
Felipe Augusto Loschi Crisafulli
1
Leonardo Fernandes dos Anjos
2
1. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, com menção em Direito Constitu-
cional, pela Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD).
Advogado.
2. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba. Investiga-
dor da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal – FCT/MCT. Pesquisador do Public Procurement Research Group (PPRG) na
University of Nottingham School of Law. Professor de Direito. Advogado.
3. Ab initio, cumpre ressaltar-se que, apesar de a doutrina brasileira, ainda hoje, ser bastante controvertida a esse respeito, para os fins
do presente trabalho, reputar-se-ão os termos desporto e esporte como sinônimos, na esteira da nótula trazida por Manoel José Gomes
Tubino, a qual indica que, no Brasil, aquele primeiro termo vem sendo utilizado pelas legislações pátrias por mera influência portuguesa
e opção de João Lyra Filho, responsável por redigir o Decreto-Lei n. 3.199/1941, a primeira Lei esportiva do país (TUBINO, Manoel José
Gomes. O Que é Esporte?. São Paulo: Brasiliense, 1999. pp. 9-10), sendo certo que o último vocábulo encontra muito mais emprego
entre os falantes do português brasileiro. Acerca das mais variadas definições que se dão ao esporte (ou desporto), ver: CAPINUSSÚ,
José Maurício. Comunicação e Transgressão no Esporte. São Paulo: Ibrasa, 1997. pp. 19-24.
4. Para uma rápida visão acerca da origem e evolução do esporte: YENKO, Jayne. Origins of Sports. Disponível em: .livestrong.
com/article/367931-origins-of-sports>. Acesso em: 16 out. 2012.
5. “O desporto é um fenómeno humano tão ligado à origem, às estruturas e ao funcionamento da sociedade que nós poderemos afirmar
que é possível analisar qualquer sociedade através dos desportos que ela pratica”. COSTA, António da Silva. Desporto e análise social.
Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, I série, v. II, 1992, p. 101.
6. CORREIA, Lúcio. Limitações à Liberdade Contratual do Praticante Desportivo. Lisboa: Livraria Petrony, 2008. p. 27. Na mesma página,
mais à frente, o autor destaca que “[a] actividade desportiva surg[iu] com os primórdios das manifestações humanas e a sua prática ini-
ciou-se por motivos relacionados com a religião, a defesa pessoal, a destreza física e a educação”, aduzindo, ainda, que seu “provável
berço [é] a Grécia Antiga, onde já nessa época se organizavam os Jogos Olímpicos”. Em igual sentido: CARVALHO, André Dinis de. Da
Liberdade de Circulação dos Desportistas na União Europeia. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 18.
7. AMADO, João Leal. Vinculação versus Liberdade: O Processo de Constituição e Extinção da Relação Laboral do Praticante Desportivo.
Coimbra: Coimbra, 2002. p. 15. A despeito de apresentar, inicialmente, esta ideia como um questionamento, o autor parece concordar
com ela, como se percebe das páginas subsequentes de sua obra, notadamente do que consta da parte final da nota de rodapé de nú-
mero 1, na página 16; mais adiante, aduz que, “de resto, […] se o séc. XX foi o século do desporto, a última década do século terá sido,
[… relativamente a Portugal], a década do direito do desporto”. Ibid. p. 26.
8. MEIRIM, José Manuel. Desporto e Constituição. Sub Judice – Justiça e Sociedade. Lisboa, n. 8, jan./mar. 1994. p. 37.
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre a regulação da concorrên-
cia na atividade econômica desportiva, nomeadamente no
futebol profissional, no que respeita à negociação dos di-
reitos de transmissão televisiva do evento correspondente.
Para tanto, analisar-se-ão o enquadramento do des-
por
to
3
como atividade econômica passível de regulação; as
teorias relativas à titularidade dos direitos de transmissão
te-
levisiva
dos players envolvidos no espetáculo em causa; a (i)
licitude
das práticas em concerto voltadas à negociação cole-
tiva
dos direitos em tela; a vinculação dos interesses difu-
sos e coletivos na determinação do critério quantificador
das receitas auferidas por cada clube (quotas televisivas);
a possibilidade de intervenção do poder público na regu-
lação dos contratos privados em defesa da livre concorrên-
cia, inclusive determinando que a negociação dos direitos
de transmissão seja coletiva.
