A substituição do agente químico amianto nos ambientes de trabalho

AutorMarcia Cristina Kamei Lopez Aliaga - Luciano Lima Leivas
Páginas239-248

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Marcia Cristina Kamei Lopez Aliaga *

Luciano Lima Leivas **

Introdução

O escopo dessa dissertação é demonstrar o anacronismo da legislação produzida pelos centros de positivação de normas jurídicas nacionais, amplamente influenciados pelo interesse econômico e empresarial, em cotejo com os compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, inspirados francamente no reconhecimento e efetivação dos direitos humanos, com ênfase na tutela e promoção da saúde dos trabalhadores expostos ocupacionalmente a agentes químicos carcinogênicos.

Em momento subsequente, será apresentada a viabilidade de uma hermenêutica jurídica estruturada sobre os tratados internacionais de direitos humanos firmados pela República Federativa do Brasil. Não apenas porque essas normas internacionais estabelecem a imperatividade da substituição do agente químico amianto, mas também porque essas normas se revestem da natureza de norma jurídica hierarquicamente superior à Lei n. 9.055/95.

As fontes materiais para a substituição do amianto a evolução do conhecimento científico em torno das doenças relacionadas ao amianto

Há muito tempo se conhecem as repercussões negativas à saúde humana, ocasionadas pela exposição ao amianto. São de especial interesse a história do desenvolvimento do conhecimento científico em torno da asbestose, do câncer de pulmão e dos mesoteliomas, a fim de compreender a opção de mais de 60 países pelo banimento da fibra cancerígena.

A asbestose é uma doença pulmonar caracterizada por extensa fibrose, formada a partir da tentativa de cicatrização do tecido pulmonar, com a consequente redução da capacidade de complacência — movimento de expansão e retração dos pulmões — ocasionando dispneia. É popularmente chamado de ‘pulmão de pedra’.

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Em 1924, Cooke estabeleceu claramente, em achados de necrópsia, a grave “fibrose pulmonar” a que denominou asbestose, correlacionando a ocupação à doença. Trabalhos epidemiológicos embasaram a decisão do Parlamento Britânico de, em 1930, incrementar a inspeção do trabalho. (MENDES, 2001). No mínimo, desde a década de 30, tornou-se indiscutível a relação entre o amianto e a asbestose.

Quanto ao potencial carcinogênico do amianto, em 1955, o estudo do epidemiologista britânico Richard Doll estabeleceu, de forma definitiva, a relação causal entre exposição ocupacional e amianto ao câncer de pulmão. Pesquisa do Mount Sinai Hospital e Faculdade de Medicina em Nova York, comandada por Irving Selikoff, demonstrou de forma irrefutável o excesso de mortes por câncer de pulmão, na ordem de 20% dos 17.800 trabalhadores analisados (MENDES, 2001).

No que se refere ao mesotelioma, trata-se um tipo de câncer muito raro e agressivo, que afeta as camadas mesoteliais da pleura, peritônio ou pericárdio. O período médio de sobrevida após o diagnóstico é de poucos meses. Não há tratamento eficaz para a doença.

Em 1965, publicação de Newhouse & Thompson descreveu estudo realizado em 76 casos, em que houve confirmação de forte associação entre mesotelioma de pleura e peritônio, à exposição ao amianto, tanto ocupacional, como ambiental. Observou-se que a doença se desenvolvia após período de latência muito longo (30 a 35 anos). Foram descritos casos da doença em mulheres e crianças expostas às fibras de amianto, por contato com as vestes de trabalho trazidas por cônjuges/pais ocupacionalmente expostos, reforçando a não dependência de fator dose-resposta, ou seja, o desenvolvimento da doença não está, a rigor, relacionado com a quantidade de fibras inaladas (MENDES, 2001).

Assim, é possível afirmar que desde as décadas de 30 e 40 já eram conhecidas doenças asbesto-relacionadas.

Em países do hemisfério norte, esses estudos impulsionaram a adoção de medidas de proteção à saúde do trabalhador, no modelo denominado uso seguro do asbesto. Porém, na década de 90, o número de doenças relacionadas ao amianto eclode de forma avassaladora, desbordando dos portões das fábricas e alcançando pessoas expostas ambientalmente. Não era mais possível justificar a sobreposição dos interesses econômicos à saúde da população, optando-se pela proscrição da substância cancerígena. A Islândia foi o primeiro país a banir o amianto do seu território, ainda no ano de 1982, seguida pelos países nórdicos. Dez anos depois, a Itália fez a mesma opção, após o escândalo sanitário que assolou a pequena cidade de Casale Monferrato. Em 1997, depois de enfrentar o lobby canadense do asbesto em uma batalha na Organização Mundial do Comércio — OMC, pressionada pela opinião pública, a França decide pelo banimento. Finalmente, em 1999, a União Europeia se posiciona formalmente pelo banimento da fibra cancerígena.

