Standards: o que são e como criá-los?

AutorSiddharta Legale Ferreira
Páginas3-32

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I Aspectos gerais

Certo* dia, descobri, num texto do Affonso Romano de Sant´Anna, que não é raro um autor encalhar numa palavra. Ele explicava que “A pessoa vai lá no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra. Pode ser: „marxismo‟, „Deus‟, „pai‟, „vanguarda‟, „revolução‟, „Paris‟, „aposentadoria‟. Algumas palavras são mesmo paralisantes. O Brasil, por exemplo, no princípio do século encalhou na „febre amarela‟, Nos últimos anos reencalhou na „ditadura‟ e na „censura‟. Há trinta anos estava encalhado na inflação. Já conseguiu desencalhar um pouco da corrupção, mas está difícil desencalhar da „reforma agrária‟ e totalmente do „subdesenvolvimento‟.1

De repente, foi como se tivesse me dado conta do quanto o direito constitucionalPage 4anda encalhado em palavras, especialmente nas palavras “proporcionalidade” e “razoabilidade”. A ponderação de interesses, de fato, tornou-se uma técnica muito difundida, especialmente por meio da proporcionalidade. Mas é preciso ir além. Os parâmetros, ou standards, também constitutem uma técnica de ponderação bastante importante. O objetivo do texto, por isso, é refletir sobre ela, sobretudo, considerando que sua utilização ainda necessita de uma reflexão teórica mais depurada, capaz de sublinhar seu potencial prático.

A doutrina brasileira difundiu a ponderação através do uso do princípio da proporcionalidade 2 , percorrendo tanto discussões sobre sua natureza (regra, princípio ou postulado) e sua estrutura interna (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) 3 , quanto a sua aplicação aos mais diversos ramos do direito o que conduziu a um verdadeiro esgotamento hermenêutico.

Resta ainda acelerar processo de desencantamento hermenêutico em relação à proporcionalidade. Falta perceber que existem limites ao seu emprego, tais como o fato de a mesma estrutura utilizada para considerar uma medida razoável ser facilmente aplicada para o oposto: taxá-la de desproporcional. Outro limite é que, mesmo uma medida considerada adequada, necessária e proporcional em sentido estrito, pode não realizar na mesma intensidade o bem jurídico contraposto. Se não bastasse isso, é possível falar em adequação forte e fraca, necessidade forte e fraca e proporcionalidade strito sensu forte e fraca 4 . Resta aPage 5dúvida de como determinar, na prática, esses graus de intensidade diferenciados entre forte e fraco, diante do caso concreto, bem como em que exatamente eles são relevantes para tomada de decisão. Resultado: a proporcionalidade já não reduz a subjetividade, nem racionaliza a tomada de decisões tão bem quanto num primeiro momento. Sem dúvida, a proporcionalidade cumpriu seu papel, mas é preciso estudar e empregar outros métodos. Os standards podem suprir essa lacuna 5 .

Em relação aos parâmetros, o mesmo não acontece. Há uma verdadeira escassez de reflexões metodológicas depuradas sobre o seu conteúdo, bem como de leituras sistemáticas sobre a aplicação prática de parâmetros específicos 6 . Muitas vezes se confunde a aplicação dos standards com a proporcionalidade 7 . O motivo é que, provavelmente, embora eles tenham o potencial de reduzir o subjetivismo e racionalizar a tomada de decisões, exigem um maior esforço interpretativo e uma reflexão mais complexa sobre os fatos, normas, valores envolvidos e decisões judiciais pertinentes. Como se sabe, infelizmente, as idéias mais simples - mesmo que imprecisas - costumam prevalecer sobre as complexas - ainda que sejam melhores. Embora possam funcionar de forma associada, proporcionalidade e standards não se confundem.

O objetivo do presente texto é cuidar dos standards, como técnica autônoma,Page 6emprestando-lhe maior status teórico para chamar atenção sem descuidar de chamar atenção para o seu potencial prático. A principal tarefa deste estudo será, por isso, conceituar e apresentar as espécies parâmetros, bem como expor as justificativas, críticas e contraargumentos à sua aplicação. A principal inovação, contudo, fica por conta de um ensaio de uma “fórmula”, melhor, um roteiro para facilitar o processo de confecção de parâmetros.