1. O DESPORTO ENQUANTO ATIVIDADE
ECONÔMICA SUJEITA A REGULAÇÃO
A relação do desporto com a humanidade é bastante an-
tiga4, podendo ser considerada ínsita à natureza humana5.
Ainda assim, apenas mais recentemente se reconheceu, de
fato, o tamanho da sua importância: “[f]enómeno milená-
rio”6, “século XX, o século do desporto”7, “fenómeno social
dinâmico, democrático e omnipresente na cidadania”8 são
todas expressões que denotam o destaque hodiernamente
conferido a essa área do lazer humano.
O esporte contribui para a melhoria física, psíquica,
intelectual (educacional) e espiritual de seus praticantes;
possibilita a interação de culturas, nacionalidades e idio-
mas distintos e a aproximação de pessoas que se encontram
afastadas; permite aos menos abastados uma ampla gama
de opções de diversão; promove a integração social das pes-
soas portadoras de deficiências e enfermidades. Mas não é
14
Direito econômico Desportivo
Felipe Augusto Loschi Crisafulli Leonardo Fernandes dos Anjos
apenas isso; o desporto moderno vai muito além de todas
as situações ora narradas.
O esporte possui um viés econômico bastante marca-
do e inquestionável, seja por meio dos investimentos rea-
lizados em obras de infraestrutura (estádios/arenas mais
modernos, sistemas de iluminação, irrigação e drenagem
ecologicamente sustentáveis, centros de treinamento com
equipamentos de musculação e medicina desportiva de úl-
tima geração) ou novas tecnologias de ponta (controle an-
tidopagem mais preciso, câmeras de transmissão televisiva
ultramodernas, goal-line technology, sistemas de revisão/
desafio do lance quase instantâneos), seja no que respeita
aos vultosos montantes que são despendidos anualmente
em salários e na formação e contratação de novos atletas
por parte dos clubes.
Assim, se, de um lado, há esses diversos tipos de in-
vestimentos, muitos dos quais suportados pelos clubes
participantes do torneio, de outro, estes mesmos clubes,
por óbvio, a fim de poderem realizar tais investimentos,
necessitam de buscar meios pelos quais possam levantar
recursos bastantes para tal mister. Os referidos meios vão
desde a captação financeira junto a seus torcedores (vendas
de equipamentos e produtos licenciados, bilheteria, pro-
gramas de sócios, doações, financiamentos coletivos ou
crowdfunding)9 até os valores percebidos a título de “ven-
das” de atletas, para além daqueles decorrentes de publi-
cidade e negociação de direitos de transmissão televisiva.
Tudo isso apenas corrobora o que já há muito se reco-
nhece no meio jurídico10: o desporto moderno profissional
encerra verdadeira atividade de cunho econômico – e, como
tal, sujeita-se à sua peculiar realidade e lógica de mercado.
E é justamente com base nisso que, nos dias atuais, já se
9. Daí Bill Gerrard asseverar que “[o]s times desportivos profissionais somente podem ser viáveis financeiramente caso consigam manter
a lealdade de seus fãs”. GERRARD, Bill. Team Sports as a Free-market Commodity. New Political Economy. Abingdon, v. 4, n. 2, p. 277,
1999. Tradução livre.
10. “É um facto, e um facto incontornável: vivemos a era do sports business. A questão a colocar não é já, pois, a de saber se o desporto
profissional constitui ou não uma actividade económica”. AMADO, João Leal. Vinculação versus Liberdade, op. cit. p. 82. Grifos no
original.