Nos Estados Unidos, embora não formalizada a proscrição do mineral cancerígeno, foram impostas severas restrições a seu uso. O Canadá, maior exportador de asbesto por décadas, sai definitivamente desse mercado em 2012.

Diante da perda de mercado nos países desenvolvidos, empresas deslocam investimentos para países da Ásia e América do Sul, onde o consumo segue elevado, ignorados os alertas da Organização Mundial de Saúde.

O Brasil segue com olhos cerrados para os alertas internacionais. Mesmo diante dos protestos dos movimentos sociais, o uso seguro do amianto segue incólume, ganhando, inclusive, status legal desde a publicação da Lei n. 9.055/95.

O anacrônico modelo brasileiro do uso controlado do amianto e o tratamento legal da saúde dos trabalhadores expostos ao amianto no Brasil

Os ecos da deterioração do modelo pautado no uso seguro do amianto nos países do hemisfério norte, foram clara-mente ouvidos no Brasil. Em 1991 foi publicado o Anexo n. 12 da Norma Regulamentadora n. 15, criando normas protetivas à saúde do trabalhador e impondo obrigações de controle aos empregadores da cadeia econômica do amianto.

Em 1993 o então Deputado Federal Eduardo Jorge, apresentou projeto de lei elaborado em conjunto com os Deputados Fernando Gabeira e Roberto Gouveia, prevendo o banimento gradual do amianto no Brasil, no prazo de cinco anos. O projeto de lei sofreu inesperado revés, com a apresentação de substitutivo que restringia o banimento apenas ao tipo anfibólio, mantendo-se a variedade crisotila no mercado e reverenciando o falido modelo do uso seguro do amianto. O projeto de lei, com o substitutivo, foi aprovado, transformando-se na Lei n. 9.055/95. Assim, a lei que deveria ser a do banimento, torna-se o marco legal do uso controlado do amianto.

No que se refere à saúde do trabalhador, o art. 3º da Lei n. 9.055/95 recepciona todas as disposições protetivas vigentes, bem como obrigações previstas em acordos internacionais. Foi prevista no art. 5º, a obrigação das empresas que

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“manipularem ou utilizarem materiais contendo asbesto/amianto da variedade crisotila” de encaminhar anualmente ao Sistema Único de Saúde, dados relacionados à saúde dos trabalhadores.

No ano de 1999 é publicado o Anexo II, Lista A2, do Decreto n. 3.048, que regulamenta a Lei n. 8.213/91, elencando as doenças que a própria legislação previdenciária reconhece como sendo decorrentes de exposição com o agente etiológico amianto, não abordando apenas as que acometem o aparelho respiratório, mas também o aparelho digestivo e cardíaco. A medida é repetida na Portaria n. 1.339, de 18 de novembro de 1999, do Ministério da Saúde.

Mais recentemente, o amianto crisotila passou a figurar na Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos — LINACH1, no Grupo 1 — Agentes carcinogênicos a humanos — destinado às substâncias para as quais não há dúvidas quanto à carcinogenicidade para humanos. A lista nacional segue as diretrizes traçadas pela International Agency of Research for Cancer — IARC que, por sua vez, segue as normas gerais da ONU — Organização das Nações Unidas, congregando representantes de diversos países, entre eles o Brasil, membro desde 2013.

A classificação dos agentes cancerígenos da IARC norteia a decisão governamental de vários países sobre saúde e meio ambiente. No Brasil, a criação da Lista Nacional de Agentes Cancerígenos a Humanos cumpriu apenas função protocolar, em razão de compromissos internacionais assumidos pelo país. Desde a sua criação, em 2014, não se observou qualquer avanço nas políticas voltadas para a questão.

No que se refere às ações voltadas para a vigilância à saúde dos trabalhadores expostos, o sistema de proteção deveria seguir a seguinte lógica, legalmente prevista: [1] efetivo acompanhamento da saúde do trabalhador, durante o período trabalhado, com a realização de exames admissionais, periódicos, demissionais e pós-demissionais (item 18 do Anexo 12 da Norma Regulamentadora n. 15); [2] fornecimento de listas de trabalhadores expostos ao amianto aos órgãos do Sistema Único de Saúde (art. 5º da Lei n. 9.055/95); [3] emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho

— CAT (art. 169 da CLT) em caso de suspeita de doença ocupacional.

Contudo, esse sistema de proteção é falho e inconsistente.

O direito à saúde é direito social previsto no art. 6º da Constituição da República. A Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/1990), em seu art. 2º, estabelece que a proteção à saúde é direito fundamental do ser humano a ser desenvolvido pelo Estado, porém não excluídas as obrigações “das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.

Inegável que atividades que...

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