Não se está propondo, ao empregar ostensivamente os parâmetros como ferramenta hermenêutica, uma dogmática constitucional transformadora, tampouco uma dogmática reacionária. Tão importante quanto romper com a tradição, é saber preservá-la, quando for adequado. Não se está propondo uma dogmática liberal, muito menos social ou dirigente. Especialmente em contextos democráticos, onde impera o desacordo moral, manter ou romper com algo pressupõe a avaliação de inúmeras variáveis, como o momento, o local, as implicações sob a ótica de uma moralidade crítica, os ganhos e as perdas sócio-econômicas. Tudo que possa indicar motivos para ser contra ou a favor de algo. Somado o pluralismo em sociedades democráticas com a internacionalização do direito, especialmente, no diálogo entre direitos humanos e direitos fundamentais, observa-se que o desacordo aumenta e as questões tornam-se ainda mais complexas. O direito revela-se maleável 8 . Os standards apresentam o elevado potencial para fundamentar decisões em contextos democráticos e de gradativa ou maciça internacionalização do direito.

II Breve incursão histórica

Os parâmetros constituem uma temática eminentemente da tradição judicial norte-americana 9 . Tanto é assim que a própria ponderação (balancing), no sentido norteamericano, chega a ser definida por alguns autores como o método de teoria da interpretaçãoPage 7constitucional no qual, por exemplo, o juiz em seu voto analisa uma questão constitucional, identificando os interesses concorrentes (competing interests) para chegar a uma decisão ou construir uma norma de direito constitucional por um processo que, implícita ou explicitamente, destaca os valores nos interesses identificados. Entendem, por isso, que a ponderação representa uma forma diferente de pensar que considera a comparação entre os interesses e fatores envolvidos 10 .

No direito norte-americano, é comum ainda diferenciar algumas espécies de balancing. A primeira é a definitional balancing que pode ser conceituado como aquele que estabelece um principio constitucional de aplicação geral 11 que passa a orientar definições e critérios passam a orientar decisões futuras 12 . Já o ad hoc balancing ou ponderação ad hoc é a ponderação propriamente dita, considerando os interesses em jogo no caso em particular.

Não deve ser levada ao extremo a diferença entre ambos, porque não é razoável que se etiquete um caso como pertencente à mesma lógica já decidida pelo definitional balancing para afastar a necessidade. Alexander Aleinikoff explica que, após os votos do Justice Rehnquist, a diferença teria se tornado artificial e frágil, uma vez que se a Corte pode sempre “reabrir” para a ponderação, então todas as ponderações seriam transformadas em ad hoc. Acreditamos que existe uma diferença embora seja tênue. Precisamente, o ônus argumentativo para superar (overruled) ou distinguir (distinguish) o caso concreto dos parâmetros instituídos no balancing definitional é maior do que quando se está diante de um caso particular em relação ao qual deverão ser ponderados os interesses pela primeira vez 13 .

Do ponto de vista histórico, os parâmetros para ponderação surgem, no contexto norte-americano, a partir do direito da responsabilidade civil e dos atos ilícitos (law of torts).

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Naquele momento, o objetivo era tornar vinculante certos comportamentos ou interesses sociais em relações obrigacionais, embora, inicialmente, tenham sido enxergados como “tipos médios de conduta social”, cujo conteúdo depende sempre de atualização por meio dos mecanismos decisórios. Com essa lógica, os standards como o do homem razoável (reasonable man) passaram a ser invocados como medidas de comportamento ou interesses relevantes judicialmente. 14

Roscoe Pound foi o responsável por, pela primeira vez, conceituar e analisar o instituto com cautela 15 . Definia os standards jurídicos como medidas da conduta social correta 16 . O filósofo do direito enxergava o instituto como elementos “operadores jurídicos” de um sistema aberto, rebelando-se claramente contra as tentativas de encarcerar o direito em opções jusfilosóficas rígidas, unilaterais e totalizantes 17 . Segundo ele, as sociedades modernas precisam de mecanismos, cujo grau de abstração permita ao Judiciário lidar com os inúmeros interesses divergentes, que existem na sociedade para, dessa forma, ser capaz de incorporar e concretizar os valores, deveres e critérios de cuidado e responsabilidade 18 . O autor enxerga nos standards, por isso, uma tripla dimensão: (i) moral, ao valorar os comportamentos; (ii) prática, por pressupor o emprego de critérios extra-jurídicos com a experiência e a intuição; (iii) flexibilização, que torna possível adaptar as regras aos casos concretos 19 .

No capítulo 2 da obra, “O fim do Direito”, o autor lista diversas dessas teorias e procurar mostrar o atrito entre os diversos interesses em jogo. No capítulo seguinte que trata da aplicação do direito, conclui que existem diversas técnicas para individualização na aplicação do direito, como o recurso a equidade e os legal standards aplicados às condutas geralmente quando o dano resulta de certas relações. Cf. Cf. POUND, Roscoe. An Introduction to the Philosophy of Law, p.64.

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Do ponto de vista judicial, a decisão proferida no caso United States v. Carolene Products foi o grande marco na ponderação de interesses norte-americana. O julgado de 1938 considerou...

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