11. GERRARD, Bill. Team Sports as a Free-market Commodity, op. cit. p. 276. Tradução livre.
12. Em que pese a, no Brasil, esta ainda não ser a realidade vigente (visto, salvo eventuais exceções, os clubes nacionais ainda serem cons-
tituídos como associações sem fins lucrativos), na Europa, especialmente no âmbito do futebol, diversos dos principais clubes são, hoje,
sociedades desportivas (ou, sociedades empresariais/por ações), por vezes cotadas em bolsas de valores – realidade, esta, não muito
diferente daquela experimentada nos chamados esportes americanos (MLB, NFL, NBA e NHL), cujos clubes são, invariavelmente, pro-
priedade de um(ns) determinado(s) dono(s).
13. Aliás, como ressalta João Leal Amado, é “frequente, na literatura anglo-saxônica, utilizar a sugestiva fórmula Sport$biz para exprimir este
fenômeno”. AMADO, João Leal. Desporto, Direito e Trabalho: uma Reflexão sobre a Especificidade do Contrato de Trabalho Desportivo.
In: BELMONTE, Alexandre Agra; MELLO, Luiz Philippe Vieira de; BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Direito do Trabalho Desportivo:
Os Aspectos Jurídicos da Lei Pelé frente às Alterações da Lei n. 12.395/2011. São Paulo: LTr, 2013. p. 10. Grifo no original.
14. COMISSÃO EUROPEIA. O Modelo Europeu do Desporto: Documento de Reflexão da DG X. Bruxelas, 1999. p. 5. Segundo recente es-
tudo da empresa de consultoria empresarial norte-americana A.T. Kearney, “o mercado de eventos esportivos em 2014 – receitas a
partir
de ingressos, direitos de mídia, e patrocínios – será próximo dos 80 bilhões de dólares, com impressionante crescimento anual de 7%.
Quando
você adiciona os artigos esportivos, vestuário, equipamentos, e gastos com saúde e condicionamento físico, a indústria dos esportes
gera em torno de 700 bilhões de dólares anualmente, ou 1% do PIB mundial”. COLLIGNON, Hervé; SULTAN, Nicolas. Winning in the
Business of Sports. Paris/Doha, 2014. p. 2. Tradução livre.
15. Daí Bell e Campbell asseverarem que “o seu drama, as suas personalidades e o seu apelo mundial fazem do esporte a nova Hollywood”.
BELL, E.; CAMPBELL, D. For the love of money. The Observer. 23 mai. 1999. p. 22. Tradução livre.
16. AMADO, João Leal. Vinculação versus Liberdade, op. cit. p. 28.
defende que o “esporte profissional seja uma mercadoria
[commodity], com os fãs como seus consumidores adqui-
rentes […, daí] diversos clubes pertencerem a indivíduos
ou entidades empresariais que, pelas mais variadas razões,
têm de estar preparados para suportar [eventuais] perdas
financeiras”11.
Ainda nessa mesma ótica do desporto como atividade
econômica, vale lembrar que inúmeros são os clubes que
foram transformados em clubes-empresas12, negociando as
suas ações na bolsa de valores, com claros objetivos lucra-
tivos, menor ingerência da torcida na sua administração e
a presença, cada vez maior, de diretores ocupando cargos
remunerados. Em poucas palavras, trata-se exatamente do
apogeu do esporte como negócio (sports business)13.
E, na esteira desse cenário tipicamente empresarial, ex-
surge a realidade da transmissão televisiva esportiva, cujo
alcance, face à globalização, supera diversos segmentos
do comércio mundial, correspondendo a 3% de seu volu-
me14, e possibilitando, desse modo, atingirem-se os pontos
mais longínquos do globo terrestre e ultrapassar-se quer a
própria vertente lúdica e recreativa do desporto, quer as
fronteiras nacionais15. A transmissão destes eventos acres-
centou, portanto, escala à indústria do desporto profissio-
nal, massificando a sua produção e distribuição, a ponto de
se poder identificar um caráter tridimensional nessa ativi-
dade: a «[d]os que o praticam (e são bastantes), [… a d]
os que a ele assistem (e são muitos) e [… a d]os que dele
falam (e são quase todos)”16.
Atestada a natureza econômica da atividade esportiva,
assim como a importância que ostenta, nesse aspecto, o
relevante mercado de transmissão televisiva, impõe-se

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